CORREIO BRAZILIENSE
Sergio Goes de Paula
(*) e Patrícia Souza Lima (**)
O pano de fundo
A primeira reação do governo foi através do
aparato da lei: a 14 de outubro de 1808, quatro meses após
o lançamento do jornal, o príncipe regente enviou
reservadamente uma provisão ao juiz da Alfândega proibindo
a divulgação de avisos e anúncios, impressos
ou não, que não tivessem licença do Desembargo
do Paço. A proibição era genérica, mas
a novidade que vinha da Inglaterra era parte da causa e sofria-lhe
as conseqüências. Seis meses depois, a 27 de março
de 1809, nova proibição, desta vez específica:
d. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, ministro da Guerra
e dos Negócios Estrangeiros, oficiou reservadamente ao mesmo
juiz da Alfândega, a pretexto da apreensão que este
fizera dos "Manifestos impressos que o autor da obra mandou
para o público ter conhecimento da mesma". No ofício,
refere-se especificamente ao Correio Braziliense, "brochura
que veio de Londres cheia de calúnias [e] atrozes falsidades
contra várias pessoas e das maiores absurdidades sobre a
economia política" [apud M. Dourado, op. cit.,
t. 1, p. 270]. Em 30 de maio o intendente de Polícia dá
a público a proibição.
Considerando-se o ritmo da época, os prazos em que se sucedem
as medidas administrativas quase podem ser considerados vertiginosos,
mas a ocorrência de cinco proibições específicas
até início de 1812 mostra que elas não tiveram
o resultado desejado. Basta lembrar a total ausência de estrutura
fiscalizadora em portos brasileiros que acabavam de ser abertos
para ver que seria fácil fazer chegar o jornal a seus leitores,
"pelo costume de fazer contrabando", como reconhece o
próprio Linhares. Na verdade, os avisos oficiais de proibição
tinham efeito contrário e funcionavam como propaganda, a
propaganda que a provisão do príncipe visava reprimir.
É o que diz, alguns anos depois, a respeito de outro jornal
também proibido, o correspondente português de O
Campeão Portuguez ou o Amigo do Rei e do Povo:
Aqui chegou do Rio de Janeiro a ordem para proibir o Campeão.
Este governo, já mais prudente, não quis tomar
sobre seus ombros este pecado do estulto e velho Portugal; contentou-se
em mandar pregar pelas esquinas de Lisboa a proibição,
assim como aparecera em corpo e alma nas esquinas do Rio de
Janeiro; e aconteceu exatamente que nesse dia desembarcasse
são e salvo esse mesmo seu Campeão. Assim,
ao passo que se estava executando este moderado auto-de-fé,
atravessava ele triunfante as ruas de Lisboa, às costas
de um galego que eu ia acompanhando em distância. Não
tenha por isso susto e fique certo que se até agora o
liam cem, de hoje em diante há de ser lido por duzentos
ou mil" [José Liberato, Memórias,
apud José Tengarrinha, História da imprensa
periódica portuguesa (Lisboa: Portugalia Editora,
1965), p. 64].
E com o passar do tempo, o Correio Braziliense era cada
vez mais lido: Luccock se refere à sua larga circulação;
em 1817, Tollenare encontrou exemplares do jornal na Biblioteca
da Bahia; circulavam exemplares em Campo Maior, no Ceará;
o motim fluminense de 26 de fevereiro foi atribuído "à
caixeirada que se nutre com a leitura dos folhetos de Londres"
[C. Rizzini, op. cit., p. 29]; segundo o próprio Hipólito,
"lê-se o Braziliense até no Paço,
sem rebuço algum" [apud C. Rizzini, op. cit.,
p. 30]. O descaso pela proibição era tal que
em 1817, assustados com a conspiração de Gomes Freire
em Portugal e temendo uma possível propaganda da insurreição
de Pernambuco, os governadores do Reino tomaram a medida a que se
refere a citação acima e que também alcançava
o Correio Braziliense [temor infundado: o Correio
Braziliense manifestou-se contra o movimento; ver Sergio Goes
de Paula (org.), Hipólito José da Costa (São
Paulo: Editora 34, 2001), p. 28].
Enquanto no Brasil se buscava impedir a circulação
do jornal, o embaixador português em Londres, d. Domingos
de Sousa Coutinho, tentava medidas diretas contra o jornalista,
já que a boa e velha proibição de publicação,
tão eficaz no Brasil e em Portugal, estava fora do alcance
do governo português: a lei inglesa garantia liberdade de
imprensa. A medida mais forte, deportação ? aplicada
contra outro jornalista (e também diplomata) português,
José Anselmo Correia, "perigoso pelos artigos que escrevia
nas gazetas e no Correio Braziliense", e que d. Domingos
declarava haver "conseguido brandamente pôr fora do país"[ofício
de d. Domingos Coutinho, n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito:
Arquivo Histórico do Itamaraty] ? estava fora do alcance:
Hipólito, escaldado por seus anos na prisão do Limoeiro,
tivera a precaução de solicitar o título de
denizen, estrangeiro residente que obtém ex donatione
regis privilégios de súdito inglês, e estava
a salvo desta segunda arbitrariedade. Ressentido, e talvez para
"queimar" Hipólito, d. Domingos passou à
Corte a falsa informação de que "o duque
de Sussex teve a bondade de o fazer naturalizar inglês",
e não podia ser expulso. E Linhares, impotente, oficia ao
conde de Aguiar reconhecendo a força do adversário,
"pelo conhecimento que ele tem de que pode obrar e atacar impunemente"
[ofícios sobre José Anselmo Corrêa e o autor
do Correio Braziliense, do conde de Linhares ao conde Aguiar;
documento manuscrito: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro].
D. Domingos tinha toda razão: o jornal era mesmo uma "invenção
terrível". Tentou uma medida mais "civilizada",
um processo por calúnia, mas em vão: "Sendo muito
difícil neste país fixar o que é libelo, e
procurando quase sempre os juízes escusar os réus
em favor da liberdade da imprensa, este homem irritado escreverá
coisas que farão muito dano, e não será castigado,
nem se pode mandar fora de Inglaterra" [ofício de d.
Domingos Coutinho, n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito: Arquivo
Histórico do Itamaraty]. Tentou medidas diplomáticas,
e solicitou ao subsecretário do governo britânico a
proibição do trânsito postal do jornal na Inglaterra:
também não teve boa acolhida, sob a alegação
de que, além de ineficaz, a providência seria denunciada
por Hipólito a seus leitores, o que deixaria mal o governo
britânico. É de se observar que em toda esta história
da repressão na Inglaterra ao Correio Braziliense
as autoridades britânicas estão não apenas informadas,
como dela participam; bem mais tarde, em 1817, esta mesma medida
foi outra vez solicitada, mas desta vez o temor aos republicanos
de Pernambuco e os efeitos da conspiração de Gomes
Freire, em Lisboa, foram maiores do que o pudor, e o governo inglês,
a pedido do então embaixador português em Londres,
conde de Palmela, proibiu o embarque do jornal pelos correios e
navios ingleses [M. Dourado, op. cit., p. 293]. Mas sempre em vão:
seja porque a medida fosse para português ver, seja porque
o tráfego se fazia também por navios de outras nações,
para o Brasil continuavam indo "infinitos exemplares",
como dizia d. Domingos [ofício de d. Domingos Coutinho, n.
111, 9/5/1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico do
Itamaraty].
Algumas outras medidas locais, especialmente até 1812, ainda
foram tomadas contra o Correio Braziliense, tais como o confisco,
pelo governador José Narciso de Magalhães, dos exemplares
desembarcados no Pará em 1810; a proibição
de leitura pública do jornal no Rio Grande, em dezembro do
mesmo ano; a aprovação formal de Linhares a esta medida,
no ano seguinte; a ordem do mesmo Linhares aos governadores de Portugal
proibindo a entrada do jornal, em ofício não publicado
e em ordem transmitida à Mesa do Desembargo em março
de 1812. Mas a partir daí, como se verá, as circunstâncias
mudam.
