NOTAS DE UM LEITOR
Luiz Weis
Bola dentro da Folha de S.Paulo com a matéria "Presentes de Marisa abrem discussão ética", de Lilian Christofoletti e Julia Duailibi (6/7, página A 8).
Foi a primeira reportagem a pegar na veia do problema dos confortos proporcionados de graça à mulher do presidente Lula da Silva por três joalheiros, um "esteta ocular", um cirurgião vascular, um cabeleireiro, um maquiador (cosméticos incluídos), além da personal stylist que escolhe e paga ela mesma as suas roupas de grife.
Na compulsão por garimpar os podres dos poderosos ? que parte do princípio de que toda figura pública é culpada até prova em contrário ? a Folha freqüentemente atira primeiro e pergunta depois, força a barra além do aceitável para pôr no pau-de-arara fatos afinal inócuos e pessoas inocentes e, como a imprensa em geral, acusa aos berros e se retrata aos sussurros.
Mas, neste caso, graças ao lado bom da iconoclastia de sua linha editorial, o jornal fez o que a concorrência não fez porque não ousou.
Mais de um órgão de imprensa já tinha informado que a senhora Marisa Letícia anda ganhando objetos e serviços pessoais. Salvo engano, a própria Folha, pela colunista Mônica Bergamo, foi a primeira a contar que a primeira-dama usava jóias emprestadas de grandes marcas e que as devolvera (quem sabe por causa da repercussão da notícia no Alvorada, onde ela vive com o marido, ou no Planalto, onde ele trabalha e ela tem uma sala).
Mas ninguém tinha encarado o assunto que estava à vista de todos pelo ângulo mais sensível e de óbvio interesse público: será ético a "mulher de César" ? ainda mais levando em conta quem é ele, no caso ? receber tais favores ("benesses", diz a Folha)?
Dito de outro modo: o primeiro-casal não deveria ser o primeiro também a dar o exemplo de como os servidores do povo devem se comportar no relacionamento pessoal com os "agentes privados"?
Como manda o manual, o jornal ouviu quem acha errada a conduta da senhora Marisa e quem não vê nela nada de mais; quem acha que se aplicam a ela, por extensão, o Código de Conduta, a Lei de Improbidade Administrativa e o Regime Disciplinar do Servidor Público que o marido está obrigado a obedecer, e quem acha que não.
Estão no primeiro caso o procurador federal Luiz Francisco de Souza, o professor de direito Carlos Sunfeld (em termos) e o professor de ética Roberto Romano. No segundo, o procurador federal Guilherme Schelb (em termos) e o psicanalista Jorge Forbes.
O crítico sempre poderá resmungar que as repórteres também (ou em vez de) deveriam ter entrevistado fulano(a) e beltrano(a). A personagem central não foi ouvida nem se diz por quê. Mas a matéria, substanciosa e equilibrada, forneceu ao leitor pelo menos os elementos essenciais para que tire as suas próprias conclusões, como se diz na profissão.
Por exemplo, essa enésima prova de que só amor de mãe é de graça:
"Mesmo que Marisa pagasse, eu não aceitaria. Não é porque é a primeira-dama. Ela é a mulher que tem mais poder no país hoje [sic], e essa visibilidade para o meu trabalho não tem preço" ? (cabeleireiro Wanderley Nunes, que também entra na matéria com uma memorável qualificação de sua cliente especial: "Ela é um outdoor ambulante").
Para os profissionais, a reportagem traz um brinde extra: um retrato do revelador jogo-de-empurra no governo e no círculo pessoal da primeira-dama (expressão que a senhora Ruth Cardoso abominava com toda a força de sua discrição) diante da história.
A Comissão de Ética Pública da Presidência da República "informou não ser o órgão competente para comentar o comportamento da primeira-dama", lê-se no texto principal.
O secretário de Imprensa da Presidência Ricardo Kotscho, repórter de nascença, "informou que não iria dar informações sobre o que entende como ?vida pessoal da primeira-dama?", lê-se também.
Perguntada sobre as roupas compradas ? e pagas ? pela personal sytlist Tata Nicoletti para a senhora Marisa, a sua assessora de imprensa, Denise Gorcezski, disse que Tata não presta serviços a Marisa. "Ela tem CIC e RG. Vão perguntar a ela", sugeriu Denise.
Sugestão aceita, Tata devolveu de bate-pronto: "Não vou comentar. Tudo sobre a primeira-dama é com o Palácio." No Planalto, a assessora Denise informa que ao longo da campanha o primeiro-casal recebeu "muitos presentes singelos, como panos de prato, Bíblias, terços e santinhos".
