MÍDIA & MERCADO
Noenio Spinola (*)
Você entra num revendedora de automóveis e compra um carro financiado para pagar em oito prestações até janeiro de 2004. Num mundo perfeito, do outro lado alguém iria a um banco na mesma hora e depositaria dinheiro por oito meses, a uma taxa prefixada, no exato valor do seu empréstimo. O banco pegaria esse dinheiro e emprestaria a você, adicionando aos juros uma taxa qualquer pela prestação de serviços.
Como o mundo não é perfeito, as entradas e saídas de dinheiro, bem como suas taxas, acontecem de forma descasada. Para driblar a incerteza, as instituições financeiras usam mercados futuros, onde fixam hoje a taxa de amanhã. O volume desses negócios em giro na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) atinge diariamente, em média, 30 bilhões de reais, ou pouco mais de 10 bilhões de dólares.
No meio do tiroteio sobre a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central, envolvendo as taxas básicas de juros, a imprensa de um modo geral viu tudo, menos o que estava acontecendo com os juros futuros. Em novembro do ano passado, quando ainda era incerta a face final que tomaria o governo Lula, os juros futuros para janeiro de 2004 bateram no pico de 33,6% ao ano. De lá para cá, à medida que o governo ia sinalizando sua intenção de controlar a inflação e manter os gastos públicos sob controle, essas taxas literalmente despencaram. No dia 26 de maio estavam cotadas em torno de 23%. Abaixo, portanto, da taxa de 26,5% sinalizada pelo Banco Central através da Selic.
Relutei bastante em escrever este artigo e atender à solicitação do Observatório da Imprensa, pois, como sou Diretor de Imprensa e Mídia da BM&F , o que disser aqui poderá ser interpretado como "defesa do desalmado mercado". Interprete como quiser. Minha full disclosure sobre o cargo que ocupo abre espaço para que continue a argumentar às claras.
No meu modo de ver, três razões impediram que a mídia fosse buscar no mercado a melhor sinalização para verificar o que de fato está acontecendo com os juros neste país:
** desconhecimento sobre como funcionam os contratos futuros;
** alinhamento com as fontes que defendem a tese de que um pouco de inflação pode reativar a economia e os juros estão impedindo que isso aconteça, pois são um freio para a procura de crédito;
** crença no Estado como ente mágico, que pode resolver os problemas monetários e fiscais como um grande benfeitor ou um pai milagreiro.
1. O desconhecimento
O desinteresse ou até mesmo a ignorância sobre como funcionam os mercados futuros deriva da forma como a economia brasileira foi gerenciada desde o Império e ao longo de várias Repúblicas. Como a inflação era muito alta, os preços futuros não tinham visibilidade alguma e os mercados a termo eram muito limitados. A economia girava "da mão para a boca". Assim, as editorias de economia dos jornais sempre se voltavam para a sinalização de vários órgãos públicos e indexadores de todo tipo.
Com a inflação desvairada, os jornais passaram a publicar páginas e mais páginas de indexadores. Todo mundo entendia de correção monetária. Eu, como editor de um jornal de grande porte, certa vez resolvi desafiar a lei da gravidade, publicando na primeira página uma chamada sobre o juro "real" (juro menos correção) pago pela caderneta de poupança, sem mencionar a correção monetária. Foi um escândalo. Boa parte do marketing das agências de publicidade girava, na época, em torno da ilusão da correção monetária e alguns contatos foram pedir meu pescoço ao editor-chefe ? que não deu.
Com o passar do tempo a racionalidade ganhou algum espaço. O Banco Central apareceu nos anos 1970 e, de lá para cá, foi aos poucos se transformando no grande balizador de taxas. Como o BC gerencia a rolagem da dívida pública, quando ele entra no mercado tomando dinheiro sinaliza quanto o governo está disposto a pagar, e a partir daí todos passaram a se pautar.
Os mercados futuros, tal como existem hoje, apareceram por volta de 1985. Só depois da relativa estabilidade de preços do Plano Real esses mercados passaram a sinalizar o que poderia acontecer com os contratos negociados a prazos mais longos. No meu modo de ver, uma parte das redações ainda é saudosista dos tempos da correção monetária e das enormes tabelas da indexação generalizada. É disso que entendem.
2. Um pouco de inflação não faz mal
Essa é a corrente mais sórdida que pode existir, tanto no governo quanto nas redações, se é que existe. Como faço parte da geração que viveu o auge do sistema de indexação, posso afirmar que ela e sua máscara dourada, a correção monetária, foram grandes responsáveis pela má distribuição da renda no país. Se o tiroteio sobre o Banco Central e o Ministério da Fazenda do governo Lula refletir isso, Deus nos acuda. Teremos um período de reaquecimento artificial da economia, a inflação voltará com o estilo "meia virgindade" e no momento seguinte estaremos outra vez com uma economia prostituída à espera de um golpe de direita, de um caudilho, de um salvador da pátria de extrema-esquerda, coisas do gênero.
3. O Estado como ente milagreiro
Quem acredita nisso vê o Estado com uma varinha de condão que pode balizar os juros: esta vertente, que encontra muitos defensores na mídia, é uma derivada de bom caráter da situação anterior, só que leva a péssimos resultados. As pessoas se esquecem de que o Estado é igual a uma família: gaste mais do que o salário e se endivide com o cheque especial. O que acontece? É possível que nessa categoria se incluam os que querem baixar os juros no grito, com argumentos do tipo "é um escândalo manter os juros no Copom no nível em que estão, pois cada ponto percentual leva 9 bilhões de reais para os cofres dos banqueiros…"
O erro está em esquecer que os banqueiros aplicam em títulos públicos que vão esbarrar nos fundos de investimento, que por sua vez pertencem a milhares de poupadores. Portanto, a face diabólica do mercado tem rosto, e o rosto é o de cada um de nós que tenha ou administre uma pequena ou grande poupança. O silêncio da mídia sobre a queda dos juros futuros fortalece a vertente milagreira, pois não há como negar que se as taxas básicas continuarem altas, a poupança que o governo gerar irá para os juros, e não para estradas, pontes ou crédito para a indústria.
Por tudo o que vi peregrinando como jornalista (três anos em Washington, quatro em Moscou, três em Londres como correspondente e vários anos aqui no Brasil entre jornais como a Luta Democrática, Tribuna da Imprensa, Última Hora, Jornal do Brasil, Estado de S.Paulo e emissoras de rádio em São Paulo), o Estado benfeitor e o líder milagreiro têm pernas curtas. Mas muita gente ganha dinheiro à sua sombra e certamente as tesourarias dos bancos também ganham.
O que fazer? Há quem defenda que a solução para acabar com baratas é tocar fogo na casa. Talvez seja melhor fazer antes um exercício de racionalidade.
(*) Jornalista