Quando as revistas British Journalism Review e Press Gazette fizeram, há alguns anos, uma pesquisa entre seus leitores para indicar o melhor editor de jornal de todos os tempos, o escolhido foi Harold Evans. A escolha pode ser discutida, eu não teria votado nele; o próprio Evans ficou surpreso.
Mas sua indicação é um reconhecimento da competência e coragem que demonstrou como editor do The Sunday Times de Londres durante 14 anos, de 1967 a 1981. Ele também dirigiu The Times durante um ano e depois se mudou para os Estados Unidos.
My Paper Chase são as memórias de Evans, publicadas ao completar 81 anos. Os detalhes sobre a origem de sua família, sua infância e educação podem não ser de grande interesse para o leitor brasileiro. Mas a capacidade de indignação sem rancor, a persistência para enfrentar uma estrutura que excluía os menos favorecidos e a tenacidade para subir no pau de sebo social são qualidades dignas de admiração em qualquer país e em qualquer época.
E qualquer jornalista pode aproveitar sua experiência. Ele percebeu que o que é apresentado ao público como verdade muitas vezes não coincide com o que um repórter apura. ‘Em tempos de guerra, a verdade deve ser protegida pelos guarda-costas da mentira’, dizia Winston Churchill. Mas esse hábito de mentir por quem está no poder é também muito cultivado em tempos de paz. Assim como o abuso do conceito de ‘interesse nacional’, para esconder incompetência. Outra coisa que ele aprendeu é que pessoas normais, de boa-fé, se ressentem dos fatos que contrariam suas crenças e convicções. E observa como agem os governos contra os jornalistas que não rezam por sua cartilha. Quando era presidente, George W. Bush acusava os repórteres que cobriram a invasão do Iraque de preguiçosos, estúpidos, covardes e sem patriotismo e, em outras ocasiões, de traidores.
Circulação incrementada
Evans é autor de cinco dos melhores livros sobre a prática do jornalismo. A leitura dessa série, ‘Writing & Design’, escrita há mais de 30 anos, ainda deveria ser fundamental em todas as redações em que haja preocupação em melhorar o desenho de uma página, escrever um texto claro e direto, fazer um título com impacto e escolher uma fotografia. Em My Paper Chase ele mostra como colocou tudo isso em prática.
Evans é de origem humilde. Nasceu na decadente região industrial do norte da Inglaterra. ‘Uma questão que tenho me perguntado com frequência sobre meus pais – escreve Evans – é o que eles poderiam ter feito se tivessem tido alguma chance. Como milhões de outros, foram condicionados, desde que nasceram, pela crença, entre as elites governantes, de que a educação não podia – nem deveria – fazer nada pelas classes trabalhadoras.’
Só em 1944 a educação secundária foi aberta para todos, mas a superior ainda continuava fechada para os pobres no tempo de Evans. Esse sentimento de injustiça contra os humildes – mas não de revolta – permeia o livro e todo o seu trabalho como jornalista.
Ele começou aos 16 anos no Ashton-under-Lyne Reporter, um semanário na grande Manchester, onde aprendeu a importância da informação local detalhada para os habitantes de uma comunidade. Deu um grande salto na redação do Manchester Evening News, o maior jornal provincial inglês. Aprendeu todas as técnicas do ofício. Escrever com rapidez, desenhar uma página atraente, fazer títulos com impacto, organizar coberturas, alinhavar editoriais. À noite, passou a lecionar para adultos. Aprendeu com eles o que a maioria dos jornalistas ignora: que transmitir informação é mais fácil do que criar compreensão. Daí sua preocupação, nos jornais que editou, em ser didático e explicar exaustivamente, não apenas informar.
Evans diz que o segredo do extraordinário sucesso do Evening News era a maneira como o editor, T.E. Henry, se identificava com os diversos tipos de leitores. Ele lia com cuidado todas as cartas que chegavam à redação e lhes dava um grande espaço. Foi um precursor, nos anos 1950, do ‘jornalismo cidadão’. Segundo Evans, ‘todos os editores que se orgulham de nunca olhar as cartas dos leitores invariavelmente dirigem jornais de segunda categoria’.
