MÍDIA & EUGENIA
Claudio Julio Tognolli (*)
Um dos pecadilhos da internet: a criação da vontade por respostas rápidas. Cibernética vem do grego cyber, que designa o nosso vocábulo "timoneiro". Vivemos, portanto, num país global chamado "Cibéria". Em que nos facultamos o poder de capitanear, com nosso timão cibernético, toda e qualquer realidade pela luz da telinha. Na Idade Média não existia o termo "progresso". A partir do Renascimento, "progresso" é definido com metáforas de luz. Foi por isso que a salvação de Beatriz, na Divina Comédia, é descrita com metáforas de luz. Dante Alighieri (1265-1321) seguia com afinco os passos que Witelo (1230/35 ca. – 1275/80 ca.) dava nas descobertas da ótica.
Hoje a metáfora é ressuscitada. Luz e transparência dão conta de tudo. Mas o que isso tem a ver com a mídia? Tudo. E muito mais. O biólogo inglês Richard Dawkins, em seu O gene egoísta, criou o termo "memética". Via certos replicadores da mídia como genes culturais. Se genes são auto-replicadores, "memes" são por sua vez os auto-replicadores da cultura. Nessa visão, a repetição sistemática de certos símbolos imprime determinadas realidades no cérebro de leitores e telespectadores, por exemplo. A memética da Fox News, de Ruppert Murdoch, não é diferente da memética dos Talebans ? que, de resto, até música proíbem a seus asseclas. Estamos tratando do primazia da forma pelo conteúdo. O que fica de uma época é a forma, notou o Gyorgy Lukács de A alma e as formas.
Os foci imaginarii da guerra ? horizontes que delimitam o espaço da modernidade ? foram trocados dos blocos a serem combatidos pelo inimigo invisível, que é a face mais insinuante do terrorismo: como na esfera descrita por Pascal ("uma esfera terrível cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma"), o terrorismo está em todos os lugares (diz Bush) e em nenhum (respondem o fugitivo bin Laden e o inencontrável Saddam Hussein).
Essa demanda pela rapidez, é óbvio, contaminou a todos nós que navegamos na internet em busca de notícias. Na semana passada, a mídia mundial recebeu com escárnio, e com um espanto mesmo inefável, as notícias de que a guerra contra o Iraque pode demorar mais do que o divulgado. Esperávamos, como navegantes da world wide web, uma guerra "limpa" e na rapidez de uma batatinha do MacDonald?s. Recebemos o desbunde. Afinal, o presidente Bush e suas prometéicas falas constituem uma metonímia (parte pelo todo) que construímos ao longo dos anos, acostumados que estamos à rapidez na prestação de serviços de tudo o que vem dos EUA, a internet inclusive.
Até 1789, o Estado era apenas e tão-somente propriedade do governante. Madame de Pompadour chamava Luis XV de "França", mesmo quando estava na cama com ele, nota o historiador A.J.P. Taylor. É óbvio que nessa politonal guerra de informações o escárnio tenha vindo: herdamos, nós em geral, e a mídia em particular, a idéia de que Bush falou, está falado. Afinal, sua forma é a forma que se espera sempre dos EUA: rapidez e eficácia hospitalar.
Ponderar o imponderável
Nas últimas duas edições deste Observatório, Alberto Dines escreveu sobre o pacifismo que vemos hoje [remissões abaixo]. Vale lembrar: vivemos numa época em que "engajamento político" foi transformado em "atitude". Ou seja: sai de cena o conteúdo, entra a forma. Quando Richard Nixon era governador, mandou a Guarda Nacional descer o cacete nos protestos na Califórnia. Um ítalo-americano, Joel Tornabene, resolveu colocar uma flor no cano do fuzil de um militar. Nascia o flower power e a essência do pacifismo. Mas até a contracultura é pendular: nasce no off Broadway, na margem, e logo é absorvida sob a forma de produto de consumo. Não é para menos que um dos lemas dos pacifistas "contra os testes feitos em animais" agora é dístico da fábrica de cosméticos Lush ? a que mais cresce no mundo e faz questão de pôr em seus produtos a grita "Against animal testing".
Em 1977, um cidadão chamado Richard Branson bancou uma banda de pobretões, intitulada The Sex Pistols. Viraram os pais do movimento punk. Branson vendia ele mesmo, numa garagem, as pilhas de LPs da banda. Hoje Branson é "sir", freqüenta a elite palaciana bretã, é o homem mais rico da Inglaterra e deu à sua companhia aérea o mesmo nome que dera à gravadora que lançou o movimento punk no mundo: Virgin Airlines.
Não é só da troca do conteúdo pela forma que estamos padecendo: padecemos da nossa angústia de que tudo seja rapidamente resolvido nessa guerra. É essa a angústia na mídia. Foi-nos vendido que a guerra seria nos padrões ISO 9000. Mas caímos na velha tentação dos economistas e meteorologistas: a de tentar mapear sistemas abertos como se fossem sistemas fechados. Por isso economistas e meteorologistas erram tanto: tentam ponderar o imponderável.