Além de alvo das medidas formais e públicas, o Correio
Braziliense era, evidentemente, tema de correspondências
reservadas ou secretas entre as autoridades portuguesas, e através
delas se pode ver as principais razões dos incômodos
que causava, e que se pode classificar em três ordens: doutrina,
informação e opinião.
Sem pretender fazer a análise do conteúdo doutrinário
do Correio Braziliense, vamos começar por aquilo que
não era problema: Hipólito sempre defendeu o sistema
monárquico e a Casa de Bragança e sempre defendeu
a união entre Portugal e Brasil, só aceitando a independência
quando ela, a seu ver, já se havia consumado. Já as
discordâncias são muitas: quando, por exemplo, Linhares,
no ofício a que se refere a nota 11, fala das "maiores
absurdidades sobre a economia política", o tema em questão
é a crítica feita no jornal à decisão
do ministro de permitir a entrada de navios estrangeiros em apenas
alguns portos brasileiros, e o ataque ao sistema de monopólios
reais. Em vários números do jornal a questão
vem à tona, criticando José da Silva Lisboa (a quem,
por sinal, Hipólito nega qualquer responsabilidade pela abertura
dos portos, medida inevitável num país sede de reino)
e criticando o tratado de 1810 com a Inglaterra, considerado por
Hipólito como lesivo aos interesses portugueses. Outros conflitos
óbvios são a questão das liberdades, a defesa
dos maçons, e a questão constitucional.
No que se refere à informação ? e não
estamos nos referindo aqui às opiniões de Hipólito,
mas a informações anteriormente divulgadas por outros
meios ?, a ação do jornal era muito incômoda
às autoridades. Escrito "na língua que lhe é
mais natural e conhecida" o Correio Braziliense como
que inseria a "nação longínqua e sossegada"
num mundo em transformação, dava-lhe a noção
da importância do tempo em que vivia, atribuía-lhe
um papel, mesmo que pequeno, nas mudanças em curso (cf. CB,
1 [jun. 1808]). Era, assim, anticonservador por excelência.
E mesmo documentos oficiais, como tratados e correspondências
formais, perdiam, ao chegar às páginas do jornal,
o caráter de comunicação entre pares que antes
tinham: a publicação dos termos da convenção
de Cintra entre ingleses e portugueses e que dizia respeito às
condições da retirada dos franceses de Portugal, criou
grande mal-estar, explicitado na correspondência oficial,
por revelar os termos prejudiciais a Portugal em que se fez o acordo.
Finalmente, as reações das autoridades às
opiniões de Hipólito são fáceis de entender,
num Reino com censura de imprensa e onde o máximo de crítica
pública que se podia fazer era afixar clandestinamente um
papel num muro ou fazer circular em segredo panfletos produzidos
com extrema dificuldade. As autoridades acusaram o golpe, por exemplo,
quanto a uma série de matérias publicadas desde o
primeiro número do jornal com a denúncia de um negócio
nebuloso: a retenção, pelo governo inglês, das
propriedades de negociantes portugueses na Inglaterra, por ocasião
do breve rompimento de relações entre Portugal e Inglaterra
em 1807, pouco antes da debandada da Corte. Coisa vultosa e que
demorou para se resolver, envolvendo comissões suspeitas
e nas quais, segundo Hipólito, estava envolvido o próprio
d. Domingos.
As medidas formais de repressão tentadas principalmente
nos primeiros anos de existência do jornal são a reação
típica de um governo autoritário ? a propósito,
as medidas são formalmente muito fortes, chegando a ameaçar
com o degredo quem fosse encontrado pela terceira vez fazendo, sob
qualquer forma, a divulgação do jornal. Mas também
podem ser explicadas de outra maneira: paralelamente, outras medidas
eram tomadas, entre elas a tentativa de acordo com o editor, e a
repressão seria, assim, demonstração de força
que fazia parte das negociações e que eram respondidas
com matérias atacando as autoridades. A fortalecer este ponto
de vista, o fato de que os principais responsáveis pelas
medidas formais ? d. Domingos, d. Rodrigo e Paulo Fernandes Viana
[intendente de Polícia na Corte, mais tarde agraciado com
o título de barão de São Simão] ? participaram
das negociações.
Revelando-se inúteis os atos formais contra o jornal, as
autoridades lançaram mão de outra estratégia:
o apoio à publicação de panfletos e jornais
que se opusessem ao inimigo, no intuito de "rebater os sofismas
dos outros e exercer uma saudável influência sobre
a opinião da nação", segundo afirmou Palmela
quando embaixador em Londres [carta de Palmela para o marquês
de Aguiar, ofício n. 12, 5/1/1817; documento manuscrito:
Arquivo Histórico do Itamaraty]. É como dizia d. Domingos,
escaldado por sua vivência na Inglaterra: "Eu repito,
exmo. sr., a minha opinião decisiva e irrevogável,
que nenhuma altercação pública se deve ter
com um jornalista. Desmentir um fato falso, ou publicar uma exposição
verdadeira contra a calúnia sem corresponder com o editor,
é o método único que convém […]"
[ofício de d. Domingos Coutinho, n. 117, jun. 1810; documento
manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
Panfletos e jornais
A terceira forma de enfrentamento, financiar publicações
adversárias, foi utilizada em Portugal, principalmente nos
primeiros anos de publicação do periódico ?
não só por razões políticas, mas também
porque no Brasil só existia, naquele período, uma
única tipografia, a Tipografia Régia. Assim, em 1810
e 1811 foram lançados alguns panfletos atacando os argumentos
de Hipólito, e entre julho de 1811 e 1819 a legação
portuguesa em Londres bancou um jornal, o Investigador Portuguez,
com o propósito explícito de se contrapor ao Correio
Braziliense. Ao longo destes anos, outros jornais surgiram,
mais ou menos opositores. Vamos dar aqui algumas informações
gerais sobre a imprensa portuguesa no exterior naquele período.
A) Panfletos
Ser panfletário em Portugal era, ao que parece, uma profissão.
O panfleto não tinha então a conotação
de hoje, e era, em muitos casos, um trabalho especializado, minucioso,
com a pretensão de refutar, às vezes em detalhe, os
argumentos adversários; em outros casos tratavam-se de meras
"chufas grosseiras", porque público havia para
todos os gostos ? e também autores para todos os estilos,
sempre pagos pelo governo, sempre anônimos, ausentes até
mesmo os pseudônimos (em geral o nome dos autores era conhecido
de todos, bem como o nome de quem mandava pagar. Quando se trata
de panfletos, o segredo não é a alma do negócio,
muito pelo contrário).
A dignidade adquirida pelos jornalistas durante o século
XVII substitui a prerrogativa da importância dos livros e
de seus autores para uma sociedade onde os jornais eram tidos como
"fragmentos de livros": o Correio Braziliense,
impresso no formato in-octavo e com numeração
contínua de páginas, era encontrado para compra em
volumes. Isabel Lustosa é que aponta para essa distinção
e mostra como essa forma de divulgação das idéias
políticas foi muitas vezes decisiva nas tomadas de posição
do governo português; assim, os jornais "não tinham
o caráter ligeiro e descartável que vieram a adquirir
depois" [Isabel Lustosa, Insultos impressos: A guerra dos
jornalistas na Independência (São Paulo: Companhia
das Letras, 2000), pp. 28-29].
Os panfletistas documentavam suas hipóteses e refutações
em textos muitas vezes bem trabalhados, discutindo passo a passo
cada artigo do Correio; já Hipólito seguia
um estilo ensaístico, sem as minúcias que os panfletistas
tomavam para si, lançando provocações e adotando
o "sistema de dizer bem e mal da mesma cousa, e com o mesmo
rasgo de pena, destruindo assim o que parecia edificar" [Joaquim
de Santo Agostinho Brito Galvão, Reflexões feitas
em abono da verdade sobre os números do Correio Braziliense
(Lisboa: Imprensa Régia, 1809), n. 1, p. 7]. Para Antonio
Candido, o jornalismo de Hipólito era de ensaio, diferenciando-o,
por contraste, do jornalismo de artigo ou de panfleto, mais meticuloso
[apud I. Lustosa, op. cit., p. 78]. E este é, exatamente,
um dos argumentos dos panfletistas: o Correio Braziliense, "por
sua natureza e objetos não permite a extensão e profundidade
das questões políticas, a investigação
apurada da ordem dos procedimentos de cada governo, e os discursos
refletidos de negócios tão graves e importantes, servindo
apenas para ataques rápidos, repreensões sem medida,
detrações orgulhosas, e ironias importunas" [
José Joaquim de Almeida e Araujo Correia de Lacerda, Exame
dos artigos históricos e políticos que se contém
na coleção periódica intitulada Correio Braziliense
no que pertence somente ao reino de Portugal (Lisboa: Imprensa
Régia, 1809), s.p.]. Ciosos de sua própria erudição,
quase todos aproveitavam para criticar os erros gramaticais de Hipólito
e sua linguagem repleta de anglicismos.
