CORREIO BRAZILIENSE
Sergio Goes de Paula (*) e Patrícia Souza Lima (**)
O pano de fundo
A primeira reação do governo foi através do aparato da lei: a 14 de outubro de 1808, quatro meses após o lançamento do jornal, o príncipe regente enviou reservadamente uma provisão ao juiz da Alfândega proibindo a divulgação de avisos e anúncios, impressos ou não, que não tivessem licença do Desembargo do Paço. A proibição era genérica, mas a novidade que vinha da Inglaterra era parte da causa e sofria-lhe as conseqüências. Seis meses depois, a 27 de março de 1809, nova proibição, desta vez específica: d. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, oficiou reservadamente ao mesmo juiz da Alfândega, a pretexto da apreensão que este fizera dos “Manifestos impressos que o autor da obra mandou para o público ter conhecimento da mesma”. No ofício, refere-se especificamente ao Correio Braziliense, “brochura que veio de Londres cheia de calúnias [e] atrozes falsidades contra várias pessoas e das maiores absurdidades sobre a economia política” [apud M. Dourado, op. cit., t. 1, p. 270]. Em 30 de maio o intendente de Polícia dá a público a proibição.
Considerando-se o ritmo da época, os prazos em que se sucedem as medidas administrativas quase podem ser considerados vertiginosos, mas a ocorrência de cinco proibições específicas até início de 1812 mostra que elas não tiveram o resultado desejado. Basta lembrar a total ausência de estrutura fiscalizadora em portos brasileiros que acabavam de ser abertos para ver que seria fácil fazer chegar o jornal a seus leitores, “pelo costume de fazer contrabando”, como reconhece o próprio Linhares. Na verdade, os avisos oficiais de proibição tinham efeito contrário e funcionavam como propaganda, a propaganda que a provisão do príncipe visava reprimir. É o que diz, alguns anos depois, a respeito de outro jornal também proibido, o correspondente português de O Campeão Portuguez ou o Amigo do Rei e do Povo:
Aqui chegou do Rio de Janeiro a ordem para proibir o Campeão. Este governo, já mais prudente, não quis tomar sobre seus ombros este pecado do estulto e velho Portugal; contentou-se em mandar pregar pelas esquinas de Lisboa a proibição, assim como aparecera em corpo e alma nas esquinas do Rio de Janeiro; e aconteceu exatamente que nesse dia desembarcasse são e salvo esse mesmo seu Campeão. Assim, ao passo que se estava executando este moderado auto-de-fé, atravessava ele triunfante as ruas de Lisboa, às costas de um galego que eu ia acompanhando em distância. Não tenha por isso susto e fique certo que se até agora o liam cem, de hoje em diante há de ser lido por duzentos ou mil” [José Liberato, Memórias, apud José Tengarrinha, História da imprensa periódica portuguesa (Lisboa: Portugalia Editora, 1965), p. 64].
E com o passar do tempo, o Correio Braziliense era cada vez mais lido: Luccock se refere à sua larga circulação; em 1817, Tollenare encontrou exemplares do jornal na Biblioteca da Bahia; circulavam exemplares em Campo Maior, no Ceará; o motim fluminense de 26 de fevereiro foi atribuído “à caixeirada que se nutre com a leitura dos folhetos de Londres” [C. Rizzini, op. cit., p. 29]; segundo o próprio Hipólito, “lê-se o Braziliense até no Paço, sem rebuço algum” [apud C. Rizzini, op. cit., p. 30]. O descaso pela proibição era tal que em 1817, assustados com a conspiração de Gomes Freire em Portugal e temendo uma possível propaganda da insurreição de Pernambuco, os governadores do Reino tomaram a medida a que se refere a citação acima e que também alcançava o Correio Braziliense [temor infundado: o Correio Braziliense manifestou-se contra o movimento; ver Sergio Goes de Paula (org.), Hipólito José da Costa (São Paulo: Editora 34, 2001), p. 28].
Enquanto no Brasil se buscava impedir a circulação do jornal, o embaixador português em Londres, d. Domingos de Sousa Coutinho, tentava medidas diretas contra o jornalista, já que a boa e velha proibição de publicação, tão eficaz no Brasil e em Portugal, estava fora do alcance do governo português: a lei inglesa garantia liberdade de imprensa. A medida mais forte, deportação ? aplicada contra outro jornalista (e também diplomata) português, José Anselmo Correia, “perigoso pelos artigos que escrevia nas gazetas e no Correio Braziliense“, e que d. Domingos declarava haver “conseguido brandamente pôr fora do país”[ofício de d. Domingos Coutinho, n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty] ? estava fora do alcance: Hipólito, escaldado por seus anos na prisão do Limoeiro, tivera a precaução de solicitar o título de denizen, estrangeiro residente que obtém ex donatione regis privilégios de súdito inglês, e estava a salvo desta segunda arbitrariedade. Ressentido, e talvez para “queimar” Hipólito, d. Domingos passou à Corte a falsa informação de que “o duque de Sussex teve a bondade de o fazer naturalizar inglês”, e não podia ser expulso. E Linhares, impotente, oficia ao conde de Aguiar reconhecendo a força do adversário, “pelo conhecimento que ele tem de que pode obrar e atacar impunemente” [ofícios sobre José Anselmo Corrêa e o autor do Correio Braziliense, do conde de Linhares ao conde Aguiar; documento manuscrito: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro].
D. Domingos tinha toda razão: o jornal era mesmo uma “invenção terrível”. Tentou uma medida mais “civilizada”, um processo por calúnia, mas em vão: “Sendo muito difícil neste país fixar o que é libelo, e procurando quase sempre os juízes escusar os réus em favor da liberdade da imprensa, este homem irritado escreverá coisas que farão muito dano, e não será castigado, nem se pode mandar fora de Inglaterra” [ofício de d. Domingos Coutinho, n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty]. Tentou medidas diplomáticas, e solicitou ao subsecretário do governo britânico a proibição do trânsito postal do jornal na Inglaterra: também não teve boa acolhida, sob a alegação de que, além de ineficaz, a providência seria denunciada por Hipólito a seus leitores, o que deixaria mal o governo britânico. É de se observar que em toda esta história da repressão na Inglaterra ao Correio Braziliense as autoridades britânicas estão não apenas informadas, como dela participam; bem mais tarde, em 1817, esta mesma med
ida foi outra vez solicitada, mas desta vez o temor aos republicanos de Pernambuco e os efeitos da conspiração de Gomes Freire, em Lisboa, foram maiores do que o pudor, e o governo inglês, a pedido do então embaixador português em Londres, conde de Palmela, proibiu o embarque do jornal pelos correios e navios ingleses [M. Dourado, op. cit., p. 293]. Mas sempre em vão: seja porque a medida fosse para português ver, seja porque o tráfego se fazia também por navios de outras nações, para o Brasil continuavam indo “infinitos exemplares”, como dizia d. Domingos [ofício de d. Domingos Coutinho, n. 111, 9/5/1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
Algumas outras medidas locais, especialmente até 1812, ainda foram tomadas contra o Correio Braziliense, tais como o confisco, pelo governador José Narciso de Magalhães, dos exemplares desembarcados no Pará em 1810; a proibição de leitura pública do jornal no Rio Grande, em dezembro do mesmo ano; a aprovação formal de Linhares a esta medida, no ano seguinte; a ordem do mesmo Linhares aos governadores de Portugal proibindo a entrada do jornal, em ofício não publicado e em ordem transmitida à Mesa do Desembargo em março de 1812. Mas a partir daí, como se verá, as circunstâncias mudam.
Além de alvo das medidas formais e públicas, o Correio Braziliense era, evidentemente, tema de correspondências reservadas ou secretas entre as autoridades portuguesas, e através delas se pode ver as principais razões dos incômodos que causava, e que se pode classificar em três ordens: doutrina, informação e opinião.
