Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Os perigos da simplificação

JAYSON BLAIR EM MIÚDOS

Alberto Dines

O mais perigoso dos subprodutos da homogeneização que domina a mídia brasileira é a generalite, generalização compulsiva e trituradora que reduz os fenômenos aos seus aspectos mais toscos e rudimentares.

A desculpa é a necessidade de tornar a análise inteligível mas, na realidade, esta “facilitação” beneficia mais os jornalistas preguiçosos e/ou preconceituosos do que o público. Em busca da descomplicação recorre-se ao clichê e com o clichê produz-se uma adulteração do quadro tão perigosa quanto a falsificação do seu conteúdo. Se optamos pela fenomenologia é indispensável levar em conta as particularidades e não apenas as essências.

Do vício não escapam alguns críticos da mídia e pelos mesmos motivos: a equalização grosseira, no tapa, dá menos trabalho do que a investigação em busca de nuances. Como vivemos neste momento sob a égide da filosofia de almanaque pode-se dizer que separar o joio do trigo é mais complicado e demanda mais esforço do que jogar tudo no mesmo saco.

É sempre mais fácil armar um diagnóstico totalizador (quando não totalitário) do que buscar uma avaliação diferençada, mais sutil e contrastada. Com a ajuda das muletas do apriorismo ideológico, os fatos concretos e seus desdobramentos tornam-se agentes passivos de uma coletânea de teorias conspiratórias.

Processo maior

Algumas análises e enfoques da cobertura da votação da proposta de concentração da propriedade da mídia americana na Federal Communications Comission (FCC), na segunda-feira (2/6) e da crise no New York Times têm a mesma marca reducionista e radical. Por mais que se tenha decretado que a mídia americana é uniforme, indiferençada, controlada pela Casa Branca, pelos grupos econômicos e pelas doutrinas de Leo Strauss, a verdade é que nos dois casos descortinou-se um ambiente muito diversificado, marcado por controvérsias e confrontos.

No caso da FCC, apesar do retrocesso aprovado pela maioria republicana, o debate público foi tão intenso e teve a participação de protagonistas tão surpreendentes (como Ted Turner, fundador da CNN, favorável à manutenção dos limites à propriedade) que ninguém em sã consciência pode afirmar que a mídia americana é monolítica, uníssona e uniforme. A oligopolização, como sempre, interessa a alguns, em geral os mais fortes, mas as vozes discordantes foram incisivas.

Há diferenças flagrantes e brutais entre a Fox e a CNN, entre o New York Times e o Wall Street Journal, entre USA Today e o Washington Post, entre o Sun e o Newsday, entre o Miami Herald e o Los Angeles Times.

Por mais esforços que Bush & equipe façam para descaracterizar a democracia americana ? e não são poucos nem irrelevantes ? mantêm-se os fundamentos, os ritos e, sobretudo, a pluralidade do sistema.

No caso Jayson Blair, a salutar discrepância de opiniões ganhou maior visibilidade diante dos ataques que o NYTimes sofreu nos últimos dias da parte do Wall Street Journal e do New York Post. A incursão da imprensa conservadora contra o liberal NYTimes não pode ser vista como mera disputa concorrencial. O acirramento das disparidades tem conotações mais profundas, filosóficas.

A disposição do jornalão nova-iorquino em escancarar as estripulias do seu repórter e levar aquilo que normalmente ficaria escondido entre quatro paredes para a esfera pública é inadmissível em veículos cujas empresas consideram-se livres de qualquer escrutínio público e responsabilidade social.

O caso Blair, e em seguida a demissão do editor-chefe e do secretário de redação do jornal, não podem ser vistos apenas na sua dimensão pessoal, profissional e deontológica. Não se resumem aos escrúpulos (ou falta de) no tratamento da notícia. Abrem um novo capítulo na relação da imprensa americana com a sociedade americana. É exatamente isto que assusta aos grupos reacionários dentro e fora da mídia.

O grupo Dow Jones, que edita o Wall Street Journal, empenha-se em desmoralizar e desqualificar o comportamento moralmente corajoso do rival porque não lhe interessa o precedente. Não pode admitir que, no futuro, a opinião pública americana, respaldada no que agora está acontecendo, venha exigir a mesma transparência e candidez se um “caso Blair” repetir-se na sua redação.

Estas diferenças precisam ser discernidas e explicitadas. O leitor brasileiro já foi suficientemente enganado nos últimos anos por avaliações levianas, simplistas e sectárias no tocante às realidades locais para agora ser ludibriado numa questão que diz respeito ao entendimento de um processo maior: o funcionamento da imprensa.