A importância atribuída por Hipólito a tais
panfletos pode ser avaliada pelo fato de que procurou responder
à maioria, deixando de lado apenas os que considerava mera
grosseria, e que muitas vezes reproduzia-os em seu próprio
jornal, coerente com sua proposição de que idéias
combatiam-se com idéias.
1. "Reflexões feitas
em abono da verdade sobre os números do Correio Braziliense"
O primeiro panfleto que se conhece contra o Correio Braziliense
foi encomendado por Miguel Pereira Forjaz, membro da Regência.
Escrito por Joaquim de Santo Agostinho Brito Galvão, abade
de Lustosa, foi publicado pela Imprensa Régia nos anos de
1809 e 1810, sob a forma de comentários sobre os números
1 a 18 do Correio Braziliense, divididos em seis publicações.
Logo de início, Lustosa diz algumas "verdades"
a Hipólito: "Se lhe forem incômodas, ou se afrontar
com a aplicação destes aforismos, tenha paciência:
diz o adágio que as estocadas, onde se dão, aí
se apanham […] vamos a contas seriamente: basta de burlesco"
[(Galvão), op. cit., p. 5]. Aparentemente, Hipólito
levou-o a sério, pois a notícia da publicação
serviu de pretexto para que fossem interrompidas as longas negociações
que ele vinha entabulando com o embaixador português em Londres.
Em Lisboa, ainda em 1810, o polemista abade Lustosa lançou
também o panfleto "Apologia do periódico que
tem por título ?Reflexões sobre o Correio Braziliense?,
caluniosamente atacado pelo autor do mesmo periódico no seu
número XIX", tréplica aos comentários
de Hipólito no Correio Braziliense.
2. "Exame dos artigos
históricos e políticos que se contém na coleção
periódica intitulada Correio Braziliense no que pertence
somente ao Reino de Portugal"
De autoria de José Joaquim de Almeida e Araujo Correia de
Lacerda, juiz do crime no Porto. Desta vez, não se tratou
de obra de encomenda, foi o panfletista que, em agosto de 1809,
ofereceu seu trabalho, na forma de treze cartas, ao patriarca de
Lisboa. Este agradou-se da obra e logo chegaram ao Brasil exemplares
da mesma. Lacerda analisa os artigos de Hipólito sobre Portugal,
sempre com um tratamento polido [M. Dourado, op. cit., t. 1, p.
302]. atacando especialmente as notícias sobre a capitulação
desse Reino, e lançando a idéia de que Hipólito
inflamou os portugueses para uma guerra civil [(Lacerda), loc. cit.].
3. "Provas da falsidade
e injustiça com que o editor do Correio Braziliense
intentou desacreditar Antonio de Araujo de Azevedo, e algumas reflexões
acerca desse jornal oferecidas aos seus leitores"
Lançado no mesmo ano do primeiro panfleto (1810), com a
finalidade de contestar um artigo de Hipólito da Costa publicado
no número 6 do Correio Braziliense, de janeiro de
1809, atacando o referido Antonio de Azevedo, ministro dos Negócios
Estrangeiros por ocasião da capitulação portuguesa
diante dos franceses. A defesa de seus pontos de vista serve de
pretexto para a defesa da censura e ele ataca a liberdade de imprensa.
Seu autor ? que, segundo Hipólito, era um médico
português que servira de espia no exército de Loison
[Dourado, op. cit., t. I, p. 310] ? afirma que a princípio
julgou Hipólito "agitado de um ardor indiscreto",
mas decidiu publicar o panfleto depois que lhe escreveu uma carta
em defesa do ex-ministro que não foi respondida. Indaga-se
qual poderia ser "o motivo da omissão do papel que lhe
remeti para reivindicar o crédito de Antonio de Araujo"
e ataca Hipólito dizendo que a sua "alma fraca e venal"
não pôde resistir a 400 libras esterlinas "que
ainda lhe conservam os braços paralíticos!"[Provas
da falsidade e injustiça com que o editor do Correio Braziliense
intentou desacreditar Antonio de Araujo de Azevedo, e algumas reflexões
acerca desse jornal oferecidas aos seus leitores (Lisboa: Nova
Oficina de João Rodrigues Neves, 1810), p. 16]. Duas coisas
a se observar neste caso: primeira, o panfleto é dos primeiros,
entre muitos, a acusar Hipólito de se deixar subornar; e
segunda, o fato de que mesmo depois de ser comprovado seu erro quanto
às acusações feitas a Antonio de Azevedo, o
Correio Braziliense não se retrata.
4. "Aviso aos portugueses
sobre o Correio Braziliense"
Do quarto e último panfleto conhecido, impresso em Lisboa
em 1811, não se conhece o autor. Ataca o editor também
a respeito da divulgação dos levantamentos das províncias
espanholas: "O Correio Braziliense apoiando os levantamentos
das províncias espanholas na América contra a autoridade
legítima que representa Fernando VII, convida, em conseqüência,
para o mesmo até as do continente português" [Aviso
aos portugueses sobre o Correio Braziliense (Lisboa: Imprensa
Régia, 1811), p. 1].
No entanto, esses panfletos não tiveram o efeito desejado
nem chegaram a afetar o trajeto do jornal. É como diz o próprio
Hipólito: "Saiu depois do Correio Braziliense
uma turba de escritos em Lisboa e em Londres, uns para o refutar,
outros para o imitar. Alguns escreviam com seriedade, outros jocosamente:
uns com argumentos, outros como meros caturras literários.
Cada um enfunando-se para levar a palma" [CB, 22:
316]. Era preciso lançar mão de instrumentos mais
permanentes.
B) Jornais
Outra forma de ataque ao Correio foi através da imprensa
periódica, segundo a fórmula de Pereira da Silva de
que "combate-se a imprensa com a imprensa […] [pois com a
censura] toma maiores proporções e importância
a sua explosão, e produz estragos mais perniciosos sempre
que é comprimida e manietada" [J. M. Pereira da Silva,
História da fundação do Império brasileiro
(Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1865), t. 2, p. 142]. Na segunda
década do século XIX a imprensa portuguesa já
era abertamente política e de combate, em conseqüência
da reação às invasões francesas no país
[J. Tengarrinha, op. cit., p. 52]. Vários jornais
liberais eram publicados em Londres e Paris, difundindo idéias
que passam a representar uma ameaça para os governantes.
Em que pese a convergência de pontos de vista com o Correio
Braziliense no tocante à questão constitucional,
muitos dos jornais liberais portugueses combateram Hipólito,
tendo como centro de divergência a relação entre
Portugal e Brasil.
1. O Investigador Portuguez
em Inglaterra, ou Jornal Literario, Politico, &c.
Principal jornal de oposição ao Correio Braziliense,
foi publicado mensalmente em Londres, de julho de 1811 até
1819, compondo ao final 92 números reunidos em 23 volumes.
Seu prospecto anuncia como finalidade do jornal "uma profunda
investigação sobre a origem, condição,
e autenticidade dos fatos, assim como uma judiciosa censura, e imparcialidade
ingênua na sua exposição" [O Investigador,
vol. 1, n. 1, p. 3]. Sua estrutura, dentre os periódicos
aqui em questão, é a mais parecida com a do Correio,
pois dividia-se em quatro partes: Literatura, Ciências, Correspondência,
Política. Tal como o Correio, também publicava
tabelas divulgando os preços correntes dos produtos do Brasil
e o mapa dos câmbios de Londres com as praças estrangeiras.