Sem pretender fazer a análise do conteúdo doutrinário do Correio Braziliense, vamos começar por aquilo que não era problema: Hipólito sempre defendeu o sistema monárquico e a Casa de Bragança e sempre defendeu a união entre Portugal e Brasil, só aceitando a independência quando ela, a seu ver, já se havia consumado. Já as discordâncias são muitas: quando, por exemplo, Linhares, no ofício a que se refere a nota 11, fala das “maiores absurdidades sobre a economia política”, o tema em questão é a crítica feita no jornal à decisão do ministro de permitir a entrada de navios estrangeiros em apenas alguns portos brasileiros, e o ataque ao sistema de monopólios reais. Em vários números do jornal a questão vem à tona, criticando José da Silva Lisboa (a quem, por sinal, Hipólito nega qualquer responsabilidade pela abertura dos portos, medida inevitável num país sede de reino) e criticando o tratado de 1810 com a Inglaterra, considerado por Hipólito como lesivo aos interesses portugueses. Outros conflitos óbvios são a questão das liberdades, a defesa dos maçons, e a questão constitucional.
No que se refere à informação ? e não estamos nos referindo aqui às opiniões de Hipólito, mas a informações anteriormente divulgadas por outros meios ?, a ação do jornal era muito incômoda às autoridades. Escrito “na língua que lhe é mais natural e conhecida” o Correio Braziliense como que inseria a “nação longínqua e sossegada” num mundo em transformação, dava-lhe a noção da importância do tempo em que vivia, atribuía-lhe um papel, mesmo que pequeno, nas mudanças em curso (cf. CB, 1 [jun. 1808]). Era, assim, anticonservador por excelência. E mesmo documentos oficiais, como tratados e correspondências formais, perdiam, ao chegar às páginas do jornal, o caráter de comunicação entre pares que antes tinham: a publicação dos termos da convenção de Cintra entre ingleses e portugueses e que dizia respeito às condições da retirada dos franceses de Portugal, criou grande mal-estar, explicitado na correspondência oficial, por revelar os termos prejudiciais a Portugal em que se fez o acordo.
Finalmente, as reações das autoridades às opiniões de Hipólito são fáceis de entender, num Reino com censura de imprensa e onde o máximo de crítica pública que se podia fazer era afixar clandestinamente um papel num muro ou fazer circular em segredo panfletos produzidos com extrema dificuldade. As autoridades acusaram o golpe, por exemplo, quanto a uma série de matérias publicadas desde o primeiro número do jornal com a denúncia de um negócio nebuloso: a retenção, pelo governo inglês, das propriedades de negociantes portugueses na Inglaterra, por ocasião do breve rompimento de relações entre Portugal e Inglaterra em 1807, pouco antes da debandada da Corte. Coisa vultosa e que demorou para se resolver, envolvendo comissões suspeitas e nas quais, segundo Hipólito, estava envolvido o próprio d. Domingos.
As medidas formais de repressão tentadas principalmente nos primeiros anos de existência do jornal são a reação típica de um governo autoritário ? a propósito, as medidas são formalmente muito fortes, chegando a ameaçar com o degredo quem fosse encontrado pela terceira vez fazendo, sob qualquer forma, a divulgação do jornal. Mas também podem ser explicadas de outra maneira: paralelamente, outras medidas eram tomadas, entre elas a tentativa de acordo com o editor, e a repressão seria, assim, demonstração de força que fazia parte das negociações e que eram respondidas com matérias atacando as autoridades. A fortalecer este ponto de vista, o fato de que os principais responsáveis pelas medidas formais ? d. Domingos, d. Rodrigo e Paulo Fernandes Viana [intendente de Polícia na Corte, mais tarde agraciado com o título de barão de São Simão] ? participaram das negociações.
Revelando-se inúteis os atos formais contra o jornal, as autoridades lançaram mão de outra estratégia: o apoio à publicação de panfletos e jornais que se opusessem ao inimigo, no intuito de “rebater os sofismas dos outros e exercer uma saudável influência sobre a opinião da nação”, segundo afirmou Palmela quando embaixador em Londres [carta de Palmela para o marquês de Aguiar, ofício n. 12, 5/1/1817; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty]. É como dizia d. Domingos, escaldado por sua vivência na Inglaterra: “Eu repito, exmo. sr., a minha opinião decisiva e irrevogável, que nenhuma altercação pública se deve ter com um jornalista. Desmentir um fato falso, ou publicar uma exposição verdadeira contra a calúnia sem corresponder com o editor, é o método único que convém […]” [ofício de d. Domingos Coutinho, n. 117, jun. 1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
Panfletos e jornais
A terceira forma de enfrentamento, financiar publicações adversárias, foi utilizada em Portugal, principalmente nos primeiros anos de publicação do periódico ? não só por razões políticas, mas também porque no Brasil só existia, naquele período, uma única tipografia, a Tipografia
Régia. Assim, em 1810 e 1811 foram lançados alguns panfletos atacando os argumentos de Hipólito, e entre julho de 1811 e 1819 a legação portuguesa em Londres bancou um jornal, o Investigador Portuguez, com o propósito explícito de se contrapor ao Correio Braziliense. Ao longo destes anos, outros jornais surgiram, mais ou menos opositores. Vamos dar aqui algumas informações gerais sobre a imprensa portuguesa no exterior naquele período.
A) Panfletos
Ser panfletário em Portugal era, ao que parece, uma profissão. O panfleto não tinha então a conotação de hoje, e era, em muitos casos, um trabalho especializado, minucioso, com a pretensão de refutar, às vezes em detalhe, os argumentos adversários; em outros casos tratavam-se de meras “chufas grosseiras”, porque público havia para todos os gostos ? e também autores para todos os estilos, sempre pagos pelo governo, sempre anônimos, ausentes até mesmo os pseudônimos (em geral o nome dos autores era conhecido de todos, bem como o nome de quem mandava pagar. Quando se trata de panfletos, o segredo não é a alma do negócio, muito pelo contrário).
A dignidade adquirida pelos jornalistas durante o século XVII substitui a prerrogativa da importância dos livros e de seus autores para uma sociedade onde os jornais eram tidos como “fragmentos de livros”: o Correio Braziliense, impresso no formato in-octavo e com numeração contínua de páginas, era encontrado para compra em volumes. Isabel Lustosa é que aponta para essa distinção e mostra como essa forma de divulgação das idéias políticas foi muitas vezes decisiva nas tomadas de posição do governo português; assim, os jornais “não tinham o caráter ligeiro e descartável que vieram a adquirir depois” [Isabel Lustosa, Insultos impressos: A guerra dos jornalistas na Independência (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), pp. 28-29].
Os panfletistas documentavam suas hipóteses e refutações em textos muitas vezes bem trabalhados, discutindo passo a passo cada artigo do Correio; já Hipólito seguia um estilo ensaístico, sem as minúcias que os panfletistas tomavam para si, lançando provocações e adotando o “sistema de dizer bem e mal da mesma cousa, e com o mesmo rasgo de pena, destruindo assim o que parecia edificar” [Joaquim de Santo Agostinho Brito Galvão, Reflexões feitas em abono da verdade sobre os números do Correio Braziliense (Lisboa: Imprensa Régia, 1809), n. 1, p. 7]. Para Antonio Candido, o jornalismo de Hipólito era de ensaio, diferenciando-o, por contraste, do jornalismo de artigo ou de panfleto, mais meticuloso [apud I. Lustosa, op. cit., p. 78]. E este é, exatamente, um dos argumentos dos panfletistas: o Correio Braziliense, “por sua natureza e objetos não permite a extensão e profundidade das questões políticas, a investigação apurada da ordem dos procedimentos de cada governo, e os discursos refletidos de negócios tão graves e importantes, servindo apenas para ataques rápidos, repreensões sem medida, detrações orgulhosas, e ironias importunas” [ José Joaquim de Almeida e Araujo Correia de Lacerda, Exame dos artigos históricos e políticos que se contém na coleção periódica intitulada Correio Braziliense no que pertence somente ao reino de Portugal (Lisboa: Imprensa Régia, 1809), s.p.]. Ciosos de sua própria erudição, quase todos aproveitavam para criticar os erros gramaticais de Hipólito e sua linguagem repleta de anglicismos.