Depois de dois anos nos EUA com uma bolsa de estudos, Evans passou a editar um jornal de província, The Northern Echo, de Darlington. As campanhas que o tornaram famoso não começaram como um plano deliberado; foram circunstanciais – causadas pelas frustrações e pelo descaso da vida pública –, e sempre ligadas às necessidades da comunidade. Mas evitou qualquer filtro político e decidiu não iniciar nenhuma campanha sem antes fazer uma investigação completa, definir qual seria o objetivo e oferecer amplo espaço às opiniões contrárias.
A primeira começou quando Evans mudou de casa e percebeu um intenso cheiro como de peixe podre, acompanhado de uma neblina. Era causado pelas instalações da Imperial Chemical Industries, na época a maior empresa inglesa, que atribuía o fedor a causas naturais. Ele mandou fotografar a fumaça e publicou no jornal ‘a foto do cheiro’. A empresa reconheceu que havia um vazamento da unidade de amônia e tomou medidas para evitá-lo. Depois, muito antes de estar na moda, o jornal combateu a poluição ambiental.
Lutou para obter o perdão póstumo de Timothy Evans, um inocente executado pelo crime cometido por um policial, e para que seu corpo fosse entregue à família. Pressionou também para obrigar o Serviço Nacional de Saúde a fazer exames simples que detectam, nos primeiros estágios, o câncer cervical, que estava matando milhares de mulheres inglesas. ‘Quantas mulheres mais têm que morrer para que o ministro comece a agir?’, perguntava o Echo. Depois que, finalmente, o ministério agiu, o jornal calculou que tinham morrido 25 mil mulheres.
Quando os jornalistas ficam cansados de uma campanha é quando o público começa a percebê-la, dizia. A circulação do jornal aumentou em 14% e o lucro triplicou.
Causa ganha
Num programa de televisão, ele criticou o Financial Times por não informar que um executivo judeu fora demitido de uma grande seguradora por pressão de interesses árabes. O FT pertencia ao mesmo grupo do jornal editado por Evans.
O prestígio conseguido no The Northern Echo lhe valeu um convite do The Sunday Times, o jornal dominical de maior circulação de Londres, controlado por Lorde Thomson, empresário de origem canadense. Em poucos meses, Evans era nomeado editor, depois de convencer o conselho de administração da Times Newspapers Ltd. de que não orientaria o jornal de acordo com os interesses comerciais de Thomson. Como a única orientação que recebeu foi não atacar a rainha, entendeu que isso lhe dava liberdade, que foi exercida, para criticar os negócios de petróleo de Thomson no Mar do Norte.
The Sunday Times passou a incomodar o governo e uma grande variedade de interesses. Evans tornou-se um assíduo visitante involuntário dos tribunais de Londres.
O jornal tinha que romper as barreiras levantadas pelo establishment. Era um ambiente em que os tribunais davam ao direito à propriedade prioridade sobre os direitos das pessoas. Mas Evans afirma que o espírito do jornal não era de hostilidade nem ao governo nem ao mundo dos negócios, mas de independência. Ele via o que uma imprensa realmente livre era capaz de fazer e, ao mesmo tempo, ficava chocado pela sua passividade em assegurar igual proteção para os mais vulneráveis. The Sunday Times passou a ser considerado o mais efetivo flagelo do poder de toda a imprensa britânica.
Talvez sua campanha de maior impacto tenha sido a série de reportagens sobre a talidomida, o remédio para reduzir a ansiedade e o enjoo das mulheres grávidas que, no mundo inteiro, ocasionou o nascimento de milhares de crianças aleijadas e deformadas. Quando começou a publicar informações sobre a talidomida, inicialmente no Echo, leitores escreveram protestando que não era assunto para um ‘jornal de família’; era o equivalente a ‘não queremos saber’.