Cada caderno do jornal constava de 100 a 128 páginas.
Seu fundador e principal redator até abril de 1814 foi Bernardo
José de Abrantes e Castro, associado a Vicente Pedro Nolasco
da Cunha; ambos recebiam uma pensão proveniente do Rio de
Janeiro. Este primeiro redator foi substituído por José
Liberato de Carvalho.
O jornal era, explicitamente, um esforço da embaixada portuguesa
em Londres de se contrapor ao Correio Braziliense, e foi
iniciado por d. Domingos quando ocupava o posto. D. Domingos se
empenhou bastante pelo sucesso do jornal, sendo colaborador assíduo.
Em 1816, ao assumir o posto, o conde de Palmela tentou dar nova
orientação ao jornal, pois o redator de então,
Liberato, vinha mostrando crescentes sinais de rebeldia. A tentativa
durou mais algum tempo, mas sem resultado palpável: Liberato
não cumpriu o acordo feito, já que o jornal enfrentava
problemas de dinheiro, que se mostraram impossíveis de solucionar.
D. João, insatisfeito com o teor dado ao jornal, retirou
o apoio anteriormente dado e o jornal chegou ao fim.
2. O Campeão Portuguez
ou O Amigo do Rei e do Povo, jornal político publicado
mensalmente para advogar a causa de Portugal [O Campeão
Portuguez vira O Campeão Portuguez em Lisboa,
no ano de 1822, segundo nota em J. Tengarrinha, op. cit., p. 66]
Publicado em Londres entre os anos de 1819 e 1821, também
teve como redator Liberato Freire de Carvalho. Jornal político,
constitucionalista, publicado quinzenalmente para advogar os interesses
de Portugal e combater a permanência da Corte no Brasil, era
porta-voz do partido luso-espanhol-constitucional [M. Dourado, op.
cit., t. 2, p. 360]. Constava de duas folhas impressas in-octavo,
com 32 páginas, divididas basicamente em três seções:
Política (do Reino Unido de Portugal), Correspondência
(e defesas), Resumo das Novidades do Tempo (dos quinze dias anteriores).
Com seus artigos, José Liberato pretendia "mostrar
que não era um incendiário político
que quisesse com as minhas palavras lançar o fogo da discórdia
no país, porém um homem que queria aconselhar um
rei a ser justo, e um povo a ter resolução para
pedir justiça" [Alfredo da Cunha, Elementos para
a história da imprensa periódica portuguesa, 1641-1821
(Lisboa: s.e., 1941), p. 160]. No prospecto do jornal acrescenta
que "louvará e tratará sempre com muito acatamento
e respeito a pessoa de el-rei, porque sempre o há de considerar
como politicamente impecável, e defenderá os
direitos e interesses do povo, porque entre ele e a pessoa sagrada
de el-rei estão os empregados públicos de todas as
classes, dos quais só vem a ruína dos reis e dos povos"
[O Campeão Portuguez ou O Amigo do Rei e do Povo,
vol. I, n. 1 (jul. 1819), p. 5].
3. O Espelho Politico e
Moral e O Portuguez ou Mercurio Politico, Commercial e Litterario
O Espelho Politico e Moral foi uma publicação
efêmera, que durou de 1813 a 1814 Era publicado em Londres
por João Bernardo da Rocha, que logo o transformou em um
periódico mensal mais completo, O Portuguez ou Mercurio
Politico, Commercial e Litterario, que existiu de abril de 1814
a dezembro de 1821. Era um dos mais violentos e temidos jornais
liberais. O conde de Palmela, então embaixador de Portugal
em Londres, tentou impedir a expansão do jornal, conseguindo
que não fosse admitido nos paquetes para o Brasil e Portugal,
sob pretexto de que estava lá proibida e era por isso contrabando
[J. Tengarrinha, op. cit., p. 62]. O Espelho, antes dele,
já pregava o constitucionalismo, e era acusado de ter uma
aliança com o Correio Braziliense e ser publicado
sob a proteção de Hipólito.
4. O Padre Amaro ou Sovela
Politica Historica e Literaria: dedicado a todos os portugueses
de ambos os mundos
Publicado em Londres entre 1820 e 1826 pelo padre Joaquim Ferreira
de Freitas, que depois de um período de aventuras a serviço
de Napoleão, ao ver-se na miséria, foi para Londres
publicar o Padre Amaro [A. Cunha, op. cit., p. 154].
Era composto pelas seções Variedades (memórias
e cartas), Política e História (documentos), Países
(respostas, discursos, documentos), Padre Amaro (opinião,
artigos), Correspondência. O padre tinha fama de se vender
a todos, e criticava os jornalistas ingleses: "O pago que tiram
muitas vezes dos seus serviços indiscretos é o desprezo
e a perseguição de todos os partidos" [O Padre
Amaro, vol. 2, n. 7 (jul. 1820), p. 96]. Recebeu de d. Pedro
I uma pensão vitalícia de 600 libras anuais, que foi
suspensa nos seus últimos anos de vida por intrigas armada
por seus inimigos, como diz em seu testamento [A. Cunha, loc. cit].
5. Annaes das Sciencias,
das Artes, e das Letras
Publicado em Paris, dizia-se escrito por uma sociedade de portugueses,
e sabe-se que José Diogo Mascarenhas Neto era seu redator.
Foi editado entre 1818 e 1819. Palmela chegou a considerar a possibilidade
de apoiá-lo, mas concluiu ser uma publicação
pouco apta na divulgação de suas idéias. Era
um periódico de divulgação, e não de
discussão política propriamente dita. Estava dividido
em três seções: Resenha Analítica, Notícias
das Ciências, das Artes, etc. e Correspondência.
6. O Contemporaneo, obra
politica e literaria
Publicado em Paris a partir de 1820. Sua proposta era promover
o intercâmbio de conhecimento do progresso entre os países:
"Aproveitando-nos da nossa posição em Paris,
centro deste movimento, a empreender o trabalho de dar a conhecer
a nossos compatriotas os sucessos do tempo" [O Contemporaneo,
obra politica e literaria, n. 1, pp. 2-3]. Ao contrário
dos Annaes das Sciencias e Artes, embora fosse igualmente
um jornal de divulgação científica, lança-se
também na discussão das questões políticas,
chegando seguidamente a publicar documentos, como fazia o Correio
Braziliense e O Investigador Portuguez. Publicado mensalmente
em cadernos de cinco a seis folhas de impressão, e a cada
quatro deles formava-se um volume de mais ou menos setenta páginas.
Quando estava encerrando sua publicação, o que já
havia acontecido nessa altura com O Investigador e O Campeão,
reverencia o Correio: "Bem se pode comparar o Correio
Braziliense a um pai, que em sua vida, como Luís XIV,
vê o fim dos muitos filhos que gerou" [M. Dourado, op.
cit., t. 2, p. 356].
Início das negociações
As negociações com o editor do jornal, última
forma de controle tentada pelas autoridades, começaram cedo,
demoraram muito, mas chegaram ao resultado esperado. O Correio
Braziliense conseguiu encontrar seu patrocinador, como era voz
corrente em Lisboa, em Londres e no Rio de Janeiro, já que
as conversações secretas que se sucederam entre 1809
e 1812 eram um segredo de Polichinelo. Na verdade, não havia
razão para o segredo, antes pelo contrário: o controle
sobre a mais importante publicação do Brasil era uma
arma de que os inimigos deveriam tomar conhecimento.
As negociações se prolongaram por cerca de três
anos, divididas em duas fases, com um intervalo sobre o qual se
sabe pouco. Na verdade, as duas fases da negociação
são tão diversas entre si que se poderia pensar em
duas negociações distintas.
A primeira diferença entre as duas fases é pontual:
os primeiros intermediários escolhidos não primavam
pela habilidade: Vicente Pedro Nolasco da Cunha, falando por Hipólito,
e o embaixador d. Domingos, falando pelo irmão poderoso,
d. Rodrigo.
