ELEIÇÕES 2002
Sérgio Seabra (*)
No pequeno espaço em que a imprensa trata da pré-candidatura de Eduardo Suplicy à presidência, ela o faz, rotineiramente, fixando-lhe a imagem de "Dom Quixote". Pois bem. Mesmo quem conhece pouco do trabalho público do senador sabe de seu entusiasmo com o Projeto de Renda Mínima, que investe contra o monstro medieval da má distribuição de riquezas no Brasil. Para a imprensa servil aos castelos de cartas do dólar e do mercado financeiro, encarar a situação de desigualdade do Brasil real é, certamente, o mesmo que lutar com moinhos de vento.
Esta má vontade para com o senador se traduz no seu virtual alijamento da disputa. Afinal, por que as pesquisas de intenção de voto não consideram em seus cenários o pré-candidato a presidente Eduardo Suplicy?
Aos muitos eleitores de Lula, cabe dizer desde já: não se trata de questão capciosa para desmerecer o valor genuíno de Lula como líder e principal nome não só do PT, mas de todo o quadro político brasileiro, para dar ao país um rumo que se desvie do atual. Lula é este líder. A pergunta se fundamenta, primeiro, porque Eduardo Suplicy se lançou candidato e foi ignorado; segundo, porque Lula, ainda desta vez, "não leva" ? uma impressão compartilhada por muitos.
Miseravelmente, sou um sujeito que ainda acredita na possibilidade do PT existir como partido. Daí que, carismas à parte, seja Lula ou Suplicy o presidente, o programa do PT deverá ser o mesmo. E de mais a mais, uma pequena provocação: quem tem mais a cara deste PT moderado e que quer se fazer aceito: Lula ou Suplicy?
O ato de se encarcerar nos garantidos 30% de votos de Lula no primeiro turno pode sustentar a ida ao segundo e uma grande bancada de deputados. Mas o menosprezo para com a votação de Suplicy no estado de São Paulo, calcanhar petista nas disputas anteriores, é de se estranhar. Na acirrada disputa com o candidato mão-santa-tirado-da-cartola Oscar, o senador elegeu-se com 6,7 milhões de votos ? dois milhões a mais que Lula em seu combate com o presidente durante a terraplenagem da reeleição. Assim como a de Lula, a votação de Suplicy supera o voto dos petistas.
Poucos acreditam que o senador tenha chance de vencer Lula nas prévias do dia 3 de março. Eu, tampouco. Que a direção do PT tenha Lula como seu candidato ideal, e, por conta disso, não mova palha para a realização da prévia ? e mais: que não a celebre como festejo democrático ?, problema exclusivo do PT, que deve ser internamente discutido.
Interessa questionar aqui a razão pela qual os institutos de pesquisa, a mídia e seus detentores diretos e indiretos teimam em desconsiderar o pleito proposto por Suplicy.
Letras miúdas
Hélio Gastaldi, gerente de projetos do Ibope, apresentou como critérios a "maior evidência" do candidato e o "bom senso". Na tentativa de buscar elementos mais objetivos, passamos pela "definição dos candidatos de um grande partido" e chegamos enfim à conclusão arbitrária: "a CNI (Confederação Nacional da Indústria) não cogitou o nome de Eduardo Suplicy". A CNI foi a patrocinadora das pesquisas públicas do Ibope ao longo de 2001. No período, muitos governistas foram testados até mesmo em simulações de segundo turno para lá de improváveis ? Lula vs. Aécio Neves, por exemplo. Acaso interessa à entidade da indústria encontrar um outro nome na oposição que tenha um índice de rejeição menor que o de Lula?
Já as pesquisas do Sensus foram patrocinadas pela CNT, Confederação Nacional dos Transportes, cujo presidente, Clésio Andrade, é também presidente do PFL mineiro. Ricardo Guedes, diretor do Sensus, informa que os critérios para a inclusão de nomes na pesquisa levam em conta a relevância do candidato. Por este critério, Suplicy é menos relevante que Jaime Lerner, Paulo Renato, Aécio Neves e Delfim Netto. Questionável. Trata-se, então, de "critério interno próprio", nas palavras de Guedes, que prometeu para fevereiro a inclusão de Suplicy na próxima pesquisa. O ano que passou, passou.
Não foi possível contar com a mesma atenção no Datafolha. Com Mauro Paulino, seu diretor, em férias, Alessandro Janoni, diretor-adjunto, não atendeu os reiterados pedidos de entrevista. Mas os critérios parecem também ser "internos" e "próprios", já que Suplicy sai da disputa para presidente em março de 2001 e aparece como candidato a governador em dezembro de 2001. Geraldo Alckmin, ao contrário, seguiu sendo cotado para presidente até novembro do mesmo ano. Em janeiro de 2002, até Sílvio Santos foi cotado.
As pesquisas eleitorais são em si um aparato viciado. Não porque falíveis, mas porque necessariamente manipuláveis. A pura e simples transformação da foto instantânea em antecipação do voto já a caracteriza assim. Em 1998, a Folha de S.Paulo destinou aos candidatos o espaço em seu noticiário de acordo com a intenção de voto apurada nas pesquisas do Datafolha ? "(…) a distribuição do espaço dedicado pelo jornal em suas edições a Lula e Suplicy espelham o apoio minoritário que as duas candidaturas têm recebido da sociedade", explicou uma Nota da Redação. Para a Folha, os números de seu instituto de pesquisa espelham, sempre, o "anseio da sociedade".
