ASSÉDIO MORAL
Luiz Weis (*)
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou na quinta-feira (6/12), por unanimidade, um projeto provavelmente tão pouco conhecido quanto o seu autor, o deputado Marcos de Jesus, do PL pernambucano.
O paradoxal é que, por definição, a proposta interessa a todos os assalariados brasileiros ? antes a alguns do que a outros, porém, conforme a natureza de seu trabalho e as condições, no sentido amplo da palavra, em que é exercido. Não é preciso ter passado mais de um dia inteiro numa redação para saber que os jornalistas estão entre aqueles com quem o assunto tem tudo a ver.
O projeto pretende punir com até dois anos de cadeia o assédio ? moral, no caso ? nos locais de trabalho. A expressão, como já se verá, talvez não seja das mais felizes, porque sugere uma duvidosa analogia com aquele outro assédio que consiste em o (a) chefe chantagear o (a) subordinado (a) com o infame "dá ou desce": sexo como moeda de troca para subir no emprego ou para não cair em desgraça.
O assédio que o deputado quer castigar não envolve nenhum dá-cá, toma-lá. Mas, se não é pior do que esse, com certeza é muito mais freqüente e inferniza a vida e a saúde de um número incomparavelmente maior de trabalhadores.
Segundo o projeto, estará cometendo assédio moral o chefe que depreciar a imagem ou o desempenho do chefiado, ou que o tratar com rigor excessivo, ou ainda que dele exigir missões impossíveis, como fazer em um dia o que sabidamente leva, digamos, uma semana.
Baseado em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo os quais 13 milhões de europeus se consideram destratados no emprego e têm problemas de saúde por isso, diz o deputado que "essas situações criam danos físicos e emocionais ao trabalhador". Os jornalistas que o digam.
Não bastassem os ossos irremovíveis do ofício (sendo o maior e mais dorsal de todos a maldição do fechamento) e o brutal acréscimo da carga de trabalho (resultado do downsizing das redações, onde, hoje em dia, se espera de cada qual que faça o que havia três para fazer há uma ou duas gerações de profissionais), exerce-se o jornalismo, em qualquer de suas modalidades, sob o tacão do que se poderia chamar, com perdão pelo pedantismo, "cultura autoritária de comando".
Ela não raro credencia quem manda mais a tratar quem manda imediatamente menos, e assim por diante, até o degrau mais baixo da hierarquia, como algo parecido, em menor ou maior grau, com o proverbial cocô do cavalo do bandido.
Essa cultura, como se sabe, é comum a inumeráveis atividades, e, à parte quaisquer outros fatores, tende a se acentuar quanto mais verticalizada for uma estrutura produtiva.
O tempo e o erro
Chefes grosseiros, idiossincráticos, centralizadores, donos-da-verdade, com o nariz nas núvens e o pé no pescoço dos subalternos, e que, mesmo quando merecem o cargo, provocam antes medo do que respeito ? eis uma realidade tão antiga e banal como o trabalho coletivo organizado. Só não é mais velha, é o caso de dizer, do que andar para a frente.
Quem, por exemplo, nunca ouviu falar nos Dez Mandamentos do Chefe? "Primeiro: O chefe tem sempre razão. Segundo: Na improbabilíssima hipótese de isso não ser verdadeiro, vale o mandamento anterior" ? e por aí. Mas o jornalismo e profissões assemelhadas favorecem especialmente o mandonismo, a chefia imperial e o tratamento rude, quando não humilhante, aos de baixo.
Uma redação, para começar, é um dos ambientes profissionais mais competitivos que existem: nem tudo vale, mas também nem sempre se sabe onde fica a linha da cintura. Além disso, embora cada vez mais submetido a fórmulas (algumas indispensáveis, outras um breve contra a qualidade do produto), o trabalho jornalístico requer grandes doses de criatividade e, em geral, acaba recompensando a mistura certa de inspiração e transpiração.
Não só, mas principalmente por isso, nada mais natural que a taxa de vaidade por metro quadrado numa redação seja muito superior à média de outros lugares de trabalho. O jornalismo é ainda uma atividade de intensa interação pessoal entre os colegas e fortemente "empatotada". Chefes de redação, por fim, são equiparados a maestros e generais, condottieri, em suma ? ou assim se consideram. Daí ao culto da personalidade, como se dizia na velha e má Rússia soviética, não precisa muito.
Mesmo quando não se chega a tanto, precisa menos ainda para que até jornalistas de fino trato na vida particular, além de democratas sinceros (dos cafajestes e fascistas enrustidos nem é o caso de falar) se comportem, nas suas posições profissionais, de forma tal que pelo menos os seus subordinados considerarão incivil, desdenhosa ou ofensiva ? ainda que, no mérito, aqueles honrem o Primeiro Mandamento do Chefe.
E, bem pensadas as coisas, salvo uma ou outra fabulosa raridade, não há quem exerça ou tenha exercido chefia numa redação em condições legítimas de atirar a primeira pedra, por jamais ter confundido o justo esporro profissional com agressão à dignidade do chefiado.
É sutil, quase invisível a linha que separa uma certa rispidez do primeiro com o segundo ? inevitável nos momentos de maior tensão, quando se corre contra o tempo e contra o erro ? da forma de agir em que o deputado cujo projeto motivou este texto provavelmente estava pensando quando lhe ocorreu a idéia luminosa de capitular no Código Penal o crime de assédio moral.
Dado o adiantado da hora no atual período legislativo, a Câmara só voltará a se ocupar da matéria no ano que vem. É de esperar que as centrais sindicais façam pressão para levá-lo adiante. Os jornalistas podiam aproveitar a ensancha para discutir o assunto ? e dar uma força à iniciativa do bom Jesus.