A importância atribuída por Hipólito a tais panfletos pode ser avaliada pelo fato de que procurou responder à maioria, deixando de lado apenas os que considerava mera grosseria, e que muitas vezes reproduzia-os em seu próprio jornal, coerente com sua proposição de que idéias combatiam-se com idéias.
1. “Reflexões feitas em abono da verdade sobre os números do Correio Braziliense“
O primeiro panfleto que se conhece contra o Correio Braziliense foi encomendado por Miguel Pereira Forjaz, membro da Regência. Escrito por Joaquim de Santo Agostinho Brito Galvão, abade de Lustosa, foi publicado pela Imprensa Régia nos anos de 1809 e 1810, sob a forma de comentários sobre os números 1 a 18 do Correio Braziliense, divididos em seis publicações. Logo de início, Lustosa diz algumas “verdades” a Hipólito: “Se lhe forem incômodas, ou se afrontar com a aplicação destes aforismos, tenha paciência: diz o adágio que as estocadas, onde se dão, aí se apanham […] vamos a contas seriamente: basta de burlesco” [(Galvão), op. cit., p. 5]. Aparentemente, Hipólito levou-o a sério, pois a notícia da publicação serviu de pretexto para que fossem interrompidas as longas negociações que ele vinha entabulando com o embaixador português em Londres.
Em Lisboa, ainda em 1810, o polemista abade Lustosa lançou também o panfleto “Apologia do periódico que tem por título ?Reflexões sobre o Correio Braziliense?, caluniosamente atacado pelo autor do mesmo periódico no seu número XIX”, tréplica aos comentários de Hipólito no Correio Braziliense.
2. “Exame dos artigos históricos e políticos que se contém na coleção periódica intitulada Correio Braziliense no que pertence somente ao Reino de Portugal”
De autoria de José Joaquim de Almeida e Araujo Correia de Lacerda, juiz do crime no Porto. Desta vez, não se tratou de obra de encomenda, foi o panfletista que, em agosto de 1809, ofereceu seu trabalho, na forma de treze cartas, ao patriarca de Lisboa. Este agradou-se da obra e logo chegaram ao Brasil exemplares da mesma. Lacerda analisa os artigos de Hipólito sobre Portugal, sempre com um tratamento polido [M. Dourado, op. cit., t. 1, p. 302]. atacando especialmente as notícias sobre a capitulação desse Reino, e lançando a idéia de que Hipólito inflamou os portugueses para uma guerra civil [(Lacerda), loc. cit.].
3. “Provas da falsidade e injustiça com que o editor do Correio Braziliense intentou desacreditar Antonio de Araujo de Azevedo, e algumas reflexões acerca desse jornal oferecidas aos seus leitores”
Lançado no mesmo ano do primeiro panfleto (1810), com a finalidade de contestar um artigo de Hipólito da Costa publicado no número 6 do Correio Braziliense, de janeiro de 1809, atacando o referido Antonio de Azevedo, ministro dos Negócios Estrangeiros por ocasião da capitulação portuguesa diante dos franceses. A defesa de seus pontos de vista serve de pretexto para a defesa da censura e ele ataca a liberdade de imprensa.
Seu autor ? que, segundo Hipólito, era um médico português que servira de espia no exército de Loison [Dourado, op. cit., t. I, p. 310] ? afirma que a princípio julgou Hipólito “agitado de um ardor indiscreto”, mas decidiu publicar o panfleto depois que lhe escreveu uma carta em defesa do ex-ministro que não foi respondida. Indaga-se qual poderia ser “o motivo da omissão do papel que lhe remeti para
reivindicar o crédito de Antonio de Araujo” e ataca Hipólito dizendo que a sua “alma fraca e venal” não pôde resistir a 400 libras esterlinas “que ainda lhe conservam os braços paralíticos!”[Provas da falsidade e injustiça com que o editor do Correio Braziliense intentou desacreditar Antonio de Araujo de Azevedo, e algumas reflexões acerca desse jornal oferecidas aos seus leitores (Lisboa: Nova Oficina de João Rodrigues Neves, 1810), p. 16]. Duas coisas a se observar neste caso: primeira, o panfleto é dos primeiros, entre muitos, a acusar Hipólito de se deixar subornar; e segunda, o fato de que mesmo depois de ser comprovado seu erro quanto às acusações feitas a Antonio de Azevedo, o Correio Braziliense não se retrata.
4. “Aviso aos portugueses sobre o Correio Braziliense“
Do quarto e último panfleto conhecido, impresso em Lisboa em 1811, não se conhece o autor. Ataca o editor também a respeito da divulgação dos levantamentos das províncias espanholas: “O Correio Braziliense apoiando os levantamentos das províncias espanholas na América contra a autoridade legítima que representa Fernando VII, convida, em conseqüência, para o mesmo até as do continente português” [Aviso aos portugueses sobre o Correio Braziliense (Lisboa: Imprensa Régia, 1811), p. 1].
No entanto, esses panfletos não tiveram o efeito desejado nem chegaram a afetar o trajeto do jornal. É como diz o próprio Hipólito: “Saiu depois do Correio Braziliense uma turba de escritos em Lisboa e em Londres, uns para o refutar, outros para o imitar. Alguns escreviam com seriedade, outros jocosamente: uns com argumentos, outros como meros caturras literários. Cada um enfunando-se para levar a palma” [CB, 22: 316]. Era preciso lançar mão de instrumentos mais permanentes.
B) Jornais
Outra forma de ataque ao Correio foi através da imprensa periódica, segundo a fórmula de Pereira da Silva de que “combate-se a imprensa com a imprensa […] [pois com a censura] toma maiores proporções e importância a sua explosão, e produz estragos mais perniciosos sempre que é comprimida e manietada” [J. M. Pereira da Silva, História da fundação do Império brasileiro (Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1865), t. 2, p. 142]. Na segunda década do século XIX a imprensa portuguesa já era abertamente política e de combate, em conseqüência da reação às invasões francesas no país [J. Tengarrinha, op. cit., p. 52]. Vários jornais liberais eram publicados em Londres e Paris, difundindo idéias que passam a representar uma ameaça para os governantes. Em que pese a convergência de pontos de vista com o Correio Braziliense no tocante à questão constitucional, muitos dos jornais liberais portugueses combateram Hipólito, tendo como centro de divergência a relação entre Portugal e Brasil.
1. O Investigador Portuguez em Inglaterra, ou Jornal Literario, Politico, &c.
Principal jornal de oposição ao Correio Braziliense, foi publicado mensalmente em Londres, de julho de 1811 até 1819, compondo ao final 92 números reunidos em 23 volumes. Seu prospecto anuncia como finalidade do jornal “uma profunda investigação sobre a origem, condição, e autenticidade dos fatos, assim como uma judiciosa censura, e imparcialidade ingênua na sua exposição” [O Investigador, vol. 1, n. 1, p. 3]. Sua estrutura, dentre os periódicos aqui em questão, é a mais parecida com a do Correio, pois dividia-se em quatro partes: Literatura, Ciências, Correspondência, Política. Tal como o Correio, também publicava tabelas divulgando os preços correntes dos produtos do Brasil e o mapa dos câmbios de Londres com as praças estrangeiras. Cada caderno do jornal constava de 100 a 128 páginas.