Tudo bem, mas e os seis óculos de até R$ 2 mil, recebidos grátis do "esteta" Miguel Giannini? Aí a conversa é outra: "A orientação que temos do Ricardo Kotscho é que não vamos falar a respeito da vida pessoal da primeira-dama".
Das seis perguntas enviadas por e-mail a Denise, e que passaram pelo crivo de Kotscho, só uma não foi considerada invasiva da intimidade de Marisa: a das jóias, no valor de R$ 166,6 mil, emprestadas e devolvidas. "Marisa não comprou nenhuma jóia [ninguém disse que tinha comprado] e devolveu todas [o que já tinha dado no jornal]."
Então, fica-se assim. Pela lógica palaciana, falar dos óculos presenteados fere a intimidade da mulher do presidente. Falar das jóias emprestadas, não.
A reação do pessoal do governo vem a calhar para o que se segue.
Faz um mês, informa O Estado de S.Paulo (6/7, página A 6), que funciona no governo o Serviço de Pronta Resposta (SPR), "que visa a não deixar sem resposta imediata nenhuma notícia que o governo considere errada".
Só o título ("Planalto cria manual de defesa contra imprensa") e o subtítulo ("O Serviço de Pronta Resposta ensina 15 truques para ministros responderem às críticas") já justificariam que fosse acionado o SPR.
A expressão "manual de defesa contra imprensa" e a referência a "15 truques" induzem o leitor a erro. A julgar pela própria matéria, a Secretaria de Comunicação adotou e repassou a todas as assessorias de imprensa do governo um manual de seis páginas, elaborado pelo professor de jornalismo Bernardo Kucinski, assessor do secretário Luiz Gushiken.
Com 15 regras sobre como contestar, em cartas aos órgãos de mídia, o que a autoridade considere erros do noticiário e esclarecer o que ela entende ser a verdade dos fatos, o manual também se preocupa em aumentar as chances de publicação das cartas. "Quanto mais importante a autoridade que assina a carta, maior a probabilidade de ela ser publicada", ensina o guia, coberto de razão.
A publicação das regras ? por alguma razão não explicada ao leitor, o Estadão deixou cinco de fora ? é útil para produtores e consumidores de mídia porque mostra como funciona a cabeça dos comunicadores do governo.
Mas nada na reportagem justifica o malicioso "contra a imprensa" do título e os "truques" do subtítulo. Por que não o objetivo "Planalto cria manual contra erros da imprensa"? E por que não o igualmente factual "…15 normas para ministros responderem a críticas".
A matéria pisa na bola também quando diz:
"Desde que o SPR foi criado, as redações dos jornais são ?entupidas? de cartas. E há funcionário do governo se queixando de que não faz outra coisa na vida a não ser contestar notícias".
Primeiro, pela generalidade da informação. Para caracterizar o "entupimento" e provar que não se trata de uma infeliz licença jornalística, não seria tão difícil assim levantar na Secretaria de Comunicação quantas cartas contestatárias o Executivo disparou antes e depois do SPR, para onde foram remetidas e como foram tratadas pelos destinatários.
Ou, se isso é pedir muito, poderia o repórter apurar quantas cartas o jornal em que trabalha recebeu do governo e o que aconteceu com elas.
Não é detalhismo. Quando lê que "as redações dos jornais são ?entupidas? de cartas", o incauto leitor pode achar que a imprensa está errando demais na cobertura do governo Lula ou que este acha que isso está acontecendo. Em qualquer hipótese, teria o que pensar.
A segunda pisada de bola é a ligeireza da alusão à desdita do anônimo funcionário do governo que se queixa de que "não faz outra coisa na vida a não ser contestar notícias". Claro que o leitor sabe o que é força de expressão e o que é o sentido literal das palavras. Mas por que não dizer que o fulano contesta em média xis informações por dia? Melhor ainda, por que não descrever como funciona no governo o sistema ? se sistema existe ? de checagem do noticiário que lhe diz respeito?
Além disso, a matéria deixa passar entre as pernas uma constatação
do professor e assessor Kucinski, do tipo "parem as máquinas":
"A imprensa erra muito; o problema é que o governo erra
mais". Qualquer governo ou o governo Lula? Quais seriam os
erros que o governo Lula comete? Por quê? E se assim é,
não seria o caso de perguntar se não conviria o Planalto
ter, além de um Serviço de Pronta Resposta (para os
erros da mídia), um Serviço de Pronto Reparo (para
os seus próprios e mais numerosos equívocos)?
O boné do MST na cabeça do presidente rendeu uma pá de cartas aos jornais. Eis aí um gancho para uma reportagem imaginária.
