Monday, 30 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1307

Otavio Frias Filho

BALANÇO / FHC

"FHC na História", copyright Folha de S. Paulo, 19/12/2002

"Já é quase um lugar-comum dizer que o balanço da gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso é tarefa para historiadores do futuro. Publicações periódicas podem reunir dados disponíveis e expressar sentimentos imediatos. Falta-lhes, evidentemente, o enfoque de mais longo alcance que somente a decantação dos fatos e de suas consequências pode propiciar.

Verdadeira para a avaliação de qualquer período, essa ressalva se impõe ainda mais no caso atual. De certa forma, a era FHC não termina na passagem do ano. Deverá estender-se por algum tempo, seja nos desdobramentos da situação de extrema vulnerabilidade em que se encontra a economia, seja na manutenção da mesma política durante o início, ao menos, do novo governo.

Que seja essa a atitude do PT no poder o faz alvo de elogio e de crítica. Elogio pelo sentido de responsabilidade com que se apresta a gerir uma situação difícil que não foi criada por ele. Crítica pela evidência do muito que havia de leviano na atitude que o partido manteve enquanto era oposição e nas promessas de mudança que prodigalizou na campanha eleitoral.

E a herança deixada por FHC tem a marca das ambiguidades de um governo que sempre insistiu em repelir maniqueísmos e sublinhar nuances. A administração tucana realizou mais uma das modernizações periódicas pelas quais a economia brasileira se ajusta às transformações verificadas no cenário internacional sem conseguir alterar sua dependência nem resolver problemas internos seculares.

Embora os benefícios advindos do Real -junto com as políticas compensatórias determinadas pela Constituição de 88 e aplicadas pelo governo- tenham evitado que o abismo social se tornasse ainda mais calamitoso, a distância se manteve, se é que não se ampliou. O ?apartheid? informal que divide a sociedade brasileira não sofreu alteração de monta.

Essa dicotomia, problema estrutural da formação brasileira, segue dividindo a população em dois setores -um moderno, dinâmico, integrado aos padrões de produção e consumo do mundo desenvolvido; outro manietado por carências materiais que condenam grandes contingentes a uma vida sem possibilidades. É desolador que esse quadro se reproduza após a longa passagem pelo poder de um grupo de intelectuais esclarecidos e reformistas.

É conhecida a resposta do governo. Problemas que remontam às origens históricas da sociedade não podem ser resolvidos num mandato, nem mesmo numa geração. A conjuntura internacional, ademais, impôs severas limitações à atuação dos governos, que passaram a depender como nunca das oscilações do mercado e da necessidade de competir por capitais escassos e ariscos.

Será esse, provavelmente, o desafio dos historiadores. Identificar em que medida o atual governo deu curso ao desenvolvimento das forças produtivas, derrubando obstáculos que mantinham o país atado. E em que medida, por outro lado, pautou-se por uma política demasiado passiva e concessiva, abrindo mão de enfrentamentos em nome da estabilidade e da conservação, agora frustrada, do poder."

 

VIOLÊNCIA, JUSTIÇA & MÍDIA

"Violência e justiça", copyright Folha de S. Paulo, 20/12/2002

"A criação de uma Secretaria de Estado da Segurança, defendida por muitos, diretamente vinculada à Presidência da República representaria um esvaziamento do Ministério da Justiça. Atualmente o Ministério da Justiça coordena a área da segurança pública, mediante a Secretaria Nacional de Segurança Pública, criada em 2000.

Os defensores da mudança afirmam que o ministério já trata de assuntos demais: do antitruste à questão indígena, dos direitos humanos à Polícia Federal, estão também a ele vinculados os assuntos relacionados ao Denatran, ao sistema penitenciário, aos estrangeiros, à anistia, aos direitos da mulher e aos consumidores. De fato, o Ministério da Justiça possui uma gama invejável de áreas de interesse. E é exatamente isso o que lhe dá a possibilidade de estabelecer uma política pública capaz de tratar, de modo racional e sistemático, a questão da violência, em todas as acepções do termo. Porque violência não se resume à segurança.