Essa mesma febre é que tem levado a mídia a noticiar, graças aos lobbies dos laboratórios de implementos para biotecnologia, as "novidades" sobre as descobertas de novos genes. O gene não é o Graal. Como a meteorologia, como a economia, como a guerra, somos sistemas abertos. Gene não é igual a chip, nem corpo humano é computador. Nem a guerra é previsível.
O império do acaso
Já que falamos em genes e Estados Unidos, vale lembrar que o termo eugenia surge do radical grego "eu", que significa "bom". Essa teoria dos "belos genes" aparece no século 19, quando o inglês Sir Francis Galton, primo de Charles Darwin, cunha o termo.
A eugenia apresenta duas feições. A chamada eugenia negativa envolve a eliminação sistemática dos assim chamados "traços biológicos indesejáveis". A eugenia dita positiva preocupa-se com a aplicação de uma reprodução seletiva, de modo a "aprimorar" as características de um organismo ou espécie.
O boom mundial da eugenia se deu nos Estados Unidos, durante a chamada Grande Depressão, no final dos anos 1920. Mas começa em 1890, como ideologia da elite branca, anglo-saxônica e protestante (wasp), ávida por impedir que o "sonho americano" fosse estendido às hordas e hordas de imigrantes que buscavam nos EUA uma vida melhor. Os laços de sangue e a hereditariedade passam a ser vistos como muito mais importantes do que os fenômenos sociais, econômicos e culturais.
Em 1906, a American Breeders Association (Associação Americana dos Criadores) instaurou o primeiro Comitê Sobre Eugenia. Propunham-se a investigar e descrever a hereditariedade nos seres humanos, ressaltando as virtudes de uma "raça superior" e apontando os desvios e perigos de uma sociedade cujo crescimento repousaria na reprodução massiva de uma "raça inferior". O conselho diretivo desse comitê contava com grifes universitárias ? como David Starr Jordan, reitor da Universidade de Stanford e Charles Davenport, professor emérito da Universidade de Chicago. Em 1913 foi fundada, também nos EUA, a Associação de Eugenia e, em 1922, o Comitê para a Eugenia.
Um discurso proferido pelo vigésimo sexto presidente dos EUA, Theodore Roosevelt (1901-1909), dá melhor dimensão ao que passou a representar o fenômeno eugênico:
"Um dia perceberemos que o principal dever, o dever inevitável de um cidadão correto e digno, é o de deixar sua descendência no mundo. E também que ele não tem o direito de permitir a perpetuação do cidadão incorreto. O grande problema da civilização é assegurar um aumento relativo daquilo que tem valor, quando comparado aos elementos menos valiosos ou nocivos da população. O problema não será resolvido sem uma ampla consideração da imensa influência da hereditariedade. Eu desejo muito que se possa evitar completamente a procriação de pessoas erradas. E o que se deve fazer, quando a natureza maligna dessas pessoas for suficientemente flagrante? Os criminosos devem ser esterilizados, e aqueles mentalmente retardados devem ser impedidos de deixar descendência. A ênfase deve ser dada à procriação de pessoas adequadas."
A primeira lei dispondo sobre eugenia foi promulgada nos EUA, em 1924, e vigorou até 1965. Pretendia alterar toda a composição étnica e racial dos Estados Unidos para satisfazer os padrões estabelecidos pelos defensores da eugenia. O movimento eugênico mundial, sob a influência dos EUA, começa a declinar com a ascensão de Adolf Hitler. Quando o Terceiro Reich chega ao poder na Alemanha, em 1933, o ministro do Interior Wilhelm Frick anunciava ao mundo que "o destino da higiene racial do Terceiro Reich e do povo alemão estará unido, de forma indissociável".
Em 14 de julho de 1933, Hitler decreta a Lei de Saúde Hereditária, usada como primeiro passo de um programa eugênico de eliminação em massa das "raças inferiores", e que culminou no massacre de 6 milhões de judeus, nos anos que se seguiriam. O chefe do programa eugênico do Reich era o médico Josef Mengele.
Durante os anos 1930, a Sociedade Americana de Genética quis condenar formalmente a política genética do Reich. Mas jamais havia votos suficientes para a condenação. Em 1936, a Universidade Alemã de Heidelberg concedeu um título honorífico a Harry Laughlin, cientista americano que impulsionava o movimento eugênico mundial.
A condenação formal à eugenia começa apenas em 1977, durante o Fórum da Academia Nacional de Ciências sobre o DNA. Em seu discurso, o biólogo Ethan Signer, do Instituto Tecnológico de Massachusetts, alerta que "na última vez que se pensou numa criança ideal, ela era loira, com olhos azuis e genes arianos".
O uso da manipulação dos genes, mesmo para evitar doenças congênitas, é ainda duvidoso. Parecer emitido pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), na metade dos anos 1990, alerta o seguinte: 106 pesquisas clínicas realizadas em 597 pacientes revelam que "a eficácia clínica de qualquer protocolo de terapia genética não pode ainda ser definitivamente demonstrada, apesar dos relatos casuais de sucesso".
Nós e a mídia esperamos da guerra toda essa objetividade histórica. Mas, como disse Carl Orff na primeira estrofe de Carmina Burana, "o acaso impera sobre o mundo".
(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor de jornalismo na ECA-USP e na Unifiam (SP), consultor de jornalismo da Unesco no Brasil
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