Seu fundador e principal redator até abril de 1814 foi Bernardo José de Abrantes e Castro, associado a Vicente Pedro Nolasco da Cunha; ambos recebiam uma pensão proveniente do Rio de Janeiro. Este primeiro redator foi substituído por José Liberato de Carvalho.
O jornal era, explicitamente, um esforço da embaixada portuguesa em Londres de se contrapor ao Correio Braziliense, e foi iniciado por d. Domingos quando ocupava o posto. D. Domingos se empenhou bastante pelo sucesso do jornal, sendo colaborador assíduo. Em 1816, ao assumir o posto, o conde de Palmela tentou dar nova orientação ao jornal, pois o redator de então, Liberato, vinha mostrando crescentes sinais de rebeldia. A tentativa durou mais algum tempo, mas sem resultado palpável: Liberato não cumpriu o acordo feito, já que o jornal enfrentava problemas de dinheiro, que se mostraram impossíveis de solucionar. D. João, insatisfeito com o teor dado ao jornal, retirou o apoio anteriormente dado e o jornal chegou ao fim.
2. O Campeão Portuguez ou O Amigo do Rei e do Povo, jornal político publicado mensalmente para advogar a causa de Portugal [O Campeão Portuguez vira O Campeão Portuguez em Lisboa, no ano de 1822, segundo nota em J. Tengarrinha, op. cit., p. 66]
Publicado em Londres entre os anos de 1819 e 1821, também teve como redator Liberato Freire de Carvalho. Jornal político, constitucionalista, publicado quinzenalmente para advogar os interesses de Portugal e combater a permanência da Corte no Brasil, era porta-voz do partido luso-espanhol-constitucional [M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 360]. Constava de duas folhas impressas in-octavo, com 32 páginas, divididas basicamente em três seções: Política (do Reino Unido de Portugal), Correspondência (e defesas), Resumo das Novidades do Tempo (dos quinze dias anteriores).
Com seus artigos, José Liberato pretendia “mostrar que não era um incendiário político que quisesse com as minhas palavras lançar o fogo da discórdia no país, porém um homem que queria aconselhar um rei a ser justo, e um povo a ter resolução para pedir justiça” [Alfredo da Cunha, Elementos para a história da imprensa periódica portuguesa, 1641-1821 (Lisboa: s.e., 1941), p. 160]. No prospecto do jornal acrescenta que “louvará e tratará sempre com muito acatamento e respeito a pessoa de el-rei, porque sempre o há de considerar como politicamente impecável, e defenderá os direitos e interesses do povo, porque entre ele e a pessoa sagrada de el-rei estão os empregados públicos de todas as classes, dos quais só vem a ruína dos reis e dos povos” [O Campeão Portuguez ou O Amigo do Rei e do Povo, vol. I, n. 1 (jul. 1819), p. 5].
3. O Espelho Politico e Moral e O Portuguez ou Mercurio Politico, Commercial e Litterario
O Espelho Politico e Moral foi uma publicação efêmera, que durou de 1813 a 1814 Era publicado em Londres por João Bernardo da Rocha, que logo o transformou em um periódico mensal mais completo, O Portuguez ou Mercurio Politico, Commercial e Litterario, que existiu de abril de 1814 a dezembro de 1821. Era um dos mais violentos e temidos jornais lib
erais. O conde de Palmela, então embaixador de Portugal em Londres, tentou impedir a expansão do jornal, conseguindo que não fosse admitido nos paquetes para o Brasil e Portugal, sob pretexto de que estava lá proibida e era por isso contrabando [J. Tengarrinha, op. cit., p. 62]. O Espelho, antes dele, já pregava o constitucionalismo, e era acusado de ter uma aliança com o Correio Braziliense e ser publicado sob a proteção de Hipólito.
4. O Padre Amaro ou Sovela Politica Historica e Literaria: dedicado a todos os portugueses de ambos os mundos
Publicado em Londres entre 1820 e 1826 pelo padre Joaquim Ferreira de Freitas, que depois de um período de aventuras a serviço de Napoleão, ao ver-se na miséria, foi para Londres publicar o Padre Amaro [A. Cunha, op. cit., p. 154]. Era composto pelas seções Variedades (memórias e cartas), Política e História (documentos), Países (respostas, discursos, documentos), Padre Amaro (opinião, artigos), Correspondência. O padre tinha fama de se vender a todos, e criticava os jornalistas ingleses: “O pago que tiram muitas vezes dos seus serviços indiscretos é o desprezo e a perseguição de todos os partidos” [O Padre Amaro, vol. 2, n. 7 (jul. 1820), p. 96]. Recebeu de d. Pedro I uma pensão vitalícia de 600 libras anuais, que foi suspensa nos seus últimos anos de vida por intrigas armada por seus inimigos, como diz em seu testamento [A. Cunha, loc. cit].
5. Annaes das Sciencias, das Artes, e das Letras
Publicado em Paris, dizia-se escrito por uma sociedade de portugueses, e sabe-se que José Diogo Mascarenhas Neto era seu redator. Foi editado entre 1818 e 1819. Palmela chegou a considerar a possibilidade de apoiá-lo, mas concluiu ser uma publicação pouco apta na divulgação de suas idéias. Era um periódico de divulgação, e não de discussão política propriamente dita. Estava dividido em três seções: Resenha Analítica, Notícias das Ciências, das Artes, etc. e Correspondência.
6. O Contemporaneo, obra politica e literaria
Publicado em Paris a partir de 1820. Sua proposta era promover o intercâmbio de conhecimento do progresso entre os países: “Aproveitando-nos da nossa posição em Paris, centro deste movimento, a empreender o trabalho de dar a conhecer a nossos compatriotas os sucessos do tempo” [O Contemporaneo, obra politica e literaria, n. 1, pp. 2-3]. Ao contrário dos Annaes das Sciencias e Artes, embora fosse igualmente um jornal de divulgação científica, lança-se também na discussão das questões políticas, chegando seguidamente a publicar documentos, como fazia o Correio Braziliense e O Investigador Portuguez. Publicado mensalmente em cadernos de cinco a seis folhas de impressão, e a cada quatro deles formava-se um volume de mais ou menos setenta páginas.
Quando estava encerrando sua publicação, o que já havia acontecido nessa altura com O Investigador e O Campeão, reverencia o Correio: “Bem se pode comparar o Correio Braziliense a um pai, que em sua vida, como Luís XIV, vê o fim dos muitos filhos que gerou” [M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 356].
Início das negociações
As negociações com o editor do jornal, última forma de controle tentada pelas autoridades, começaram cedo, demoraram muito, mas chegaram ao resultado esperado. O Correio Braziliense conseguiu encontrar seu patrocinador, como era voz corrente em Lisboa, em Londres e no Rio de Janeiro, já que as conversações secretas que se sucederam entre 1809 e 1812 eram um segredo de Polichinelo. Na verdade, não havia razão para o segredo, antes pelo contrário: o controle sobre a mais importante publicação do Brasil era uma arma de que os inimigos deveriam tomar conhecimento.
As negociações se prolongaram por cerca de três anos, divididas em duas fases, com um intervalo sobre o qual se sabe pouco. Na verdade, as duas fases da negociação são tão diversas entre si que se poderia pensar em duas negociações distintas.
A primeira diferença entre as duas fases é pontual: os primeiros intermediários escolhidos não primavam pela habilidade: Vicente Pedro Nolasco da Cunha, falando por Hipólito, e o embaixador d. Domingos, falando pelo irmão poderoso, d. Rodrigo.