Da inabilidade de d. Domingos há provas cabais: sua atuação
desastrada na preparação da Conferência de Viena
em 1815, e sua atitude "ridícula" (é o termo
usado em correspondência da época) ao relutar em passar
o cargo de embaixador para seu sucessor. E quanto a Nolasco, só
se pode explicar sua presença nas negociações
por ser, como Hipólito, maçom. De má fama entre
seus contemporâneos, as referências desairosas a seu
respeito são abundantes ? "papa-jantares", "abominável
e ingratíssimo", "essencialmente preguiçoso
e inábil para trabalhar". D. Domingos nos dá
provas do caráter duvidoso de Nolasco em carta onde se refere
à maneira pela qual obteve uma documentação
sobre a Maçonaria: foi "por sua via [que alcançou]
as cartas e o tal catecismo em português, que eu tive a satisfação
de mandar a Sua Alteza Real" [ofício de d. Domingos
Coutinho, n. 99, 14/4/1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico
do Itamaraty]. Em 1805 Nolasco auxiliou Hipólito em sua fuga
da prisão; em 1811 era, como vimos, redator do Investigador
Portuguez, jornal criado para combater o Correio Braziliense.
A segunda diferença entre as duas fases está no momento
em que ocorreram as primeiras negociações. Realmente,
quando se considera a profundidade e a rapidez das transformações
que aconteciam no mundo, em Portugal e no Brasil naquele ano de
1809, pode-se pensar que a situação ainda não
estava madura para que fosse possível um pacto como o que
se propunha: à instabilidade mundial, com as guerras napoleônicas
ainda em curso, deve-se acrescentar as mudanças políticas
advindas com a mudança da Corte, e a completa reviravolta
das práticas comerciais portuguesas, em conseqüência
não apenas das mudanças globais ainda em curso, mas
também de fatores nacionais, com a abertura dos portos brasileiros
e a entrada de novos concorrentes, os grandes comerciantes/traficantes
da antiga Colônia. E, neste cenário, o próprio
Correio Braziliense era um elemento inédito que as
autoridades não sabiam muito bem como tratar. Por isso o
recurso às velhas práticas, por isso, também,
as dificuldades nas negociações.
Segundo d. Domingos, a proposta partiu de Hipólito, através
de Nolasco, e teve como causa imediata a decisão do governo
português, em março de 1809, de proibir a entrada do
Correio Braziliense no Brasil e em Portugal. A 1o
de maio de 1809, d. Domingos escreveu a Linhares comunicando as
negociações e solicitando uma flexibilização
no rigor a que o jornal estava legalmente submetido:
Digne-se v. exa. pôr na presença de S. A. R. que
eu por mim nada receio do que ele escreveu contra mim […],
mas sendo muito difícil neste país fixar o que
é libelo, e procurando quase sempre os juízes
escusar os réus em favor da liberdade da imprensa, este
homem irritado escreverá cousas que farão muito
dano, e não será castigado, nem se pode mandar
fora de Inglaterra, porque está naturalizado inglês.
Portanto, como ele em segredo me tem feito proposições
de reconciliação, estimaria que S. A. R. me autorizasse
a prometer-lhe a circulação do seu jornal no Brasil,
contanto que nele não imprima cousa que me ache contrária
aos interesses de S. A. R [ofício de d. Domingos Coutinho,
n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito: Arquivo Histórico
do Itamaraty].
As negociações avançaram, passando a ser discutida
não apenas a liberdade de circulação, mas uma
subscrição governamental de 500 exemplares. Em troca,
Hipólito se absteria de tratar da Maçonaria, encerraria
as considerações sobre as constituições
inglesa e portuguesa que vinha publicando, não tocaria em
assuntos de religião etc.
As conversações se faziam sempre através de
intermediários (principalmente Nolasco e o duque de Sussex),
pois o embaixador achava "muito prudente poder sempre provar
por terceira pessoa o que se passou, bem que secretamente, entre
mim e o dito editor" [ibid], e com a esperteza protelatória
que parecia caracterizar a maneira de fazer política da Corte
portuguesa: ele esperava o resultado das consultas feitas a letrados
ingleses sobre a possibilidade de processar criminalmente o jornalista
e ia vendo se o jornal adotava gradativamente um tom mais palatável,
"para não deixar perceber a conexão formada entre
ele e mim" [apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 375].
Na verdade, era difícil deixar de perceber a conexão:
ao longo de 1809 o jornal não apenas abrandou o tom das críticas
ao embaixador, como dá mostras de que estava a caminho uma
aliança em torno de algumas questões. Assim, no no
19, de dezembro daquele ano, o Correio Braziliense publica
("em letra grossa, para que no caso de serem faltos de vista
não tenham precisão de seus óculos") o
brinde feito por d. Domingos em um banquete em homenagem a d. Maria
I (é característica da política de corte a
transformação dos fatos políticos em espetáculo),
no qual diz ter recebido do irmão d. Rodrigo correspondência
declarando que "não se proibiu o Correio Braziliense,
o que só se fará se o seu autor o escrever de maneira
que possa excitar sedições ou ser veículo de
calúnias; o que ele não deve praticar". E no
no 21 chega a elogiar d. Domingos e atribuir-lhe sentimentos
próximos aos de que ele próprio tinha, "pelo
desejo que ele tem de que sua nação possa sair do
caos da ignorância em que os inimigos da prosperidade dos
povos os desejam precipitar". E conclui: "É por
estas idéias liberais do ministro que o partido francês
o ataca".
As negociações foram certamente muito difíceis,
porque só em março de 1810, quase um ano depois de
seu início, é que d. Domingos oficializou a proposta
de subscrição dos 500 exemplares. Agora com pressa,
pois voltou a insistir em maio, premido pelos acontecimentos: segundo
ele, Hipólito se indignara com a notícia de que o
jornal havia sido confiscado no Pará, e havia escrito um
artigo violento contra o governador, que só a muito custo
deixou de ser publicado. Enquanto isso, como vimos acima, continuavam
os ataques ao Correio Braziliense, e Miguel Pereira Forjaz,
membro da Regência, patrocinava as Reflexões sobre
o Correio Braziliense, do abade Lustosa.
As coisas chegaram a um ponto que nem com a intervenção
do duque de Sussex foi possível avançar nas conversações.
Segundo Nolasco, "persuadido que todo sistema de moderação
com velhacos e intrigantes é perdido e frustra o bom êxito
de qualquer tentativa, por mais justa e bem concertada que seja"
[com ofício de d. Domingos Coutinho, n. 111, 9/5/1810; documento
manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty], Hipólito
perdeu qualquer esperança nas assinaturas do governo e rompeu
as tratativas. Ironicamente, naquele mesmo mês, março
de 1810, havia sido dada no Rio de Janeiro a aprovação,
através de d. Rodrigo, para a compra das assinaturas, mas
a informação ainda não chegara a Londres. A
demora no trânsito das notícias entre Brasil e Inglaterra,
tão importante na vida de Hipólito e de seu jornal,
foi, mais uma vez, crucial. Segundo Nolasco, o jornalista aceitou
os fatos resignadamente: "Demais, não sofro o descrédito
de vender a minha pena e não ter dele o lucro" [cf.
ibid].
Dois documentos, no entanto, permitem duvidar de que as conversas
poderiam ter chegado a bom termo e que o negócio não
foi fechado apenas porque Hipólito, como diz Mecenas Dourado,
tomou "por desaprovação o que não era
senão tardança". No primeiro, um bilhete escrito
a Strangford em 1814, e referindo-se às dificuldades com
o Correio Braziliense, d. Domingos afirma: "J?ai
voulu éteindre le foyer qui s?est allumé en Anglaterre,
en achetant une fois pour toutes le libelliste. On me l?a defendu,
Dieu sait qui a raison! mais le mal sera fecond… Tout cela aurait
eté bien aisé a remédier il y a 4 ans. Sic
voluere Priores ? ainsi l?a volue le Père Prieur!"