Tomem-se, como ponto de partida, apenas as cartas publicadas no Estadão e na Folha. As primeiras, invariavelmente contra Lula e o MST. As outras, meio a meio.
Será que os leitores do Estadão que escrevem cartas, diferentemente daqueles da Folha, têm todos as mesma opinião sobre o assunto? E será que os da Folha estão tão divididos como a sua leitura dá a entender?
Isso a uns e outros não é dado saber porque, na grande imprensa brasileira, com a provável exceção da Veja, as seções de cartas são as mais fechadas aos leitores.
O público não faz a menor idéia do que acontece com as cartas enviadas às redações pelos leitores comuns, comentando os fatos do dia. Essencialmente: o que faz com que uma carta seja publicada? O seu alinhamento com a posição do periódico? A qualidade da prosa e dos argumentos? A concisão? O lugar de residência do leitor? (Cartas vindas do exterior precisam ser, digamos, impublicáveis, para não serem publicadas.)
O ponto a que se quer chegar é este: lendo uma matéria, fica-se sabendo, grosso modo, se o jornal ou a revista ouviu "os dois lados"; lendo uma seção de cartas, não se fica sabendo se a publicação privilegiou tais ou quais remetentes (e, em caso positivo, o porquê) ou se ela tem por norma publicar as cartas que comporiam uma "amostra representativa" das opiniões recebidas ou até do perfil dos seus leitores (até onde as cartas permitam inferir).
A importância disso são duas, com perdão do português. De um lado, o modo como o periódico lida com a correspondência recebida é um indicador seguro do respeito (ou da falta de) por seus consumidores. A própria opacidade da questão já é um mau sinal.
De outro, pode não parecer, mas as seções de cartas são
instrumentos de formação da opinião eventualmente
mais fortes até do que os editoriais. Leitor lê carta
de leitor. Quem não lê é jornalista. É
mais fácil, quem sabe, um leitor ser persuadido pelas poucas
linhas de um comentário de um seu semelhante do que pelos
textos não raro portentosos dos editorialistas.
Na segunda-feira, 30/6, o governo Sharon anunciou o equivalente a um rompimento de relações diplomáticas com a British Broadcasting Corporation, a celebrada rede de rádio e televisão BBC, que se distingue pelo rigor e a busca da objetividade de suas matérias. A diferença entre a sua cobertura da guerra no Iraque e a das redes americanas foi do dia para a noite.
No último fim de semana de junho, o serviço mundial da emissora levou ar o documentário A arma secreta de Israel, já exibido na Grã-Bretanha em março, sobre os arsenais israelenses de destruição em massa.
Em represália, de agora em diante nenhuma autoridade israelense dará entrevistas exclusivas à BBC. Ela também perdeu as facilidades operacionais concedidas à mídia estrangeira em Israel.
Por que "arma secreta", como diz a BBC, não se sabe. Os programas nucleares e químicos de Israel, especialmente os primeiros, são um segredo de Polichinelo. O país não assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e não permite que as suas instalações nucleares em Dimona, no deserto do Negev, sejam inspecionadas.
Em 30 de setembro de 1986, agentes secretos israelenses seqüestraram no exterior o judeu-marroquino Mordehai Vanunu. Empregado como técnico em Dimona, Vanunu denunciara, com fotos tiradas por ele mesmo, o clandestino programa atômico de Israel, incluindo instalações de enriquecimento de plutônio. Vanunu cumpre pena de 18 anos de prisão, dos quais quase 12 passados em solitária. A história desse prisioneiro de consciência está na matéria da BBC.
Não há tampouco novidade alguma no fato de o governo israelense tentar desqualificar como "anti-semitismo" o que não goste de ver, ouvir e ler na mídia internacional sobre as suas políticas brutais na Cisjordânia e Faixa de Gaza.
Mas no caso da BBC o sharonismo se superou a si mesmo.
"O modo como a BBC está tentando tratar Israel rivaliza com o pior da propaganda nazista", disse, presumivelmente sem enrubescer, o chefe da Agência de Imprensa do governo israelense, Daniel Seaman.
Ele não se preocupou em contestar a reportagem da BBC. Preferiu acusar a emissora de judeufobia. O documentário, segundo Seaman, seria apenas o mais recente de uma série de programas que "retratam Israel sob uma luz muito maligna" e, no limite, questionariam o direito de Israel existir.
Com fleuma característica, a BBC limitou-se a dizer que confirma o conteúdo do programa e que lamenta qualquer resposta que o governo israelense possa adotar que imponha obstáculos à atividade de seus correspondentes.