Da inabilidade de d. Domingos há provas cabais: sua atuação desastrada na preparação da Conferência de Viena em 1815, e sua atitude “ridícula” (é o termo usado em correspondência da época) ao relutar em passar o cargo de embaixador para seu sucessor. E quanto a Nolasco, só se pode explicar sua presença nas negociações por ser, como Hipólito, maçom. De má fama entre seus contemporâneos, as referências desairosas a seu respeito são abundantes ? “papa-jantares”, “abominável e ingratíssimo”, “essencialmente preguiçoso e inábil para trabalhar”. D. Domingos nos dá provas do caráter duvidoso de Nolasco em carta onde se refere à maneira pela qual obteve uma documentação sobre a Maçonaria: foi “por sua via [que alcançou] as cartas e o tal catecismo em português, que eu tive a satisfação de mandar a Sua Alteza Real” [ofício de d. Domingos Coutinho, n. 99, 14/4/1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty]. Em 1805 Nolasco auxiliou Hipólito em sua fuga da prisão; em 1811 era, como vimos, redator do Investigador Portuguez, jornal criado para combater o Correio Braziliense.
A segunda diferença entre as duas fases está no momento em que ocorreram as primeiras negociações. Realmente, quando se considera a profundidade e a rapidez das transformações que aconteciam no mundo, em Portugal e no Brasil naquele ano de 1809, pode-se pensar que a situação ainda não estava madura para que fosse possível um pacto como o que se propunha: à instabilidade mundial, com as guerras napoleônicas ainda em curso, deve-se acrescentar as mudanças políticas advindas com a mudançccedil;a da Corte, e a completa reviravolta das práticas comerciais portuguesas, em conseqüência não apenas das mudanças globais ainda em curso, mas também de fatores nacionais, com a abertura dos portos brasileiros e a entrada de novos concorrentes, os grandes comerciantes/traficantes da antiga Colônia. E, neste cenário, o próprio Correio Braziliense era um elemento inédito que as autoridades não sabiam muito bem como tratar. Por isso o recurso às velhas práticas, por isso, também, as dificuldades nas negociações.
Segundo d. Domingos, a proposta partiu de Hipólito, através de Nolasco, e teve como causa imediata a decisão do governo português, em março de 1809, de proibir a entrada do Correio Braziliense no Brasil e em Portugal. A 1o de maio de 1809, d. Domingos escreveu a Linhares comunicando as negociações e solicitando uma flexibilização no rigor a que o jornal
estava legalmente submetido:
Digne-se v. exa. pôr na presença de S. A. R. que eu por mim nada receio do que ele escreveu contra mim […], mas sendo muito difícil neste país fixar o que é libelo, e procurando quase sempre os juízes escusar os réus em favor da liberdade da imprensa, este homem irritado escreverá cousas que farão muito dano, e não será castigado, nem se pode mandar fora de Inglaterra, porque está naturalizado inglês. Portanto, como ele em segredo me tem feito proposições de reconciliação, estimaria que S. A. R. me autorizasse a prometer-lhe a circulação do seu jornal no Brasil, contanto que nele não imprima cousa que me ache contrária aos interesses de S. A. R [ofício de d. Domingos Coutinho, n. 37, 10/5/1809; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
As negociações avançaram, passando a ser discutida não apenas a liberdade de circulação, mas uma subscrição governamental de 500 exemplares. Em troca, Hipólito se absteria de tratar da Maçonaria, encerraria as considerações sobre as constituições inglesa e portuguesa que vinha publicando, não tocaria em assuntos de religião etc.
As conversações se faziam sempre através de intermediários (principalmente Nolasco e o duque de Sussex), pois o embaixador achava “muito prudente poder sempre provar por terceira pessoa o que se passou, bem que secretamente, entre mim e o dito editor” [ibid], e com a esperteza protelatória que parecia caracterizar a maneira de fazer política da Corte portuguesa: ele esperava o resultado das consultas feitas a letrados ingleses sobre a possibilidade de processar criminalmente o jornalista e ia vendo se o jornal adotava gradativamente um tom mais palatável, “para não deixar perceber a conexão formada entre ele e mim” [apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 375].
Na verdade, era difícil deixar de perceber a conexão: ao longo de 1809 o jornal não apenas abrandou o tom das críticas ao embaixador, como dá mostras de que estava a caminho uma aliança em torno de algumas questões. Assim, no no 19, de dezembro daquele ano, o Correio Braziliense publica (“em letra grossa, para que no caso de serem faltos de vista não tenham precisão de seus óculos”) o brinde feito por d. Domingos em um banquete em homenagem a d. Maria I (é característica da política de corte a transformação dos fatos políticos em espetáculo), no qual diz ter recebido do irmão d. Rodrigo correspondência declarando que “não se proibiu o Correio Braziliense, o que só se fará se o seu autor o escrever de maneira que possa excitar sedições ou ser veículo de calúnias; o que ele não deve praticar”. E no no 21 chega a elogiar d. Domingos e atribuir-lhe sentimentos próximos aos de que ele próprio tinha, “pelo desejo que ele tem de que sua nação possa sair do caos da ignorância em que os inimigos da prosperidade dos povos os desejam precipitar”. E conclui: “É por estas idéias liberais do ministro que o partido francês o ataca”.
As negociações foram certamente muito difíceis, porque só em março de 1810, quase um ano depois de seu início, é que d. Domingos oficializou a proposta de subscrição dos 500 exemplares. Agora com pressa, pois voltou a insistir em maio, premido pelos acontecimentos: segundo ele, Hipólito se indignara com a notícia de que o jornal havia sido confiscado no Pará, e havia escrito um artigo violento contra o governador, que só a muito custo deixou de ser publicado. Enquanto isso, como vimos acima, continuavam os ataques ao Correio Braziliense, e Miguel Pereira Forjaz, membro da Regência, patrocinava as Reflexões sobre o Correio Braziliense, do abade Lustosa.
As coisas chegaram a um ponto que nem com a intervenção do duque de Sussex foi possível avançar nas conversações. Segundo Nolasco, “persuadido que todo sistema de moderação com velhacos e intrigantes é perdido e frustra o bom êxito de qualquer tentativa, por mais justa e bem concertada que seja” [com ofício de d. Domingos Coutinho, n. 111, 9/5/1810; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty], Hipólito perdeu qualquer esperança nas assinaturas do governo e rompeu as tratativas. Ironicamente, naquele mesmo mês, março de 1810, havia sido dada no Rio de Janeiro a aprovação, através de d. Rodrigo, para a compra das assinaturas, mas a informação ainda não chegara a Londres. A demora no trânsito das notícias entre Brasil e Inglaterra, tão importante na vida de Hipólito e de seu jornal, foi, mais uma vez, crucial. Segundo Nolasco, o jornalista aceitou os fatos resignadamente: “Demais, não sofro o descrédito de vender a minha pena e não ter dele o lucro” [cf. ibid].
Dois documentos, no entanto, permitem duvidar de que as conversas poderiam ter chegado a bom termo e que o negócio não foi fechado apenas porque Hipólito, como diz Mecenas Dourado, tomou “por desaprovação o que não era senão tardança”. No primeiro, um bilhete escrito a Strangford em 1814, e referindo-se às dificuldades com o Correio Braziliense, d. Domingos afirma: “J?ai voulu éteindre le foyer qui s?est allumé en Anglaterre, en achetant une fois pour toutes le libelliste. On me l?a defendu, Dieu sait qui a raison! mais le mal sera fecond… Tout cela aurait eté bien aisé a remédier il y a 4 ans. Sic voluere Priores ? ainsi l?a volue le Père Prieur!” [apud M. Dourado, op. cit., p. 385] E no segundo, o “Memorandum secreto de Cheltenham”, d. Domingos dá mais detalhes: “Mr. Canning […] avait, sur la fin de 1809, aprouvé le plan offert en secret par l?editeur du Correio Braziliense de se vendre à la Cour du Brésil, et, conformement à son avis (que l?envoyé de Portugal lui avait demandé confidentiellement), le marché verbal fut fait, et tint bon pendant six mois, à la fin desquels il cessa, parce que la cour de Brésil le desaprouva” [id., ibid].