[apud M. Dourado, op. cit., p. 385] E no segundo, o "Memorandum
secreto de Cheltenham", d. Domingos dá mais detalhes:
"Mr. Canning […] avait, sur la fin de 1809, aprouvé
le plan offert en secret par l?editeur du Correio Braziliense
de se vendre à la Cour du Brésil, et, conformement
à son avis (que l?envoyé de Portugal lui avait demandé
confidentiellement), le marché verbal fut fait, et tint bon
pendant six mois, à la fin desquels il cessa, parce que la
cour de Brésil le desaprouva" [id., ibid].
Temos aí duas informações da maior importância.
Primeiro, a autorização de Linhares não fora
suficiente para fazer valer o negócio, faltando-lhe talvez
a aprovação do soberano, talvez a força suficiente
para impor sua decisão à facção antagonista,
talvez a firmeza necessária para prosseguir. Segundo, a participação
do governo inglês nas negociações, "aprovando"
o plano e dando "conselhos" ao embaixador de Portugal.
Desta forma, a não concretização do negócio
é a vitória dos oponentes aos interesses ingleses
? que, no momento em que as conversações se davam,
giravam em torno de dois pontos principais: o tratado de comércio
entre Portugal e Inglaterra e o tráfico de escravos.
O próprio Hipólito, depois de interrompidas as conversações
com d. Domingos, explicita a questão, ao falar da "desunião
insensata, perigosa e temível do Ministério do Rio.
Porque o que menos há na Corte do Brasil é união
entre os ministros; há tal que nem a comum saudação
de comprimento faz a seu colega" [CB, 4: 538-39].
Mas o jogo não havia terminado, como se vê no número
seguinte, de maio de 1810. Após meses concentrando-se, nas
partes da Miscelânea referentes ao Brasil, na questão
da proibição da circulação de impressos
e apenas permitindo-se críticas a certos governadores de
província, o Correio Braziliense mudou de linha [CB,
4: 540]:
Pelo que nos toca, diremos que estes fatos vieram ter ao nosso
conhecimento há meses, e não os publicamos até
agora porque supúnhamos sinceras intenções
de os remediar do modo possível, e assim mostramos a
nossa moderação e boa intenção;
mas ulteriores procedimentos nos têm convencido que não
há tal sinceridade de desejos; que não existe
esse patriotismo que supúnhamos nas pessoas de quem esperávamos
o remédio; logo, não há bem que possa resultar
da prudência de ocultar do povo estes fatos; deve sabê-los;
procurar-lhe cada um o remédio. As finanças do
país são o seu princípio vital; e a sua
administração desta maneira tende a uma ruína
inevitável. O segredo, neste caso em que se desespera
do remédio, só tende a fazer o mal mais horroroso.
A matéria, indiretamente, trazia para a cena o novo ator,
os grandes comerciantes/traficantes brasileiros. Explicitamente
ela tratava da disputa em torno da comercialização
dos bens do monopólio real (pau-brasil, urzela, diamantes),
envolvendo não apenas "fundos imensos" sob a forma
de comissões, como também o desaparecimento de alguns
dos melhores diamantes enviados para serem negociados. Dois grupos
disputavam o privilégio da comercialização.
D. Domingos havia nomeado dois negociantes portugueses da praça
de Londres, envolvendo-se diretamente na questão, colocando-se
assim como "vendilhão de diamantes" e metendo-se
em "embrulhadas que não são de sua competência".
E, na Corte, "os diretores do banco do Rio de Janeiro obtiveram
do governo de lá o remeterem a seus correspondentes aqui
em Londres aqueles mesmos produtos, diamantes etc., que dantes deviam
vir a esta comissão já formada". A reação
de d. Domingos foi direta: "Eu não sei de tal nomeação,
nem de existência de banco, ou seus diretores". E Hipólito
pergunta: "Quem viu jamais tal confusão?"
A pergunta era retórica, e confusão não havia;
o que havia era uma disputa pelos favores do Estado, entre o Banco
do Brasil (que, como vimos, havia sido criado com recursos dos traficantes)
e capitalistas portugueses na velha tradição. Não
estava em jogo, como afirma o jornal, o "mil vezes reprovado
sistema dos monopólios" e não se tratava de uma
disputa doutrinária entre a liberdade do comércio
e o poder do Estado, mas de um conflito no interior do capital comercial.
A conclusão das negociações
Quase dois anos se passaram. Como vimos, as medidas formais não
tiveram êxito, os jornais lançados contra o Correio
Braziliense não estavam à sua altura, e este crescia
de importância. Enquanto isto, o jornal fustigava aquele que
viria a ser seu principal interlocutor na fase seguinte das negociações:
Paulo Fernandes Viana, intendente da Polícia da Corte. Com
efeito, ao longo do ano de 1811 sucedem-se os artigos criticando
seu autoritarismo, sua pouca capacidade administrativa etc.[cf.
M. Dourado, op. cit., t. 2, pp. 400-02]
A segunda fase das negociações, após o interregno
de que só conhecemos as críticas manifestadas no jornal,
foi rapidamente concluída no Rio de Janeiro em 1812; a rapidez
indica a continuidade das conversações. Os personagens
são Heliodoro Carneiro ? com delegação para
falar em nome do Correio Braziliense, até porque Hipólito
não podia se afastar da Grã-Bretanha, para
não perder sua condição de denizen ?
e Paulo Fernandes Viana. D. Rodrigo falecera no começo do
ano, e o fiador do negócio foi o próprio d. João.
Heliodoro Jacinto de Araujo Carneiro era médico da câmara
de d. João ("médico feliz sem receitar",
segundo um de seus inimigos), conhecido na Corte e nos meios diplomáticos
(onde teve alguns cargos) como homem de d. João, muitas vezes
encarregado de missões confidenciais, especialmente no exterior,
onde vivia a maior parte do tempo. Tem a originalidade de haver
defendido, desde 1817, a ida de d. Pedro para Portugal como príncipe
regente, e a permanência de d. João e da Corte no Brasil,
a porção mais poderosa do Reino. Esta idéia
seria a única que faria "realizar a maior ligação
possível entre os dois hemisférios, isto é,
ser o herdeiro do trono o regente de Portugal, e que há de
ser o rei do Brasil" [ibid., t. 1, p. 202]. Heliodoro defendia
os interesses brasileiros, em contraponto aos portugueses:
Há 16 anos que vivo lá fora e por isso tenho
sido testemunha muitas vezes da consideração que
se deve ao nome português depois que o rei fixou a sede
do governo no Brasil. Os estrangeiros têm uma grande idéia
daquele país, mesmo os que lá nunca estiveram,
isto só pelos gêneros que enchem os mercados da
Europa, como ouro, diamantes, açúcar, algodão,
café, cacau, pau-brasil etc. etc. E os políticos
sabem mais, que a Corte de Portugal existindo no Brasil não
está em situação de maroma, como
tem estado Portugal desde 1640, de fazer e desfazer tudo com
a chegada de qualquer paquete de Falmouth; viram todos uma prova:
tomou o governo português posse de Montevidéu;
fizeram-se todos os protestos para se largar, meteram-se nisto
as grandes potências da Europa, e por fim nada conseguiram;
isto porque não se mandava com a mesma arrogância
e facilidade uma esquadra ao Brasil, como se podia mandar a
Lisboa [H. J. d?Araujo Carneiro, Cartas dirigidas a S. M.
el-rey d. João VI desde 1817. A cerca do Estado de Portugal
e Brasil, e outros mais documentos escritos (Londres: Impressão
de Mess. Cox e Baylis, [c.1821]), p. 10].
Hipólito e Heliodoro se conheceram em Londres; a proximidade
que se fez entre ambos, e que duraria até a morte de Hipólito,
foi bastante profunda ? Heliodoro foi parte importante nos negócios
do jornalista ? e também fácil de entender, considerando
a proximidade de interesses e pontos de vista. Em maio de 1812 Heliodoro
viajou de Londres ao Rio de Janeiro, autorizado por Hipólito
a fechar as negociações em torno do financiamento
ao Correio Braziliense. Na versão dada por ele em
carta a d. Pedro escrita em 1826, d. João lhe "tinha
encarregado em 1812 com o maior empenho e interesse em várias
comissões; entre elas fazer mudar de linguagem ao Correio
Braziliense ou fazê-lo acabar, custasse o que custasse"
[apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 398].