A criação de uma secretaria de Estado com a função específica de tratar do tema da segurança e diretamente ligada ao presidente da República, como se este fosse interferir pontualmente em cada uma das decisões a serem tomadas, compreende um caráter axiologicamente tido como positivo, funcionando como importante instrumento de mobilização política.

Contudo a criação dessa secretaria dificilmente propiciaria que os diversos aspectos da violência fossem mais bem tratados do que o são com a estrutura atual. Veja-se que um dos importantes focos de violência é aquele cometido no seio familiar. A violência ?doméstica?, por assim dizer, praticada contra crianças, mulheres e idosos, é assustadora. Não há controle nenhum, raramente é divulgada ou denunciada, por vergonha ou medo de humilhação, e pouquíssimo considerada quando se trata do estabelecimento de políticas públicas.

O Relatório Mundial de Violência e Saúde, produzido pela Organização Mundial da Saúde e lançado em português no final de novembro pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos, traz informações impressionantes. Os dados colhidos sugerem que, em alguns países, quase 25% das mulheres são vítimas de violência perpetrada por um parceiro íntimo.

Outro estudo revela que quase um terço das adolescentes relata ter se iniciado na vida sexual de forma violenta (estupro e abusos de modo geral). O mesmo relatório traz o significativo dado, resultante de pesquisa realizada no Rio de Janeiro em 1996, de que 8% da mulheres relatam ter sido vítimas de ataque sexual. Não se percebe, exatamente, qual o benefício extra que traria a criação de uma Secretaria de Estado da Segurança na abordagem dessas questões.

É inegável que o crescimento da violência é um dado real, que merece firme e constante atuação do governo federal, não fosse por outra razão, no mínimo por representar um alto custo para a sociedade. Estudo do BID realizado em 1996/97 estima que, no Brasil, o custo direto decorrente da violência tenha representado quase 2% do PIB. Atualmente, há quem diga que essa porcentagem chega a 10%.

A percepção dos diversos tipos de violência não corresponde exatamente aos dados da realidade. A forma como a mídia aborda os fatos violentos, por exemplo, acaba por dar uma dimensão distorcida de certos atos criminosos.

O sociólogo Tulio Kahn, em capítulo do livro ?Cidades Blindadas? (ed. Sicurezza), de sua autoria, analisa a relação entre criminalidade e meios de comunicação. Ele demonstra que muitas vezes é a cobertura da mídia -e não as escassas pesquisas de criminologia- que mais exerce influência sobre a administração da Justiça. Narra ele, nesse estudo, que os pequenos furtos e as lesões corporais são, de longe, os delitos mais frequentes nas estatísticas oficiais de criminalidade, mas são praticamente esquecidos pelos jornais, até por não despertarem grande curiosidade.

Os sequestros, estupros, chacinas e tráfico de drogas, que estão sempre presentes na mídia, representam, proporcionalmente, um número muito menor dos atos que compõem o quadro da violência atual.

Pesquisa realizada pelo Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), sobre a comparação da incidência de crimes na mídia e nos dados oficiais, durante determinado período de 1998, em São Paulo, revela que, muito embora o sequestro tenha representado, naquele período, cerca de 0,0001% da totalidade dos crimes registrados na polícia, ele representou 10% dos crimes noticiados pelos jornais.

Essa sistemática, repetida ao longo do tempo, faz com que não apenas a sociedade tenha uma visão desfocada da realidade, como também acaba por justificar políticas públicas igualmente distorcidas, com pouco ou nenhum efeito sobre a violência, que, sem nada que a detenha, segue sua curva ascendente.

A violência é um tema plurifacetado, com inúmeras causas, e deve ser tratada de modo abrangente. Não é por outra razão que está sob a órbita de competência do Ministério da Justiça, que congrega um amplo espectro de áreas de interesse da sociedade e está, por esse motivo, mais apto a tratar do problema. (Taís Gasparian, 44, advogada, mestre em direito pela USP, é chefe-de-gabinete do ministro da Justiça.)"