Temos aí duas informações da maior importância. Primeiro, a autorização de Linhares não fora suficiente para fazer valer o negócio, faltando-lhe talvez a aprovação do soberano, talvez a força suficiente para impor sua decisão à facção antagonista, talvez a firmeza necessária para prosseguir. Segundo, a participação do governo inglês nas negociações, “aprovando” o plano e dando “conselhos” ao embaixador de Portugal. Desta forma, a não concretização do negócio é a vitória dos oponentes aos interesses ingleses ? que, no momento em que as conversações se davam, giravam em torno de dois pontos principais: o tratado de comércio entre Portugal e Inglaterra e o tráfico de escravos.
O próprio Hipólito, depois de interrompidas as conversações com d. Domingos, explicita a questão, ao falar da “desunião insensata, perigosa e temível do Ministério do Rio. Porque o que menos há na Corte do Brasil é união entre os ministros; há tal que nem a comum saudaç
ão de comprimento faz a seu colega” [CB, 4: 538-39]. Mas o jogo não havia terminado, como se vê no número seguinte, de maio de 1810. Após meses concentrando-se, nas partes da Miscelânea referentes ao Brasil, na questão da proibição da circulação de impressos e apenas permitindo-se críticas a certos governadores de província, o Correio Braziliense mudou de linha [CB, 4: 540]:
Pelo que nos toca, diremos que estes fatos vieram ter ao nosso conhecimento há meses, e não os publicamos até agora porque supúnhamos sinceras intenções de os remediar do modo possível, e assim mostramos a nossa moderação e boa intenção; mas ulteriores procedimentos nos têm convencido que não há tal sinceridade de desejos; que não existe esse patriotismo que supúnhamos nas pessoas de quem esperávamos o remédio; logo, não há bem que possa resultar da prudência de ocultar do povo estes fatos; deve sabê-los; procurar-lhe cada um o remédio. As finanças do país são o seu princípio vital; e a sua administração desta maneira tende a uma ruína inevitável. O segredo, neste caso em que se desespera do remédio, só tende a fazer o mal mais horroroso.
A matéria, indiretamente, trazia para a cena o novo ator, os grandes comerciantes/traficantes brasileiros. Explicitamente ela tratava da disputa em torno da comercialização dos bens do monopólio real (pau-brasil, urzela, diamantes), envolvendo não apenas “fundos imensos” sob a forma de comissões, como também o desaparecimento de alguns dos melhores diamantes enviados para serem negociados. Dois grupos disputavam o privilégio da comercialização. D. Domingos havia nomeado dois negociantes portugueses da praça de Londres, envolvendo-se diretamente na questão, colocando-se assim como “vendilhão de diamantes” e metendo-se em “embrulhadas que não são de sua competência”. E, na Corte, “os diretores do banco do Rio de Janeiro obtiveram do governo de lá o remeterem a seus correspondentes aqui em Londres aqueles mesmos produtos, diamantes etc., que dantes deviam vir a esta comissão já formada”. A reação de d. Domingos foi direta: “Eu não sei de tal nomeação, nem de existência de banco, ou seus diretores”. E Hipólito pergunta: “Quem viu jamais tal confusão?”
A pergunta era retórica, e confusão não havia; o que havia era uma disputa pelos favores do Estado, entre o Banco do Brasil (que, como vimos, havia sido criado com recursos dos traficantes) e capitalistas portugueses na velha tradição. Não estava em jogo, como afirma o jornal, o “mil vezes reprovado sistema dos monopólios” e não se tratava de uma disputa doutrinária entre a liberdade do comércio e o poder do Estado, mas de um conflito no interior do capital comercial.
A conclusão das negociações
Quase dois anos se passaram. Como vimos, as medidas formais não tiveram êxito, os jornais lançados contra o Correio Braziliense não estavam à sua altura, e este crescia de importância. Enquanto isto, o jornal fustigava aquele que viria a ser seu principal interlocutor na fase seguinte das negociações: Paulo Fernandes Viana, intendente da Polícia da Corte. Com efeito, ao longo do ano de 1811 sucedem-se os artigos criticando seu autoritarismo, sua pouca capacidade administrativa etc.[cf. M. Dourado, op. cit., t. 2, pp. 400-02]
A segunda fase das negociações, após o interregno de que só conhecemos as críticas manifestadas no jornal, foi rapidamente concluída no Rio de Janeiro em 1812; a rapidez indica a continuidade das conversações. Os personagens são Heliodoro Carneiro ? com delegação para falar em nome do Correio Braziliense, até porque Hipólito não podia se afastar da Grã-Bretanha, para não perder sua condição de denizen ? e Paulo Fernandes Viana. D. Rodrigo falecera no começo do ano, e o fiador do negócio foi o próprio d. João.
Heliodoro Jacinto de Araujo Carneiro era médico da câmara de d. João (“médico feliz sem receitar”, segundo um de seus inimigos), conhecido na Corte e nos meios diplomáticos (onde teve alguns cargos) como homem de d. João, muitas vezes encarregado de missões confidenciais, especialmente no exterior, onde vivia a maior parte do tempo. Tem a originalidade de haver defendido, desde 1817, a ida de d. Pedro para Portugal como príncipe regente, e a permanência de d. João e da Corte no Brasil, a porção mais poderosa do Reino. Esta idéia seria a única que faria “realizar a maior ligação possível entre os dois hemisférios, isto é, ser o herdeiro do trono o regente de Portugal, e que há de ser o rei do Brasil” [ibid., t. 1, p. 202]. Heliodoro defendia os interesses brasileiros, em contraponto aos portugueses:
Há 16 anos que vivo lá fora e por isso tenho sido testemunha muitas vezes da consideração que se deve ao nome português depois que o rei fixou a sede do governo no Brasil. Os estrangeiros têm uma grande idéia daquele país, mesmo os que lá nunca estiveram, isto só pelos gêneros que enchem os mercados da Europa, como ouro, diamantes, açúcar, algodão, café, cacau, pau-brasil etc. etc. E os políticos sabem mais, que a Corte de Portugal existindo no Brasil não está em situação de maroma, como tem estado Portugal desde 1640, de fazer e desfazer tudo com a chegada de qualquer paquete de Falmouth; viram todos uma prova: tomou o governo português posse de Montevidéu; fizeram-se todos os protestos para se largar, meteram-se nisto as grandes potências da Europa, e por fim nada conseguiram; isto porque não se mandava com a mesma arrogância e facilidade uma esquadra ao Brasil, como se podia mandar a Lisboa [H. J. d?Araujo Carneiro, Cartas dirigidas a S. M. el-rey d. João VI desde 1817. A cerca do Estado de Portugal e Brasil, e outros mais documentos escritos (Londres: Impressão de Mess. Cox e Baylis, [c.1821]), p. 10].
Hipólito e Heliodoro se conheceram em Londres; a proximidade que se fez entre ambos, e que duraria até a morte de Hipólito, foi bastante profunda ? Heliodoro foi parte importante nos negócios do jornalista ? e também fácil de entender, considerando a proximidade de interesses e pontos de vista. Em maio de 1812 Heliodoro viajou de Londres ao Rio de Janeiro, autorizado por Hipólito a fechar as negociações em torno do financiamento ao Correio Braziliense. Na versão dada por ele em carta a d. Pedro escrita em 1826, d. João lhe “tinha encarregado em 1812 com o maior empenho e interesse em várias comissões; entre elas fazer mudar de linguagem ao Correio Braziliense ou fazê-lo acabar, custasse o que custasse” [apud M. Dourado, op. cit., t. 2, p. 398].