Precisa mais? Precisar, não precisa, mas tem. Se fulano cai quatro pontos, fulano "despenca"; se beltrana sobe quatro, "dispara". De acordo com quem seja fulano e beltrana, claro. Os números, porém, estão todos dentro da margem de erro ? explicada, quando explicada, em letras miúdas. Na TV, o efeito dessa manipulação verbal é nefasto, sobretudo nas oportunidades em que fulana "ultrapassa" beltrano em um, dois ou três pontos percentuais.
Garrincha e os "joões"
Essas são as manipulações grossas, toscas, que perdem apenas para as pesquisas definitivamente compradas por um ou outro ? que existem aos montes, sobretudo fora dos grandes centros. Mas há as manipulações mais sutis, como as que determinam o que deve ser discutido durante o período eleitoral ? em 2002, debateremos o gênero do candidato e não sua história política, nem a de sua família ou de seu partido. Alguém duvida? O afastamento de Suplicy das aferições também deve estar entre estas manipulações sutis, já que ninguém notou sua ausência.
O tema ganhou minha preocupação quando Gilberto Dimenstein propôs ? em certo tom jocoso mas com o bom fundamento de discutir o poder da mídia e o fenômeno Roseana ? o nome de Supla para presidente, fazendo a ilação de que o filho, por conta do sucesso no programa Casa dos Artistas, poderia se sair melhor do que o pai nas pesquisas. Foi justamente quando atinei para o fato de que Suplicy era solenemente ignorado.
Ao longo de 2001, o Ibope divulgou 17 cenários diferentes do pleito presidencial. Suplicy não apareceu em nenhum deles. Na pesquisa do Sensus, em 15 de dezembro de 2000, o senador obteve 12,1%. Pelo mesmo Sensus, Suplicy fez parte da lista de nomes apresentados para a aferição de rejeição e reconhecimento, realizada em fevereiro de 2001. Os supostos eleitores responderam, a partir da lista, a pergunta "em quem o sr.(a) votaria ou não votaria para presidente da República?". Suplicy registrou 10,7% de aceitação imediata, 43,5% de rejeição ? parelha à dos demais ?, 12,2% de respostas indecisas ("talvez votaria") e uma significativa taxa de 28,4% de desconhecimento. No Datafolha, o senador Suplicy apareceu com 9% das intenções de voto na pesquisa do dia 21/3. Depois, sumiu. Por quê?
Até a publicação deste texto, o ministro e dublê de candidato Raul Jungmann aparecerá nas pesquisas. É esperar para ver.
Em julho, o Ibope realizou pesquisas considerando quatro candidatos do PFL à presidência ? além de Roseana, Jaime Lerner, Marco Maciel e Jorge Bornhausen. Pelo PSDB, os vários institutos de pesquisa, ao longo de 2001, consideraram pelo menos cinco candidatos ? José Serra, Tasso Jereissati, Geraldo Alckmin, Paulo Renato e Aécio Neves. Ora, embasada nas pesquisas que lhe cacifaram, Roseana Sarney rechaça ser a vice de Serra. Decisão dela e de seus inventores. Não merecem ter, também, os filiados do PT o acesso a tal informação para escolher o seu candidato? A divulgação de pesquisas eleitorais não se ancora justamente na liberdade de informação? Pois que esta liberdade valha para todos.
Já se discutiu a proibição da divulgação de pesquisas de intenção de voto, que é solução duvidosa porque teima em ignorar a realidade. As pesquisas aí estão e, se proibidas, circularão por poucas mãos e clandestinamente em forma de boatos. Melhor, então, que sejam divulgadas de forma regulamentada, exigindo-se a mais absoluta transparência, a partir dos critérios que determinam a escolha dos nomes apresentados nas cédulas, a ordem das questões e toda a metodologia empregada, com especial destaque para as tais margens de erro ? o que restringiria sua divulgação pela TV, justamente onde a manipulação produz os piores efeitos.
Afora os danos eleitorais, contudo, há um efeito que se prolonga para além da abertura das urnas: a ausência do debate político, ideológico, propositivo. Os programas eleitorais de 30 segundos vieram, aliás, para transformar o debate político em pó, sabão em pó.
A partir das pesquisas, debate-se sobre os números, quem está na frente, quanto subiu, quanto desceu. No mais das vezes, sempre dentro da larga margem de erro. A aberração de se curvar aos números estatísticos faz lembrar de um texto da Folha de S.Paulo (28/11/94) sobre o campeonato brasileiro de futebol de 1994: "O Botafogo possui 67% de possibilidade de seguir em frente, segundo o Datafolha. São três os resultados possíveis num jogo: vitória, empate ou derrota. A probabilidade de cada um deles ocorrer é de 1/3. O Santos depende diretamente de uma derrota do Botafogo amanhã. Se isto acontecer (a chance é de 33%), o time passa às quartas-de-final". E pensar que, muitos anos antes, Garrincha, para quem os moinhos de vento chamavam-se "joões", fez o que fez e nenhuma estatística deu conta do ocorrido.
(*) Jornalista