Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os violadores do Senado

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ACM E A MÍDIA

João Carlos Teixeira Gomes (*)

O episódio da violação do painel eletrônico do Senado por iniciativa de Antonio Carlos Magalhães pode ter surpreendido os brasileiros, mas não tanto os baianos, há mais de 30 anos acostumados com histórias de fraude eleitoral no Estado, interferência oficial nas decisões da Justiça Eleitoral, emprego do voto de cabresto, manipulação do eleitorado, perseguições a funcionários públicos em redutos coronelescos, alterações nas contagens de voto e práticas semelhantes, que transformaram a Bahia num feudo político do carlismo. Nessa ordem de aberrações se incluiu a própria eleição de Antonio Carlos para a Assembléia Legislativa da Bahia, em 1954, obtida apenas por meio de uma suspeita eleição suplementar na cidade interiorana de Oliveira dos Brejinhos, então dominada por Antônio Balbino, que mandava e desmandava, na época, na política baiana, e era ? ao lado de Juraci Magalhães ? um dos mais expressivos protetores políticos do então jovem (e já ambicioso) candidato.

Não custa relembrar que foi o mesmo Antonio Carlos quem revelou ter ganho as eleições de 1982 na Bahia "com o dinheiro numa mão e o chicote na outra", fato registrado pelo jornalista Ricardo Nobat em reportagem publica no Jornal do Brasil de 7 de setembro de 1986. Ou ainda a espantosa derrota de Waldir Pires para Waldeck Ornelas, candidato carlista, nas eleições para o Senado, em 1994, quando todas as pesquisas indicavam, até &aagrave;s vésperas do pleito, uma vitória fácil de Waldir nas urnas. Ornelas venceu por uma diferença de cerca de 3 mil votos, com o insólito detalhe de que superou o próprio Antonio Carlos (também concorrente, pois havia duas vagas para o Senado) em algumas regiões do Estado. Convicto de que teria havido uma arranjo fraudulento na apuração dos votos ? idéia partilhada por grande contingente da opinião pública ?, Waldir Pires iniciou um processo pedindo a recontagem, mas, apesar de ter lutado obstinadamente, teve a sua pretensão negada por todas as instâncias do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.

Agressões morais

O vergonhoso episódio da fraude no Senado, somente confirmado através do corajoso depoimento da funcionária Regina Borges, após as denúncias divulgadas pela revista IstoÉ em edição sucessivas, ajusta-se, pois, com uma luva, à tradição coronelesca da Antonio Carlos Magalhães na vida pública brasileira, iniciada quando o golpe de 1964 lhe conferiu o primeiro cargo executivo, como prefeito biônico de Salvador, entre 1967 e 1970. A partir dessa experiência e sempre à sombra da ditadura militar, desenvolveu um projeto político fundado no arbrítrio e na violência pessoal, que o levou progressivamente a esmagar todas as demais lideranças locais ? comportamento que estenderia ao plano nacional depois que Tancredo Neves abriu-lhe a cancela da Nova República, que já nasceu velha, e José Sarney o confirmou no ministério das Comunicações, que ele usou ardilosamente para submeter e corromper jornais e jornalistas.

É isto que explica até hoje a extraordinária cobertura que lhe dá a mídia do Rio e de São Paulo, numa escalada que vai de editorialistas e repórteres até colunistas sociais. Em pleno império dos satélites e dos meios eletrônicos de comunicação, a impresa interesseira e servil, mandando às favas o jornalismo investigativo e comprometido com o interesse público, tem contribuido enormemente para construir o mito ACM, dando-lhe um prestígio na Bahia em grande parte fabricado pela desinformação, pelo favorecimento pessoal e pela subserviência jornalística.

O caso de fraude no Senado é bem ilustrativo da conduta pública de Antonio Carlos. Por uma estranha disfunção psíquica, desenvolveu ele uma estrutura psicológica que o leva a julgar-se acima do bem e do mal, parecendo-lhe perfeitamente natural tanto agredir impiedosamente os desafetos, massacrando-lhes a honra sem o menor escrúpulo, como violar um sistema secreto de votação eletrônica. Movido pela ambição do poder sem contrastes, é por meio desses processos escusos que obtém elementos para preparar os seus famosos dossiês contra figuras públicas (sejam políticos ou empresários), usando informações sigilosas ou reservadas ? como no caso da votação no Senado ? para utilizar, no momento que considerar oportuno, como instrumento de chantagem política.

A história da vida republicana no Brasil não conhece chantagista igual. Irradiador sistemático de conflitos e tensões, não houve um momento sequer na trajetória pessoal de Antonio Carlos Magalhães em que ele não estivesse denunciando ou agredindo moralmente um adversário. No meu livro Memórias das Trevas, divulgo, aliás, uma longa lista dessas retaliações, que sem demora se tornam superadas por novos confrontos. O mundo político e jornalístico sabe que ele passa todo o tempo disponível bisbilhotando a vida pública e particular das pessoas, para atacá-las na primeira oportunidade.

Pela cassação

À medida que jornais e jornalistas apóiam de alguma forma as ações do tirano, mais se espraia na Bahia, ansiosa por sua libertação, um sentimento de dasalento, que todavia não lhe inibe o desejo de resistência e de luta. Ao longo de quase 40 anos no poder, Antonio Carlos Magalhães, como agora volta a acontecer no Senado, enxovalhou na Bahia todas as instituições. Corrompeu a magistratura e os tribunais, manipulou os artistas, as festas populares e o carnavakl em favor de sua falsa imagem de mecenas. Oprimiu de todas as formas a oposição, expandiu o coronelismo no interior, fraudou eleições, controladas confessadamente com chicote e o dinheiro, submeteu os meios de comunicação (ainda hoje tenta destruir o quase centenário e prestigioso jornal A Tarde, numa perseguição que não mereceu ainda uma única linha na impresa brasileira), aterrorizou empresários com as famigeradas devassas contábeis e generalizou intimidações e truculências, inclusive contra servidores públicos. Disseminou, enfim, o reinado do terror e do medo, acovardando um terra das tradições libertárias da Bahia. Nem o Aeroporto Dois de Julho, que teve o nome afrontosamente mudado, foi preservado na sua ânsia de dominação. Trata-se, em suma, de uma personalidade à qual podemos aplicar a qualificação de "individualismo obsessivo", empregada por um estudioso de Hobbes ao analisar, no Leviatã, a natureza da tirania e dos tiranos.

No momento em que o Brasil vive sob o impacto político de violação ocorrida no Senado por ordem do seu então presidente, e a Comissão de Ética estuda a possibilidade de cassá-lo, creio que, enfim, precisava rememorar todos os fatos aqui relatados para que, mais uma vez, os brasileiros compreendam quem de fato é Antonio Carlos Magalhães. Um Brasil realmente moderno não pode continuar convivendo com figuras desse tipo, cujas ações refletem a estrutura mental de um coronel caricato e retrógrado, somente possível na novela das oito.

Embora a "brigada carlista" na mídia já venha insinuando, nos últimos dias, acordos indecentes para salvá-lo ou o arrefecimento, entre senadores, da disposição de puni-lo devidamente e ao seu comparsa José Roberto Arruda (PSDB-DF), a dignidade moral do Brasil, o consenso da opinião pública e a própria integridade ética e política do Senado exigem para ambos a cassação sem demora.

(*) Jornalista e escritor, é autor de Memórias das Trevas ? uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães (Geração Editorial), além de oito outros títulos

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