Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os nossos cavaleiros de Jedi

SEITAS MIDIÁTICAS

Muniz Sodré (*)

Uma curiosa notícia do Globo On Line pode servir de pretexto para uma necessária reflexão sobre o fenômeno em curso na sociedade brasileira. Segundo a nota, o último censo realizado na Austrália revela que 70 mil habitantes daquele país, cerca de 0,37% da população, se dizem seguidores da religião "Jedi". Os fãs da saga cinematográfica Guerra nas Estrelas bem sabem do que se trata: é a seita esotérica dos mocinhos. "Cavaleiro Jedi" é o nome dos iniciados, o que já fornece material para outro variante do culto na Inglaterra. Ali, segundo consta, muitos já se admitem "cavaleiros Jedi".

Há algum tempo, vimos chamando a atenção para o fenômeno das seitas midiáticas. Em Antropológica do Espelho (Vozes, 2002), ressaltamos que fenômeno "mito-religiosidade" midiática decorre, por um lado (a) de uma lógica mercantil, profético-moralista e auto-escatológica, que troca o antigo Bem ético pelo bem-estar individualista, associando salvação e consumo. "Suntuoso é o caminho para a salvação ? consuma e sinta-se bem!", já ironizou um crítico da cultura.

Por outro lado (b), da articulação da rotina cotidiana dos indivíduos (onde antes a religião tradicional intervinha com seus discursos reguladores) com o efeito (quase divino, à beira do sobrenatural) de simultaneidade, instantaneidade e globalidade, característico da intervenção das modernas telecomunicações no tempo-espaço, que contrai por aceleração da temporalidade o espaço físico convencional e tende a abolir o tempo por eternização do instante sem duração, confluindo para uma visão de ciberespaço próxima à concepção cristã de paraíso etéreo; e, ainda (c) da ideologia que vê na suposta racionalidade comunicacional o "melhor dos mundos".

O fato é que toda e qualquer experiência subjetiva do sobrenatural ou da transcendência, a que se dê o nome de religião, depende fortemente de práticas mediadoras, que variam do ritual a formas escritas. No âmbito da comunicação massiva deste terceiro milênio, reprisa-se a velha combinação da prática mediadora com a vivência mística, só que agora sob a égide da mídia. Sob o influxo da retórica midiática, do espetáculo cinematográfico ou, na realidade cotidiana, dos híbridos de sacerdotes-atores-homens de marketing, os novos crentes são seduzidos, como os já antigos, pela promessa de um democrático acesso direto à divindade.

Terceira natureza

O fenômeno teve partida nos Estados Unidos, desde os anos 1970, quando, centrada no messianismo do espetáculo místico, a "igreja eletrônica", ou ainda "igreja comercial", passou a constituir verdadeiros impérios televisivos. Neste contexto, tudo se vende e se compra ? da fé à redenção ?; e marketing, teologia e política andam de mãos dadas.

Constrói-se por trás disso tudo, em termos políticos, a ambígua noção de "maioria moral", mas também um ainda mal estudado bloco eleitoral, que tende a transformar as composições parlamentares. Claro, a explicação para todo o fenômeno não se reduz à dimensão midiática. Mas é preciso atentar para o fato de que o "midiático", enquanto categoria particular da forma-espetáculo, pode existir fora dos suportes tecnológicos, na medida em que coincida com o "mundo em si", separado da ação política imediata do homem e organizado pela abstração mágica do espetáculo ou da profecia. Ou seja, a comunicatividade em si mesma torna-se espetacular e fascinante.

Além da mídia em sentido estrito, primeiro será preciso levar em conta a forte emotividade individual e comunitária que faz dos rituais das novas seitas ou denominações religiosas espetáculos comparáveis aos da indústria midiática do entretenimento; segundo, a importância da moeda no relacionamento intersubjetivo; terceiro, a transformação imaginária de cada individuo num herói folhetinesco em luta contra um grande vilão, intitulado Satanás; quarto, e como consequência lógica do terceiro, a obrigação individual de incorporar a retórica (ou o marketing) da evangelização; quinto, a transvaloração da vida cotidiana, em que simulacros de soluções para problemas práticos substituem a remota escatologia da salvação; sexto, a estimulação de fomas de vida comunitária, reais ou imaginárias, num universo de populações progressivamente excluídas das benesses da renda pela economia global de mercado. E assim por diante.

Alguns não deixarão de perguntar: Se o sentimento religioso pode nascer da relação do homem com a velha natureza, por que não, agora, dessa "terceira natureza", que é a forma de vida midiática ou tecnológica? É uma boa pergunta, que merece detalhamento e exame. A questão imediata, que se coloca para o jornalismo investigativo e interpretativo, é de detectar as conseqüências político-sociais das seitas midiáticas que proliferam nas periferias miseráveis do Terceiro Mundo. Esfarrapados "cavaleiros de Jedi" podem estar elegendo "mocinhos" e "mocinhas" que fariam tremer de susto o cineasta George Lucas.

(*) Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)