Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os valiosos papéis da história

WATERGATE

Lúcio Flávio Pinto (*)

Ocupam 75 caixas o material que Bob Woodward e Carl Bernstein, repórteres do jornal The Washington Post, produziram ou reuniram durante a cobertura do “escândalo Watergate”, que levaria ao afastamento do presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, na década de 1970. São notas, transcrições e fitas com entrevistas, rascunhos e memorandos que os repórteres trocaram entre si. A Universidade do Texas adquiriu esse acervo por 5 milhões de dólares (uns 14 milhões de reais). Já ricos e célebres (foram os primeiros jornalistas a desvendar o escândalo), os dois deixaram 10% para a coletividade. Doaram cerca de 500 mil dólares para uma série de conferências sobre o caso Watergate.

O diretor do Harry Ransom Humanities Research, responsável pela aquisição, Thomas F. Staley, justificou o investimento nos papéis de Woodward e Bernstein dizendo que eles são “um dos grandes arquivos da história da América”. Mas a instituição não precisou lançar mão de seus recursos: o dinheiro da compra veio de doações particulares.

Depois de catalogado e arquivado no centro, que é uma biblioteca de pesquisa instalada no campus da universidade, em Austin (rica em material sobre a América Latina e o Brasil), parte da documentação poderá se tornar pública dentro de um ano. Mas as identidades das fontes serão preservadas até que elas morram. Assim, só dentro de mais algum tempo os curiosos poderão saber quem era o famoso “Garganta Profunda” (Deep Throat), a mais importante das fontes usadas pelos dois repórteres [veja, abaixo, remissão para especial do Washington Post sobre Watergate].

Nudez civilizatória

Foi Bernstein quem teve o cuidado de guardar desde o início todo o material que ele e seu colega foram acumulando à medida que aprofundavam a cobertura do assunto, iniciada com a prisão dos arrombadores da sede do comitê eleitoral do Partido Democrata, no prédio Watergate, em Washington. O episódio parecia corriqueiro até que um dos arrombadores, preso de maneira infantil pela polícia, segredou ao juiz da instrução que havia integrado a CIA, a agência central de inteligência americana. Woodward, plantonista que cobria sua ronda, ficou intrigado com o detalhe, iniciando uma cobertura jornalística histórica, possivelmente o mais bem sucedido caso de investigação jornalística da imprensa mundial.

Tomando conhecimento do fato, talvez muita gente se escandalize com o valor pago pelos papéis e considere indevida a fortuna embolsada pelos jornalistas. Mas o caso oferece muitas lições para nosotros, brasileiros. As instituições americanas estão dispostas a pagar, e a pagar muito bem, por material ao qual atribuam especial valor, ainda que o acervo não tenha um valor sonante imediato. Podem dar-se a esse luxo porque sempre aparecem doadores de fundos.

Woodward e Bernstein, beneficiados em 5 milhões de dólares dessa tradição da ética protestante, retribuíram para garantir-lhe a perenidade doando, por sua vez, 10% do que receberam para financiar uma iniciativa visando o bem coletivo (ciclo de palestras sobre Watergate). Empreendimentos desse gênero fornecem o estofo de projetos de civilização (e de poder).

Quando sou confrontado com situações assim sempre me lembro que, na metade do século 19, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro era várias vezes maior do que a Biblioteca do Congresso, em Washington ? hoje, de longe, a mais importante e rica do planeta. Um dos grandes resultados do deslocamento da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, por iniciativa de D. João VI, foi justamente o acervo bibliográfico e documental que a acompanhou. Graças a ela, o Rio de Janeiro passou a ter uma das mais valiosas bibliotecas do Novo Mundo, equiparável a algumas das principais da Europa. O que fizemos de lá para cá? Em termos mundiais, regredimos. Porque nos falta uma ética coletiva, uma consciência de cidadãos, uma identidade nacional.

O exemplo do material dos dois repórteres nos deixa mais desconfortáveis em nossa nudez civilizatória. Afinal, quantos papéis históricos, muitos deles vitais, já não jogamos fora?

(*) Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)

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