O acordo devia ser executado através da Intendência
Geral de Polícia e pago através do "cofre de
sua repartição", ficando Paulo Fernandes Viana
encarregado de todas as providências: receber a correspondência
de Hipólito e Heliodoro (através da firma Miller &
Cia, para evitar que fosse aberta na embaixada de Londres); opinar
sobre o conteúdo de matérias, como o próprio
Hipólito revela, em carta ao intendente de Polícia:
"Pelos dois precedentes números do Correio Braziliense
verá V. S. que eu tinha já antecipado as matérias
que V. S. sugere, e com jeito que me pareceu necessário;
agora, porém, sabendo que essa tinha agradado, não
deixarei de insistir nela" [ibid., p. 400]; negociar
o valor do primeiro pagamento, conforme carta de Heliodoro: "[…]
2 mil libras, que ele [Hipólito] disse devia ter em seu poder
como garante do ajuste, e para indenizar a perda que ia a ter na
diminuição dos subscritores, e que isto seria descontado
nos dois últimos anos que lhe deveriam ser estimados dois
anos de antecipação, pagando ele os juros" [ibid.,
p. 398].
Segundo Heliodoro, o negócio foi tratado diretamente com
d. João, sendo Paulo Fernandes Viana apenas o executor do
acordo: "[…] minha inteligência com o intendente geral
da Polícia foi e era ordenada por Sua Majestade para se fazerem
coisas pelo cofre de sua repartição que não
era do voto de d. João de Almeida se fizesse, apesar de semelhante
se fazerem pela despesa da legação de Londres e em
conseqüência pelo Erário, isto é, para
a redação e publicação do Investigador"
[Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário bibliográfico
português (Lisboa: Imprensa Nacional, 1883), t. 10, 3o
do suplemento, s.v. ?Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro?,
pp. 384-85]. E também, em carta ao próprio
intendente: "Sua Majestade foi quem mandou ter com V. S. em
1812 para se arranjarem por sua via em Londres coisas que o conde
de Galvea não era de acordo, mas que não obstante
isso S. M. queria que se fizessem […]" [ibid].
Na verdade, d. João não apenas "queria que se
fizessem coisas" a respeito das quais membros do governo "não
era[m] de acordo", como queria que fosse de conhecimento público
a cooptação do jornal. Só assim se pode explicar
a fartura de comentários públicos ou reservados feitos
por jornalistas e funcionários, e também o cuidado
com que o Correio Braziliense passou a ser tratado por membros
do governo que até então lhe faziam oposição
feroz.
Que o príncipe regente estava mais do que informado sobre
a transação em torno do Correio Braziliense,
não há dúvida ? um negócio de tal importância
não se passaria sem que o soberano absoluto dela tomasse
conhecimento e a autorizasse, especialmente numa repartição
tão próxima, como era o caso da Intendência
de Polícia da Corte. E a mudança de comportamento
dos inimigos são prova cabal de que o acordo se fizera, acima
das facções em que se dividia o governo. Assim, Palmela,
em 1817, em ofício reservado a respeito das medidas que tomara
junto ao governo inglês para proibir a entrada em Portugal
do Correio Braziliense e de O Portuguez, escreve ao
conde da Barca:
Não me atrevi, porém, a reclamar para o Brasil
uma semelhante medida sem ordem expressa de V. Exa., por ignorar
qual seja a tal respeito exatamente a vontade de el-rei nosso
senhor, por constar aqui que para um dos sobreditos periódicos
havia subscrito a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro,
e que o redator do outro recebe provas não equívocas
da beneficência de el-rei nosso senhor [ofício
reservado do conde de Palmela ao conde da Barca, n. 31, 17/7/1817;
documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
Heliodoro poderia esclarecer a dúvida. Em correspondência
a Paulo Fernandes Viana, escreve:
Veja V. S. a diferença do Correio Braziliense.
Que ainda até hoje não é mandado pela secretaria
? veja a sua linguagem, o que ele tem servido à causa
de S. M.; e porque é jornal de S. M., e não
criado pelos ministros para os seus fins, não é
protegido; pelo contrário, quiseram o compreender na
ordem que veio a respeito do Português, isto é,
de não deixarem que ele vá nem para Lisboa nem
para o Brasil [grifo nosso] [correspondência de Heliodoro
Carneiro a Paulo Fernandes Viana, Londres, 13/7/1818; documento
manuscrito: Biblioteca Nacional].
As correspondências acima são esclarecedoras. D. João
patrocinava o jornal, que "por não ser criado pelos
ministros para seus fins", era, por assim dizer, supra-ministerial,
em condições de criticar os membros do governo e,
portanto, de informar o rei e de servir-lhe de arma. De maneira
oblíqua, d. João aproveitava-se de uma liberdade de
imprensa que n&atilatilde;o havia em seu Reino. E a permissão
de entrada no Brasil, contraposta à proibição
da entrada em Portugal, mostra onde era importante o jornal circular.
Mas o protocolo da Corte não permitia que o príncipe
regente conduzisse as negociações pessoalmente e a
escolha dos mediadores diz quem vai se beneficiar diretamente com
a transação. Sabemos que as negociações
se iniciaram em 1809 com o conde de Linhares; este, no entanto,
morreu no início de 1812, poucos meses antes de concluído
o acordo, cabendo sua execução, como vimos, a Paulo
Fernandes Viana. O que tinham em comum estes dois homens?
Linhares foi a principal figura do partido inglês e negociador,
junto com Strangford, do tratado comercial com a Grã-Bretanha
em 1810. Como ministro sempre demonstrou atividade (e também
dispersão) e, ao contrário de muitos de seus colegas,
interesse pelas questões de sua pasta. Segundo Oliveira Viana,
sua correspondência mostra as mudanças de ponto de
vista a partir da chegada ao Brasil: rapidamente tomou conhecimento
de uma realidade que até então não suspeitava,
e tanto em suas ações políticas como nos ministérios
que ocupou a partir da chegada da Corte ao Brasil (acumulava a Guerra
e os Negócios Estrangeiros, o que dá uma medida do
poder de sua facção naquele momento) foi capaz de
perceber a importância da ex-Colônia. Manteve sempre
sua dedicação à Casa Real e seu viés
absolutista, repugnando-lhe qualquer menção às
reivindicações constitucionalistas.
De arraigado protecionista no começo do século a
signatário de um tratado que dava todas as vantagens à
Inglaterra, em 1810, longo foi o caminho percorrido por Linhares.
Em 1809, escrevendo ao príncipe regente, opina em favor da
mudança de sistema:
Portugal irá ganhar mais com o aumento que há
de ter o Brasil depois dos liberais princípios que V.
A. R. mandou estabelecer, do que antes ganhava com o sistema
restrito e colonial que existia; Portugal há de ser sempre
o depósito natural dos gêneros do Brasil, e o depósito
há de ser muito maior; Portugal há de ter melhor
e maior consumo para suas produções e fábricas
do que antes tinha; e, finalmente, o exemplo do sucedido em
Inglaterra depois da separação dos Estados Unidos
que Smith predisse, há de também verificar-se
em Portugal [Carta ao príncipe regente, 16/08/1809, apud
Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil (Rio de Janeiro:
Livraria José Olímpio Editora, 1945), v. 1, p.
214].
A estas alturas, com mais de ano e meio de Brasil, Linhares já
deveria saber que as coisas não passariam assim, já
teria tomado conhecimento da importância do capital comercial
brasileiro, e deveria estar prevendo que no novo estado de coisas
seria este o vitorioso no embate com os comerciantes portugueses
da antiga tradição. Pode-se supor que havia malícia
no argumento acima citado, destinado a convencer o monarca, mas
alguns anos depois, como veremos, d. João seria capaz de
aceitar a verdade, e a mentira cortesã não seria mais
necessária.
De Paulo Fernandes Viana são conhecidas as atividades à
frente da Intendência da Polícia da Corte, repartição
responsável não apenas pela repressão, mas
também por ações administrativas de certa monta.