O acordo devia ser executado através da Intendência Geral de Polícia e pago através do “cofre de sua repartição”, ficando Paulo Fernandes Viana encarregado de todas as providências: receber a correspondência de Hipólito e Heliodoro (através da firma
Miller & Cia, para evitar que fosse aberta na embaixada de Londres); opinar sobre o conteúdo de matérias, como o próprio Hipólito revela, em carta ao intendente de Polícia: “Pelos dois precedentes números do Correio Braziliense verá V. S. que eu tinha já antecipado as matérias que V. S. sugere, e com jeito que me pareceu necessário; agora, porém, sabendo que essa tinha agradado, não deixarei de insistir nela” [ibid., p. 400]; negociar o valor do primeiro pagamento, conforme carta de Heliodoro: “[…] 2 mil libras, que ele [Hipólito] disse devia ter em seu poder como garante do ajuste, e para indenizar a perda que ia a ter na diminuição dos subscritores, e que isto seria descontado nos dois últimos anos que lhe deveriam ser estimados dois anos de antecipação, pagando ele os juros” [ibid., p. 398].
Segundo Heliodoro, o negócio foi tratado diretamente com d. João, sendo Paulo Fernandes Viana apenas o executor do acordo: “[…] minha inteligência com o intendente geral da Polícia foi e era ordenada por Sua Majestade para se fazerem coisas pelo cofre de sua repartição que não era do voto de d. João de Almeida se fizesse, apesar de semelhante se fazerem pela despesa da legação de Londres e em conseqüência pelo Erário, isto é, para a redação e publicação do Investigador” [Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário bibliográfico português (Lisboa: Imprensa Nacional, 1883), t. 10, 3o do suplemento, s.v. ?Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro?, pp. 384-85]. E também, em carta ao próprio intendente: “Sua Majestade foi quem mandou ter com V. S. em 1812 para se arranjarem por sua via em Londres coisas que o conde de Galvea não era de acordo, mas que não obstante isso S. M. queria que se fizessem […]” [ibid].
Na verdade, d. João não apenas “queria que se fizessem coisas” a respeito das quais membros do governo “não era[m] de acordo”, como queria que fosse de conhecimento público a cooptação do jornal. Só assim se pode explicar a fartura de comentários públicos ou reservados feitos por jornalistas e funcionários, e também o cuidado com que o Correio Braziliense passou a ser tratado por membros do governo que até então lhe faziam oposição feroz.
Que o príncipe regente estava mais do que informado sobre a transação em torno do Correio Braziliense, não há dúvida ? um negócio de tal importância não se passaria sem que o soberano absoluto dela tomasse conhecimento e a autorizasse, especialmente numa repartição tão próxima, como era o caso da Intendência de Polícia da Corte. E a mudança de comportamento dos inimigos são prova cabal de que o acordo se fizera, acima das facções em que se dividia o governo. Assim, Palmela, em 1817, em ofício reservado a respeito das medidas que tomara junto ao governo inglês para proibir a entrada em Portugal do Correio Braziliense e de O Portuguez, escreve ao conde da Barca:
Não me atrevi, porém, a reclamar para o Brasil uma semelhante medida sem ordem expressa de V. Exa., por ignorar qual seja a tal respeito exatamente a vontade de el-rei nosso senhor, por constar aqui que para um dos sobreditos periódicos havia subscrito a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro, e que o redator do outro recebe provas não equívocas da beneficência de el-rei nosso senhor [ofício reservado do conde de Palmela ao conde da Barca, n. 31, 17/7/1817; documento manuscrito: Arquivo Histórico do Itamaraty].
Heliodoro poderia esclarecer a dúvida. Em correspondência a Paulo Fernandes Viana, escreve:
Veja V. S. a diferença do Correio Braziliense. Que ainda até hoje não é mandado pela secretaria ? veja a sua linguagem, o que ele tem servido à causa de S. M.; e porque é jornal de S. M., e não criado pelos ministros para os seus fins, não é protegido; pelo contrário, quiseram o compreender na ordem que veio a respeito do Português, isto é, de não deixarem que ele vá nem para Lisboa nem para o Brasil [grifo nosso] [correspondência de Heliodoro Carneiro a Paulo Fernandes Viana, Londres, 13/7/1818; documento manuscrito: Biblioteca Nacional].
As correspondências acima são esclarecedoras. D. João patrocinava o jornal, que “por não ser criado pelos ministros para seus fins”, era, por assim dizer, supra-ministerial, em condições de criticar os membros do governo e, portanto, de informar o rei e de servir-lhe de arma. De maneira oblíqua, d. João aproveitava-se de uma liberdade de imprensa que não havia em seu Reino. E a permissão de entrada no Brasil, contraposta à proibição da entrada em Portugal, mostra onde era importante o jornal circular.
Mas o protocolo da Corte não permitia que o príncipe regente conduzisse as negociações pessoalmente e a escolha dos mediadores diz quem vai se beneficiar diretamente com a transação. Sabemos que as negociações se iniciaram em 1809 com o conde de Linhares; este, no entanto, morreu no início de 1812, poucos meses antes de concluído o acordo, cabendo sua execução, como vimos, a Paulo Fernandes Viana. O que tinham em comum estes dois homens?
Linhares foi a principal figura do partido inglês e negociador, junto com Strangford, do tratado comercial com a Grã-Bretanha em 1810. Como ministro sempre demonstrou atividade (e também dispersão) e, ao contrário de muitos de seus colegas, interesse pelas questões de sua pasta. Segundo Oliveira Viana, sua correspondência mostra as mudanças de ponto de vista a partir da chegada ao Brasil: rapidamente tomou conhecimento de uma realidade que até então não suspeitava, e tanto em suas ações políticas como nos ministérios que ocupou a partir da chegada da Corte ao Brasil (acumulava a Guerra e os Negócios Estrangeiros, o que dá uma medida do poder de sua facção naquele momento) foi capaz de perceber a importância da ex-Colônia. Manteve sempre sua dedicação à Casa Real e seu viés absolutista, repugnando-lhe qualquer menção às reivindicações constitucionalistas.
De arraigado protecionista no começo do século a signatário de um tratado que dava todas as vantagens à Inglaterra, em 1810, longo foi o caminho percorrido por Linhares. Em 1809, escrevendo ao príncipe regente, opina em favor da mudança de sistema:
Portugal irá ganhar mais com o aumento que há de ter o Brasil depois dos liberais princípios que V. A. R. mandou estabelecer, do que antes ganhava com o sistema restrito e colonial que existia; Portugal há de ser sempre o depósito natural dos gêneros do Brasil, e o depósito há de ser muito maior; Portugal há de ter melhor e maior consumo para suas produções e fábricas do que antes tinha; e, finalmente, o exemplo do sucedido em Inglaterra depois da separação dos Estados Unidos que Smith predisse, há de também verificar-se em Portugal [Carta ao príncipe regente, 16/08/1809, apud Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil (Rio de Janeiro: Livraria José Ol&ia
cute;mpio Editora, 1945), v. 1, p. 214].
A estas alturas, com mais de ano e meio de Brasil, Linhares já deveria saber que as coisas não passariam assim, já teria tomado conhecimento da importância do capital comercial brasileiro, e deveria estar prevendo que no novo estado de coisas seria este o vitorioso no embate com os comerciantes portugueses da antiga tradição. Pode-se supor que havia malícia no argumento acima citado, destinado a convencer o monarca, mas alguns anos depois, como veremos, d. João seria capaz de aceitar a verdade, e a mentira cortesã não seria mais necessária.
