Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os mortos expurgados do domingo

PRIMEIRA PÁGINA

Nelson Hoineff (*)

Quem comprou ou recebeu, ainda no sábado, a primeira edição de O Globo de domingo (14/4) leu, com grande destaque na manchete principal do jornal, que no Rio de Janeiro contabiliza-se atualmente um homicídio por hora. É um dado impressionante, tirado de fontes confiáveis, como mostra a matéria estampada nas páginas 18 e 19 do jornal. Um assassinato por hora é mais do que acontece, por exemplo, na guerra aberta do Oriente Médio. Na sexta-feira, em Jerusalém, uma palestina suicida explodiu um ônibus matando seis pessoas ? e o fato foi parar, compreensivelmente, nas manchetes do mundo inteiro. Um assassinato por hora numa grande cidade, durante pelo menos um mês, traduz um quadro possivelmente inédito em qualquer lugar do mundo em tempos de paz. A manchete do Globo era mais do que justificada.

Os leitores que só tiveram acesso ao jornal na manhã do dia seguinte, no entanto, eram informados naquele mesmo espaço que, abandonada pelo seu partido, a ex-governadora Roseana Sarney havia desistido de sua candidatura à presidência da República. A pedra já havia sido cantada dias antes e a própria Veja, que circularia no domingo, lembrava na capa que Roseana e Jorge Murad haviam cometido o grave erro de achar que o Brasil era igual ao Maranhão, seja lá o que isso quisesse dizer com isso. Mas o jornal carioca, pelo menos a partir de seu terceiro clichê, elegia como destaque principal o anúncio feito pela ex-governadora na tarde de sábado.

A macabra estatística do Rio caía então para segundo plano. Ou não exatamente. A segunda manchete informava que o empresário Pedro Carmona, que dois dias antes assumira o poder na Venezuela, já não comandava mais o país, e que o presidente deposto Hugo Chavez ensaiava a sua volta triunfal. (A queda e ascensão de Chavez, logo num final de semana, acabou fazendo com que quase todas as revistas semanais nascessem mortas, principalmente as que explicavam em manchete o porquê do fim do chavismo.)

Em outras chamadas, de qualquer forma, a primeira página do Globo dizia que Pedro Malan pode mover processo contra Lula, mostrava os novos empregos criados pelo crescimento do Terceiro Setor e chamava para o quadro da cultura do Rio no governo Benedita da Silva. Havia também chamadas para a campanha do censo estrelada pelo ator Marcos Palmeira e para o chororô dos homens públicos no suplemento Jornal da Família.

Contra a barbárie

E os crimes no Rio? Bem, os crimes no Rio não caíram nem para terceira, nem para quinta manchete. Simplesmente caíram. Foram expurgados. Estavam lá, na página 18. Mas já não eram, segundo o jornal, motivo de assombro. Para o leitor do interior, ou para os que compraram o jornal no sábado à tarde, 24 assassinatos por dia eram uma cifra importante. Para os leitores da capital que só iriam ler o jornal no domingo, isso não passava de uma notícia a mais, perdida na editoria de Cidade. E sem direito a uma linha de suíte na segunda-feira.

Ou era uma notícia falsa ou os cadáveres milagrosamente perderam importância. Se falsa, a "barriga" mereceria ela própria a manchete de página no terceiro clichê. Mas a notícia continuava verdadeira, como comprovava o texto. A verdade é que a guerra social em curso no Rio, num espaço de quatro horas, passou a valer menos que a campanha publicitária de Marcos Palmeira.

Banalizamos nossas tragédias já não mais pela busca do show, mas como um instrumento primário de defesa. Perdemos a capacidade de nos espantar, não pela reedição do fato conhecido, mas para mantermos traços de sanidade mental. E no entanto não é normal que duas pessoas estejam sendo assassinadas enquanto esse texto é escrito. Essa é uma realidade abjeta, intolerável, que deve e tem que ser combatida. Para combatê-la, o caminho natural é o da indignação que leva à revolta. A história da humanidade lembra várias vezes em cada século que só a indignação das populações foi capaz de começar a estancar os grandes crimes.

Informar a população e estimular a indignação contra a barbárie é o que pode existir de mais nobre na imprensa. E um morto por hora no Rio de Janeiro é, e sempre será, motivo de horror e indignação.

(*) Jornalista e produtor de TV