Assim, por exemplo, foi ele o responsável pela construção
da Estrada da Polícia, ligando a Corte a Valença e
Vassouras, que abriu o caminho para as futuras lavouras de café,
beneficiando enormemente os poucos detentores das grandes sesmarias
na região, convenientemente concedidas na mesma ocasião
? entre eles, diga-se de passagem, o próprio Paulo Fernandes
Viana. Segundo o Correio Braziliense, também a ele
se deve, em parte, a fundação do Banco do Brasil,
pelo "trabalho que desenvolveu a persuadir os proprietários
a tomarem ações do estabelecimento, não podendo
nada fazer neste sentido o conde de Aguiar" [M. Dourado, op.
cit., p. 404].
Assim, das ações concretas dos dois personagens,
envolvidos no patrocínio ao Correio Braziliense (patrocínio
público com interesses privados, sempre é bom frisar,
para que não se naturalize a transação inocentando-a
das vantagens em jogo) sabe-se, com certeza, que redundaram em benefício
do capital comercial brasileiro, expresso na acirrada defesa dos
direitos brasileiros. Falta, portanto, para comprovar a hipótese
levantada no início deste artigo, mostrar suas ligações
com os comerciantes de escravos.
A primeira indicação está na Estrada da Polícia.
Segundo Lenharo [J. Caldeira, op. cit., p. 335], os arrematadores
das sesmarias por ela beneficiada, e que iriam se valorizar enormemente,
eram da família Carneiro Leão, os maiores comerciantes
e traficantes de escravos da época. As vantagens auferidas
conjuntamente por Fernandes Viana são a primeira mostra da
ligação existente.
A segunda indicação está na integralização
do capital do Banco do Brasil, que só foi possível
depois de convencidos os grandes traficantes [J. Caldeira, op. cit.,
p. 340], "a um custo revelador: as dificuldades de sua formação
resumiam a nova situação da elite com a chegada da
Corte. Não só podia influir nas decisões, como
também impor certas condições ou esperar vantagens
suficientes para participar de empreendimentos com a Coroa"
[J. Caldeira, op. cit., p. 341]. Em 1811, portanto, os comerciantes
de escravos já eram considerados parceiros não apenas
dignos, mas imprescindíveis. E, como vimos acima, segundo
o Correio Braziliense [CB, 20: 437-38], o grande
articulador da integralização do capital do banco
(pelo qual tanto se interessou d. João), foi Paulo Fernandes
Viana.
Mas a prova definitiva da identidade dos interesses de Linhares
e Viana com os traficantes de escravos se dá da forma típica
da época: através de casamentos. Pois bem, Fernando
Carneiro Leão, chefe da família, faz o casamento de
sua filha Guilhermina com Maurício de Sousa Coutinho, filho
de d. Rodrigo. E uma de suas irmãs casa-se com Paulo Fernandes
Viana [J. Caldeira, op. cit., p. 334]. Desta forma, se o
Correio Braziliense era "o jornal de S. M.", como
dizia Heliodoro, pode-se dizer que era também o jornal dos
Carneiro Leão.
E que pensaria d. João a este respeito? Sem sombra de dúvidas,
as relações eram aprovadas por ele, e quanto aos traficantes
de escravos, o espírito prático português já
lhe havia feito perceber que eram fundamentais, como havia mostrado
o episódio do Banco do Brasil. Não é que ele
aceitasse a escravidão; ele era decididamente contra qualquer
idéia abolicionista. E mais: ele não era apenas a
favor do trabalho escravo; ele tinha consciência da importância
do comércio de escravos para a prosperidade de seu Reino.
E isto é dito, com todas as letras, num ofício de
Maler, escrito em 1815, que chegou a nós: "Era aquele
um assunto que o príncipe discutia sempre com calor, desenvolvendo
com força e abundância todas as razões e motivos
que o prendiam a tal comércio, o qual representava e considerava
sempre como indispensável à prosperidade das suas
colônias e mormente à deste vasto continente"
[O. Lima, op. cit., p. 438].
Esta era uma questão em que Hipólito discordava de
seu soberano, tanto do ponto de vista econômico ? "Negamos
redondamente, e provaremos quando for conveniente, que o Brasil
deixe de ser igualmente rico quando não tiver escravatura
[…]" ? como político ? "os brasileiros devem
escolher entre terem Constituição política
duradoura, sem escravatura; ou conservar seus escravos e as supostas
riquezas que deles lhes provêm, sendo a pátria sujeita
ao despotismo. Defendia a "necessidade de uma gradual e prudente
extinção da escravatura" [CB, 24:
574-77] [este, por sinal, é o subtítulo do artigo
"Escravatura no Brasil", de onde tiramos a citação],
que poderia ser substituída pela mecanização
da lavoura e pela migração européia.
Considerava inevitável a abolição, por pressão
das nações européias, especialmente a Grã
Bretanha, declarando, "altamente e em bom tom", que elas
não tinham, no entanto, "direito de prescrever, a Estados
independentes, regras sobre sua política interna", considerando,
no entanto, que "a imediata e absoluta extinção
da escravatura […] seria uma medida revolucionária das
mais perniciosas conseqüências". Era
fundamental, no entanto, que os brasileiros se preparassem para
a medida, julgando, em 1815, que estava "por fim chegado o
tempo em que esta questão da escravatura deve ser decidida
afinal" [CB, 15: 735-39 (1815)].
Anos depois (em 1822) ele afirmava que este era "um ponto
sobre que mais de uma vez temos falado em nosso periódico,
dando nisso nossa decidida opinião". Não deixava
de ter razão, mas é preciso considerar que das cerca
de vinte vezes em que o jornal toca o tema da escravatura, a grande
maioria foi dando a público documentos ou relatando fatos;
apenas cinco ou seis vezes, em toda a história do jornal,
Hipólito manifesta sua opinião. Mas, como diz Antonio
Vieira, onde não há comparação, não
há miséria: ao fazer a afirmação acima,
ele se espantava "que depois que a imprensa é livre
no Brasil não tenha havido quem examine esta questão,
iluminando o público e fazendo entrar o público no
conhecimento dos interesses que tão importante matéria
envolve." Era um ponto sobre o qual "todos os escritores
do Brasil guardam ainda silêncio" [CB, 29:
574-77 (nov. 1822)].
As razões para tal silêncio, e para a parcimônia
de Hipólito, eram conhecidas [CB, 15: 735-39]:
Os negociantes do Brasil que negociam na escravatura, os cultivadores
que empregam os negros nos seus trabalhos; e enfim toda a população
que é servida por escravos, deve naturalmente ser inclinada
à continuação deste tráfico, que
o hábito lhes faz parecer mui natural, que as leis lhe
ensinaram a olhar como mui legítimo e que os costumes
indicam como necessário. Quando, pois, falamos em favor
desta abolição, contamos de ter contra nós
toda a massa da população do Brasil.
E assim, talvez por ser assunto no qual encontrava oposição
absoluta, talvez por ser assunto interdito por seus patrocinadores,
foram poucas as vezes em que opinou sobre a escravatura, sempre
contra sua manutenção, sempre favorável a uma
solução "moderna" (máquinas mais
trabalhadores europeus) e sempre defendendo medidas graduais, já
que os escravos faziam parte de uma ordem econômica e social
que não deveria ser modificada repentinamente, sob pena de
uma convulsão danosa à nação.
Mas por que os comerciantes de escravos apoiariam jornal tão
avançado para a época? Não por suas preocupações
com o avanço do conhecimento e da instrução,
mas sim por sua defesa do livre comércio, por sua luta em
prol dos interesses econômicos brasileiros, por sua campanha
em prol da permanência da Corte no Rio de Janeiro. E para
ter a possibilidade de influir (conforme vimos na citaçãatilde;o
a que se refere a nota 59) sobre o jornal mais poderoso da época,
e de usá-lo como arma contra seus adversários, a nobreza
e os comerciantes com interesses em Portugal e desejosos de reverter
à antiga ordem.
Desta forma, podemos concluir que tinha razão quem dizia
que o Brasil é um país de contrastes: por aqui acontece
que o mais importante veículo do Iluminismo respeitava os
interesses dos traficantes de escravos.
(*) Historiador vinculado à Fundação Oswaldo
Cruz
(**) Doutoranda em história do IFCS-UFRJ