Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Otavio Frias Filho

O QUINTO DOS INFERNOS

"Quinto dos infernos", copyright Folha de S.Paulo, 28/3/02

"Está terminando a minissérie O Quinto dos Infernos, chanchada de TV que retrata as origens do Brasil independente por um prisma supostamente engraçado. Houve protestos, aqui e em Portugal, quanto à forma desairosa pela qual os personagens da Casa de Bragança são pintados, a meio caminho entre a imbecilidade e a devassidão.

A minissérie não é ?desrespeitosa?; mesmo no gênero picaresco, ela é apenas e incrivelmente ruim. Criadores de entretenimento são livres para fantasiar sobre fatos históricos e até torcê-los na direção de seus propósitos, que não são, ainda mais neste caso, educar jovens ou ilustrar adultos, mas tão-somente tentar diverti-los.

Dado o peso desproporcional, porém, que a televisão exerce na formação de mentalidades no Brasil, não resta dúvida de que milhões de brasileiros passaram a conhecer o período da Independência como uma fotonovela picante, em que a política é um vago pano de fundo para o que importa de fato, as peripécias sexuais da corte carioca.

Salvo engano, a matriz recente dessa tendência foi o filme Carlota Joaquina (1995), que abordava os mesmos personagens e o mesmo período. Na visão desse filme, a ?elite? luso-brasileira era uma camada de psicopatas e degenerados, que o roteiro se comprazia em focalizar sob perspectiva sempre que possível escatológica, a fim de realçar-lhe os ridículos.

Essa filmografia, da qual a minissérie O Quinto dos Infernos é a versão ainda piorada, resultou de décadas de história ?crítica? e ?progressista?. A origem das misérias do Brasil seria, para essa corrente, resultado da ganância e do egoísmo das classes dominantes instaladas aqui desde a época da colônia, que não estavam à altura de seu papel histórico.
É uma maneira fácil e cômoda de explicar nosso atraso. Ela acaba invertendo o pressuposto da história crítica, que era o de localizar as estruturas responsáveis pela desigualdade e pelo subdesenvolvimento, substituindo-as por uma versão ?pessoal?: o d. João 6? devorador de frangos, a mulher pérfida, o filho irresponsável e leviano etc.

Veja o caso de d. João. Evitou que sua capital caísse nas mãos do invasor; abriu caminho para a criação de um ?commonwealth? entre Portugal e Brasil, cujo território levou até o rio da Prata; negociou o quanto pôde com os ingleses e, quando a estes passou a convir a independência, manteve o comando do novo país na Casa de Bragança.

Esse é o homem que nossa filmografia ?crítica? ? na verdade sentimental, demagógica e comodista ? descreve como imbecil. Não se trata de recuperar uma história oficial de grandes glórias e feitos que não houve. Mas de separar as estruturas impessoais que geraram uma nação como esta das fantasias de roteiristas simplórios.

Num país em que a população tivesse acesso a mais recursos de informação, cultura e lazer, O Quinto dos Infernos nem seria assunto. Mas aqui a minissérie substitui museus, escola, livros, ópera etc., impondo uma visão que é injusta não para com os Bragança, que o diabo os carregue, mas para com a nossa história mesma."

"Fico meio sem graça, mas gostei", copyright Folha de S.Paulo, 31/3/02

"Acabou nesta semana a minissérie O Quinto dos Infernos. Para minha própria surpresa, gostei. Escrevo antes de ver os capítulos finais, mas a toalha já está jogada: aquilo foi uma telepornochanchada de incongruências, disparates, anacronismos, licenças históricas (talvez excessivas), foi tudo isso e, ao mesmo tempo, foi uma obra intensa, carnal e divertida. Tirando o início, que foi desastroso, admito, eu a segui com pontadas de satisfação genuína. A questão, agora, é saber por quê.

Argumentos para desautorizar a minissérie não faltam: a adaptação da história, tal como foi feita, teria deturpado e desonrado a história nacional; a corte no Brasil não teria sido bem ?aquela? que ali foi mostrada, a realidade era diferente etc. O curioso é que a minissérie jamais se apresentou como se fosse uma fiel reconstituição histórica. Dificilmente foi vista pelo telespectador como um documento fidedigno. Foi mesmo uma espécie de samba do chalaça doido, esse ente mítico que é uma síntese ficcional da gente brasileira. O Quinto dos Infernos não primou pela verdade dos fatos, mas pelo olhar que lançou sobre o passado, um olhar malandro e libertino. Quem brilhou, ali, não foram os acontecimentos, mas o narrador. Com todas as suas inexatidões factuais, ele soube pôr de pé uma alma nacional que valoriza o afeto, o suor, as amizades de bar, as corrupções pequenas que, mais que depressa, são perdoadas pelo enorme coração lusitano ou carioca, não se sabe bem.

Não que a frouxidão moral seja a glória da Pátria: é a nossa maldição. Nela reside a força maior do atraso autoritário e elitista destas terras dos infernos e isso é muito triste. Mas aí também, nesse caráter a um só tempo libidinal e cordial, há uma permanente vocação carnavalesca que sempre se quer esconder dentro da gaveta, no porão, nas cadeias, nos livros que pouca gente vai ler. Quanto a mostrá-la na televisão, isso nunca. Isso seria baratear a imagem do Brasil para o Brasil, seria agravar o pior estereótipo que castiga a brasilidade, o estereótipo de uma gente dedicada às bebedeiras conciliadoras, ao sexo contente entre senhores e escravas, aos fiapos de coxas de galinha entre os dentes de D. João 6?.

Por isso, O Quinto dos Infernos também foi recusada como um desaforo escarrado: pôs na TV o olhar que nos desconcerta sobre traços culturais que nos envergonham.
De minha parte, não foi como folclore ou falsificação que a vi. Eu a vi como a alforria do narrador brincalhão, como a elegia dos esportes mundanos que ainda nos restam: soltar uma gargalhada no meio da rua, amar durante a tarde, faltar no trabalho, abraçar um amigo de olhos fechados sem pensar em classes sociais ou títulos de nobreza. O Quinto dos Infernos pode ter sido um exercício pornofrênico, desrespeitoso com reis e rainhas, mas foi um exercício de bem com os prazeres dos comuns do povo. De resto, o que é a história oficial? Pode haver um tipo mais enfadonho de ficção? Que mal há em brincar (abertamente) com a história? E olhe que nem se brincou tanto assim.

Todos os que cobram mais responsabilidade educativa da televisão estão certos. No Brasil, a TV ainda não acordou para a sua função formadora. Mas ela é mais que isso: ela tem também a responsabilidade de abrigar um pouco de arrojo artístico, de risco, de descompromisso. Eu sei que um crítico de TV não existe para ir gostando assim de qualquer coisa, de qualquer ?sem-vergonhice?. Mas preciso ser honesto, mesmo quando fico sem graça. Eu gostei, pronto. Gostei da liberdade e da libertinagem, gostei de ver as paixões que se lixam para a coisa pública. Gostei dos sátiros satíricos, ainda que grosseiros, gostei da marquesa rósea de todos santos e demônios. Independência e boa sorte. Eia, quinto dos infernos."