O remédio, lançado como a droga da ‘felicidade’, tinha sido produzido por uma subsidiária da Distillers, conhecida pelas suas marcas de uísque famosas. No início dos anos 1970, Evans voltou ao tema no The Sunday Times, com o objetivo de conseguir uma ‘compensação decente’ para as vítimas. O Ministério da Saúde recusou-se a abrir um inquérito para investigar a origem do desastre e até mesmo a dar um alerta para evitar o consumo da talidomida que ainda estava no mercado. Segundo o ministério, apoiado pela imprensa, a Distillers tinha feito os testes do remédio de acordo com os padrões da época. O que, o jornal provou, não era verdade.
Para as famílias, a única saída foi ir à Justiça. Como o caso estava nos tribunais, era ilegal informar ou comentar sobre a questão. Tentou-se apurar como o desastre tinha acontecido; o fabricante recusou-se a colaborar. Os advogados do jornal aconselharam a nada publicar, para evitar um processo, mas foram publicadas várias reportagens de grande repercussão e mais famílias entraram com ações na Justiça.
A Distillers ofereceu pagar uma indenização que o jornal achou insuficiente, posição que publicou em editorial. Um juiz, ao estipular um pagamento, se recusou a considerar o impacto da inflação, aceitando o argumento do advogado do fabricante de que o governo tinha prometido acabar com ela.
Denis Hamilton, diretor editorial da Times Newspapers, disse a Evans que a Distillers era o maior anunciante do jornal: ‘Mas eu sei que isso não vai parar você, nem deveria’. Alguns leitores ficaram ofendidos pelas fotografias de crianças sem braços. O jornal foi atacado pelo resto da imprensa. O presidente da Distillers dizia que, legalmente, as vítimas talvez não tivessem direito a nada e que ele tinha obrigações para com seus acionistas. Mas, como resultado da campanha, os acionistas passaram a pressionar a Distillers e muitos clientes deixaram de comprar seus produtos. Era uma aritmética que a empresa entendia. No fim, ofereceu pagar 28 milhões de libras esterlinas às vítimas. O jornal ganhou uma causa na Corte Europeia de Direitos Humanos contra o governo, por ter impedido a publicação de informações sobre a origem da tragédia. A lei inglesa foi mudada. E a Distillers teve que incluir a inflação – pois o governo não cumprira sua promessa de acabar com ela – na compensação das vítimas, o que lhe custou 160 milhões de libras em trinta anos, em lugar dos 3,25 milhões oferecidos inicialmente.
Anúncios cancelados
The Sunday Times revelou massacres em Uganda e no Paquistão e desagradou o governo com notícias exclusivas sobre o conflito na Irlanda do Norte. Apesar de ser um jornal conservador, Evans disse a Lorde Thomson que apoiaria os trabalhistas nas eleições seguintes. ‘Você decide, Harold’, foi a reação. O jornal publicou uma reportagem mostrando o envolvimento da CIA nas eleições da Guiana, um dia antes do encontro de uma equipe de Thomson para comprar uma emissora de televisão do governo desse país: tiveram que sair imediatamente.
Essa independência da redação tinha sido uma das condições para Evans aceitar o cargo. Mas ele achava igualmente importante impedir que o espírito de corpo encobrisse os erros dos jornalistas. Confirmar os fatos não era suficiente se não estivessem no contexto certo. Na narrativa, a emoção e a lógica tinham que estar equilibradas.
Evans afirma que um governo não pode governar bem sem a informação e as críticas de uma imprensa independente. Nenhum sistema de inteligência, nenhuma burocracia estatal pode oferecer a informação proporcionada por uma imprensa livre e competitiva. Mas o comentário crítico não é suficiente; é necessária a reportagem que apura os fatos para dar suporte ao comentário.
Apesar de sua agressividade – ou talvez por causa dela – The Sunday Times era um jornal extremamente rentável, com uma circulação que superava a dos seus dois concorrentes somados. Ele atribui esse sucesso à decisão de Denis Hamilton, seu superior hierárquico, e de Lorde Thomson, o dono, de investir no longo prazo.