De Paulo Fernandes Viana são conhecidas as atividades à frente da Intendência da Polícia da Corte, repartição responsável não apenas pela repressão, mas também por ações administrativas de certa monta. Assim, por exemplo, foi ele o responsável pela construção da Estrada da Polícia, ligando a Corte a Valença e Vassouras, que abriu o caminho para as futuras lavouras de café, beneficiando enormemente os poucos detentores das grandes sesmarias na região, convenientemente concedidas na mesma ocasião ? entre eles, diga-se de passagem, o próprio Paulo Fernandes Viana. Segundo o Correio Braziliense, também a ele se deve, em parte, a fundação do Banco do Brasil, pelo “trabalho que desenvolveu a persuadir os proprietários a tomarem ações do estabelecimento, não podendo nada fazer neste sentido o conde de Aguiar” [M. Dourado, op. cit., p. 404].
Assim, das ações concretas dos dois personagens, envolvidos no patrocínio ao Correio Braziliense (patrocínio público com interesses privados, sempre é bom frisar, para que não se naturalize a transação inocentando-a das vantagens em jogo) sabe-se, com certeza, que redundaram em benefício do capital comercial brasileiro, expresso na acirrada defesa dos direitos brasileiros. Falta, portanto, para comprovar a hipótese levantada no início deste artigo, mostrar suas ligações com os comerciantes de escravos.
A primeira indicação está na Estrada da Polícia. Segundo Lenharo [J. Caldeira, op. cit., p. 335], os arrematadores das sesmarias por ela beneficiada, e que iriam se valorizar enormemente, eram da família Carneiro Leão, os maiores comerciantes e traficantes de escravos da época. As vantagens auferidas conjuntamente por Fernandes Viana são a primeira mostra da ligação existente.
A segunda indicação está na integralização do capital do Banco do Brasil, que só foi possível depois de convencidos os grandes traficantes [J. Caldeira, op. cit., p. 340], “a um custo revelador: as dificuldades de sua formação resumiam a nova situação da elite com a chegada da Corte. Não só podia influir nas decisões, como também impor certas condições ou esperar vantagens suficientes para participar de empreendimentos com a Coroa” [J. Caldeira, op. cit., p. 341]. Em 1811, portanto, os comerciantes de escravos já eram considerados parceiros não apenas dignos, mas imprescindíveis. E, como vimos acima, segundo o Correio Braziliense [CB, 20: 437-38], o grande articulador da integralização do capital do banco (pelo qual tanto se interessou d. João), foi Paulo Fernandes Viana.
Mas a prova definitiva da identidade dos interesses de Linhares e Viana com os traficantes de escravos se dá da forma típica da época: através de casamentos. Pois bem, Fernando Carneiro Leão, chefe da família, faz o casamento de sua filha Guilhermina com Maurício de Sousa Coutinho, filho de d. Rodrigo. E uma de suas irmãs casa-se com Paulo Fernandes Viana [J. Caldeira, op. cit., p. 334]. Desta forma, se o Correio Braziliense era “o jornal de S. M.”, como dizia Heliodoro, pode-se dizer que era também o jornal dos Carneiro Leão.
E que pensaria d. João a este respeito? Sem sombra de dúvidas, as relações eram aprovadas por ele, e quanto aos traficantes de escravos, o espírito prático português já lhe havia feito perceber que eram fundamentais, como havia mostrado o episódio do Banco do Brasil. Não é que ele aceitasse a escravidão; ele era decididamente contra qualquer idéia abolicionista. E mais: ele não era apenas a favor do trabalho escravo; ele tinha consciência da importância do comércio de escravos para a prosperidade de seu Reino. E isto é dito, com todas as letras, num ofício de Maler, escrito em 1815, que chegou a nós: “Era aquele um assunto que o príncipe discutia sempre com calor, desenvolvendo com força e abundância todas as razões e motivos que o prendiam a tal comércio, o qual representava e considerava sempre como indispensável à prosperidade das suas colônias e mormente à deste vasto continente” [O. Lima, op. cit., p. 438].
Esta era uma questão em que Hipólito discordava de seu soberano, tanto do ponto de vista econômico ? “Negamos redondamente, e provaremos quando for conveniente, que o Brasil deixe de ser igualmente rico quando não tiver escravatura […]” ? como político ? “os brasileiros devem escolher entre terem Constituição política duradoura, sem escravatura; ou conservar seus escravos e as supostas riquezas que deles lhes provêm, sendo a pátria sujeita ao despotismo. Defendia a “necessidade de uma gradual e prudente extinção da escravatura” [CB, 24: 574-77] [este, por sinal, é o subtítulo do artigo “Escravatura no Brasil”, de onde tiramos a citação], que poderia ser substituída pela mecanização da lavoura e pela migração européia.
Considerava inevitável a abolição, por pressão das nações européias, especialmente a Grã Bretanha, declarando, “altamente e em bom tom”, que elas não tinham, no entanto, “direito de prescrever, a Estados independentes, regras sobre sua política interna”, considerando, no entanto, que “a imediata e absoluta extinção da escravatura […] seria uma medida revolucionária das mais perniciosas conseqüências”. Era fundamental, no entanto, que os brasileiros se preparassem para a medida, julgando, em 1815, que estava “por fim chegado o tempo em que esta questão da escravatura deve ser decidida afinal” [CB, 15: 735-39 (1815)].
Anos depois (em 1822) ele afirmava que este era “um ponto sobre que mais de uma vez temos falado em nosso periódico, dando nisso nossa decidida opinião”. Não deixava de ter razão, mas é preciso considerar que das cerca de vinte vezes em que o jornal toca o tema da escravatura, a grande maioria foi dando a público documentos ou relatando fatos; apenas cinco ou seis vezes, em toda a história do jornal, Hipólito manifesta sua opinião. Mas, como diz Antonio Vieira, onde não há comparação, não há miséria: ao fazer a afirmação acima, ele se espantava “que depois que a imprensa é livre no Brasil não tenha havido quem examine esta questão, iluminando o público e fazendo entrar o público no conhecimento dos interesses que tão importante matéria envolve.” Era um ponto sobre o qual “todos os esc
ritores do Brasil guardam ainda silêncio” [CB, 29: 574-77 (nov. 1822)].
As razões para tal silêncio, e para a parcimônia de Hipólito, eram conhecidas [CB, 15: 735-39]:
Os negociantes do Brasil que negociam na escravatura, os cultivadores que empregam os negros nos seus trabalhos; e enfim toda a população que é servida por escravos, deve naturalmente ser inclinada à continuação deste tráfico, que o hábito lhes faz parecer mui natural, que as leis lhe ensinaram a olhar como mui legítimo e que os costumes indicam como necessário. Quando, pois, falamos em favor desta abolição, contamos de ter contra nós toda a massa da população do Brasil.
E assim, talvez por ser assunto no qual encontrava oposição absoluta, talvez por ser assunto interdito por seus patrocinadores, foram poucas as vezes em que opinou sobre a escravatura, sempre contra sua manutenção, sempre favorável a uma solução “moderna” (máquinas mais trabalhadores europeus) e sempre defendendo medidas graduais, já que os escravos faziam parte de uma ordem econômica e social que não deveria ser modificada repentinamente, sob pena de uma convulsão danosa à nação.
Mas por que os comerciantes de escravos apoiariam jornal tão avançado para a época? Não por suas preocupações com o avanço do conhecimento e da instrução, mas sim por sua defesa do livre comércio, por sua luta em prol dos interesses econômicos brasileiros, por sua campanha em prol da permanência da Corte no Rio de Janeiro. E para ter a possibilidade de influir (conforme vimos na citação a que se refere a nota 59) sobre o jornal mais poderoso da época, e de usá-lo como arma contra seus adversários, a nobreza e os comerciantes com interesses em Portugal e desejosos de reverter à antiga ordem.
Desta forma, podemos concluir que tinha razão quem dizia que o Brasil é um país de contrastes: por aqui acontece que o mais importante veículo do Iluminismo respeitava os interesses dos traficantes de escravos.
(*) Historiador vinculado à Fundação Oswaldo Cruz
(**) Doutoranda em história do IFCS-UFRJ