Israel se gaba de ser uma democracia. O seu governo abomina a imprensa estrangeira
independente como qualquer ditadura. Sharon deve sonhar com um corpo
de correspondentes composto apenas pelo dócil pessoal da
Fox News.
Há poucas semanas, quando saiu a autobiografia da senadora Hillary Clinton e ela foi a estrela de sucessivas e concorridas sessões de autógrafos nas principais livrarias de Nova York ? todas elas devidamente cobertas pela mídia ?, as opiniões de um certo cidadão chamado Greg Packer sobre o livro e a autora foram citadas uma dúzia de vezes em diversos jornais. Ele também apareceu em noticiosos da TV americana.
Um atento repórter do Wall Street Journal, intrigado com tantas aparições de alguém de quem nunca ouvira falar, foi atrás da história ? e achou ouro puro.
Pecker, empregado de uma firma de manutenção de estradas em Long Island, NY, era um "papagaio de pirata" não de pessoas, mas de acontecimentos.
A sua especialidade é ir a eventos que ele sabe que atrairão jornalistas e achar o lugar certo para ficar e ser facilmente abordado por repórteres interessados em colorir as suas matérias com a opinião do "homem da rua".
Uma pesquisa na internet localizou pelo menos uma centena de aspas de Packer sobre assuntos tão díspares como o filme Guerra nas Estrelas, a parada irlandesa em Manhattan pelo Dia de São Patrício ? e, claro, a guerra no Iraque. As suas opiniões não têm nenhuma importância especial. Mas, que diabos, é a voz do povo ? e ele sacou não há cobertura que se preze que não a inclua.
Ou, nas palavras da crítica de mídia do Newsday, de Long Island, Sheryl McCarthy, "nós, jornalistas, vamos atrás de aspas de homens e mulheres comuns para enfeitar as nossas matérias, dar-lhe um ar de autenticidade e provar que estávamos ali".
A fórmula é conhecida. Como escreve Sheryl:
"Para fatos e argumentos ponderados, procuramos políticos, advogados, ativistas e pessoas cujas vidas são diretamente afetadas pelos acontecimentos e questões que estamos cobrindo. Para emoção, procuramos pessoas simples, presumindo que elas espelhem o que o público em geral pensa e sente".
Tem mais, no entanto. Impossível imaginar alguém que tenha posto os pés numa redação e não saiba de um motivo adicional e escuso para os repórteres saírem à cata da voz do povo. "Às vezes, procuramos comentários que confirmem o que tentamos dizer na matéria", entrega Sheryl. "E queremos impressionar os nossos chefes mostrando que estivemos na rua e não apenas ficamos fazendo corpo mole nos nossos cubículos."
Repórter na rua, principalmente se é daqueles que não gosta de cheiro de povo, trata de liquidar o quanto antes a fatura da entrevista com "populares" ? o pedaço menos nobre da sua matéria ? ouvindo o primeiro que aparecer, em vez de gastar sola de sapato atrás de comentários originais ou reveladores.
Por isso deu tão certo o macete do esperto Greg Packer para deixar de ser um anônimo espectador dos acontecimentos e virar "notícia".
Ah, se o leitor soubesse como se faz uma matéria.
Texto jornalístico que obriga o leitor a procurar o dicionário não merece perdão. É o caso do perfil do grande fotógrafo de guerra Robert Capa (1913-1974) publicado no caderno "Ilustrada", da Folha de S.Paulo (4/7), a propósito da exibição, na TV, de um documentário a seu respeito.
Em dado momento o perfilador Sergio Dávila escreve que "Capa nasceu com polidactilia". Ganha uma assinatura da Folha quem provar que um leitor em cem, se tanto, sabe o que o palavrão significa.
(Parêntese em memória do jornalista e escritor George "1984" Orwell, cujo centenário acabou de transcorrer. Ele ensinava: "Entre uma palavra comprida e uma curta, escolha sempre a curta". Está na primeira página do manual de redação da revista The Economist.)
Ao dicionário Aurélio, então, para ser apresentado à polidactilia.
Polidactilia, lê-se, é "anomalia de polidáctilo". E polidáctilo (ou polidátilo) é quem tem mais de cinco dedos na mão ou no pé.
Ah, bom. Se assim é, quantos dedos a mais ? e onde ? teria Robert Capa ao nascer? E que aconteceu com eles?, há de se perguntar o curioso leitor.
De volta ao perfil, então, em busca das respostas. Decepção: nem uma palavra a mais sobre o assunto. Vai ver, o repórter evitou o problema porque ficou cheio de dedos.