Em 1981, Rupert Murdoch convenceu Evans a assumir a direção do The Times, que ele tinha comprado junto com The Sunday Times. Foi um erro. Um ano depois, tinha perdido o emprego. No livro Good Times, Bad Times e no atual, ele diz que foi demitido por criticar a política econômica de Margaret Thatcher. Há quem discorde. No início, ele foi bem recebido pela redação, mas causou surpresa ao contratar novos jornalistas com salários muito altos e encostar outros de qualidade talvez superior. Com frequência, mostrava indecisão ao trocar repetidas vezes a primeira página, atrasando a impressão. Evans cometeu o supremo erro de não apenas indispor-se com o dono, mas de alienar também uma grande parte da equipe, que passou a conspirar contra ele.
Pouco depois, Evans mudou-se para os EUA. Diz ter ficado fascinado pelas oportunidades e contradições do país, pela liberdade e por encontrar uma sociedade aberta, onde era fácil franquear as portas do ensino superior – tão diferente das dificuldades que ele encontrara na Inglaterra, onde o acesso estava reservado para uma elite.
Iniciou uma nova etapa de sua carreira, bem-sucedida, mas sem o brilho e impacto dos anos em Fleet Street, a antiga rua dos jornais de Londres. Quando escreveu um editorial para a revista US News & World Report criticando o uso de estatísticas falsas pela National Rifle Association, um executivo disse que não podia publicá-lo, pois tinha vendido anúncios no valor de 35 mil dólares. O editorial foi publicado. Os anúncios foram cancelados.
Sua segunda mulher, Tina Brown, 25 anos mais jovem, teve um desempenho ainda mais brilhante: editou as revistas Vanity Fair, The New Yorker e agora dirige o site The Daily Beast.
Homenagem do reino
Evans diz que não guardou nenhum resíduo de hostilidade emocional contra Murdoch e que encontra muitas coisas boas para admirar nele, como sua eficiência, seu amor pelos jornais, sua coragem para desafiar as três cadeias de TV nos Estados Unidos e lançar uma quarta, e diz que The Wall Street Journal, que Murdoch comprou há dois anos, é hoje um jornal melhor que sob a administração anterior. Quando uma emissora de televisão quis um comentário sobre Murdoch em relação aos sindicatos gráficos ingleses, Evans disse que ele estava certo. A entrevista foi cancelada. Mas Evans alerta: ‘Não estou falando de suas ideias políticas. Estou falando da gestão dos negócios’.
Ele admira as fantásticas oportunidades do jornalismo na internet. A questão, diz, não é se ele será dominante, mas se manterá as qualidades do melhor jornalismo impresso. Afirma que, no fim, não é o sistema de entrega que conta, mas o que ele entrega. Conclui dizendo que, se for encontrado o modelo financeiro certo, entraremos numa era de ouro do jornalismo. Mas não diz como encontrar esse modelo.
Nos anos 1970, a época áurea de Evans, seus contemporâneos na Fleet Street gostavam de expor seus defeitos. Ambicioso, era considerado educado, porém irascível. Hábil em detectar e atrair talentos, pagando altos salários, mas lento em demitir, com o que a redação ficava inchada. Alguns críticos diziam, com pouco fundamento, que ele era melhor na técnica da apresentação do que na geração de conteúdo. Outros que, com frequência, ele parecia uma criança hiperativa e insegura, que se distraía com facilidade. Sensível às críticas, e não sem vaidade, era um dos alvos prediletos da revista satírica Private Eye, que se referia a ele como ‘dame’ Evans, por achar certa semelhança em suas atitudes com as da conhecida artista de teatro ‘dame’ Edith Evans. Numa atitude contrária ao seu estilo de jornalismo, ele processou várias vezes a revista. Mas, segundo um jornalista que trabalhou com ele, ‘nenhum de seus defeitos diminuía nosso afeto por ele – pelo menos, não por muito tempo’.
Curiosamente, Evans passou a fazer parte da elite que olha com tanta reserva. Em 2004, recebeu da rainha Elizabeth o título de cavalheiro. Tornou-se Sir Harold Evans.
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Jornalista, autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo