Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ou como evitar as linhas retas para andar direito

ELOGIO DA INCERTEZA

Nivaldo Tetilla Manzano (*)

Nesta semana, o Observatório publica, dividido em duas partes, o primeiro dos três capítulos deste ensaio do jornalista e escritor N.T.M.; o texto será completado nas duas próximas edições do OI.

Parte 1


"A verdadeira oposição social elementar deve ser buscada no interior de cada indivíduo social, sempre que ele hesite entre adotar ou rejeitar um modelo novo que se lhe oferece, uma nova maneira de falar, um novo rito, uma nova idéia, uma novo estilo de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa pequena batalha interna, que se reproduz aos milhões de exemplares a cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e infinitamente fecunda da história; ela introduz na sociologia uma revolução silente e profunda." Gabriel Tarde (As leis sociais)


O humorista-filósofo, ou filósofo-humorista, Luis Fernando Verissimo expõe numa de suas crônicas o drama interior que dilacera o turista: enquanto o seu paladar, aventureiro, quer viajar em busca de novos sabores, os seus intestinos, sedentários, querem permanecer em casa. Eis o conflito que, se resolvido em proveito excludente de um lado ou de outro, além de eliminar o outro ? a parte que teria perdido a contenda ? elimina ipso facto a própria pessoa do turista: não há como viajar desacompanhado de ambos.

Assim é que a pessoa do turista, para se exercitar no desafio prazeroso e arriscado de ser turista, precisa necessariamente de seu conflito, assim como a noite precisa do dia, Deus do Diabo e o branco do preto, já que o turista, que preza a si mesmo, não quer desapontar as razões convincentes de seu paladar nem as razões legítimas de seus intestinos. Ele as acolhe em si como um pai ao filho, como expressão de si mesmo, outros modos de ser si mesmo, da complexidade da pessoa que ele é. Partes conflitantes, é verdade, mas é nelas e graças ao conflito entre elas que ele se reconhece, a despeito das aparências, que podem dissimular cólicas nos intestinos como resultado de mudança na dieta, ou protestos do paladar por não suportarem mais comer a mesma coisa. Nessas ocasiões, tem-se a impressão de que o turista será partido ao meio, paladar de um lado e intestinos de outro, e a sua unidade esfacelada, tamanha é a tensão do drama em seu clímax, ponto de ruptura, proclamação da independência, ou revolução, em casos extremos.

Se ele se decide, enfim, viajar, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita, equivocadamente, a propósito dos pactos políticos ou dos desentendimentos entre casais. Longe disso. Pois as partes conflitantes seguem junto, ainda mais teimosas que antes na sua oposição: os intestinos ainda mais temerosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se a pessoa do turista se dispõe a viajar, é justamente por motivo inverso: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir. E se ele embarca inteiro, paladar e intestinos juntos ? sistemas racionais logicamente opostos entre si ? é porque consegue enlaçá-los na solidariedade que os une ? ele próprio, o sujeito, que não é intestino, isoladamente, nem paladar, isoladamente, mas ele mesmo, que é também um outro de si mesmo quando acolhe em si, isoladamente, as razões de seu paladar, e as razões opostas de seus intestinos. Assim, pode dizer-se, com igual pertinência, que tanto o turista é a expressão solidária de suas partes correlatas em conflito, quanto o conflito entre as suas partes correlatas, ou interfaces, é a expressão solidária do turista.

Além de humorista, é preciso ser filósofo, o que no fundo é a mesma coisa ? um ativista geralmente mal-sucedido na prática de remoção de emplastros mentais ?, para reconstruir de forma complexa o drama interior do turista, que não se dissocia do drama inteiro do Pensamento, em toda a sua história ocidental, da Grécia antiga aos dias de hoje. Pois essa história não é outra senão a da dificuldade ? da obstrução ideológica ? de se assumir, num mesmo espaço de possibilidades, a diversidade e a unidade, o conflito e a solidariedade. Cimentar nos alunos essa obstrução é parte essencial de seu desaprendizado formal no sistema público e privado de ensino. Ou, então, como explicar o sucesso retórico da cibernética e das ciências da computação, que vivem de assegurar que tudo no universo pode ser dividido ao meio, Zero de um lado e Um do outro? Ou que o espaço da política internacional possa ser dividido, como querem os EUA, em terroristas e não terroristas?

Como se sabe, a história da parceria entre o conflito e a solidariedade, recalcada como obscurantista desde o início da idade moderna, teria começado com o filósofo Heráclito, "o obscuro", como se tornou conhecido, aquele do rio de águas que não banham duas vezes o mesmo banhista. Na verdade, ele somente parece obscuro a quem é obscuro em relação a ele. Heráclito, na filosofia, retomando o que Homero fizera antes na poesia, ainda semi-embebida no mito, foi o primeiro a advertir de que não se podem separar os opostos na sua unidade, sob o risco de se perder o sujeito, o sujeito da história, o turista de Veríssimo.

O gatilho da espingarda

Na sua Odisséia, Homero ilustra a mesma idéia de mil maneiras. Assim, por exemplo, no episódio de Odisseu na ilha de Ogigia, ele faz seu herói dizer, a um só tempo, não a Calipso, a mais linda das deusas que o queria entre seus lençóis, e sim a Penélope, a esposa que o esperava em casa desde a sua partida para a guerra de Tróia. Sim e não, opostos entre si, unidos porém na unidade da pessoa de Odisseu, suporte e referência dessa oposição ? eis para o que nos chama atenção Homero. Da mesma forma, Odisseu faz-se atar com cordas no mastro da nau por seus marinheiros, para não ceder à sedução das sereias, dizendo a elas e a si próprio não, o que se traduzia, no mesmo gesto, em sim, para Penélope, sempre à sua espera. É de imaginar que o desejo de retornar a Penélope intensificava-se tanto mais quanto mais o premia a sedução das sereias, de modo que, se se pudesse eliminar o conflito, Odisseu não encontraria estímulos para resistir à sedução das sereias nem para ansiar pelo retorno à casa. O conflito, sob o enlace da solidariedade, é o gatilho da espingarda de cano duplo que dispara a mudança, no caso, a decisão de dizer não às sereias e sim a Penélope.

Depois de Homero e Heráclito e antes de Veríssimo, Machado de Assis deteve-se em sua ficção a elucubrar sobre o mesmo tema. É o que leio em sua novela "Esaú e Jacó", ambientada no Rio de Janeiro no período de transição do Império para a República. Santos, o protagonista, é ao mesmo tempo barão e banqueiro, papéis opostos entre si, que se digladiam sob uma mesma pele: enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá. O barão não quer a República, porque esta não lhe reconhece a aristocracia, como símbolo de prestígio, status e poder; o banqueiro não quer o Império, porque este não lhe reconhece o dinheiro, como símbolo de prestígio, status e poder. Longe de eliminar o conflito entre seus papéis, Santos o exacerba, para dele tirar proveito na solidariedade (ele) que os une. Como o exacerba? Exercitando-se, alternada e reciprocamente, no papel de barão e no papel de banqueiro. Assim, por exemplo, ao assumir perante si mesmo, como banqueiro, o papel de barão, ele enxerga melhor os rumos do Império; e ao acolher perante si mesmo, como barão, o papel de banqueiro, ele enxerga melhor os rumos da República. Como o eventual advento da estabilidade na mudança em uma ou outra direção lhe seria favorável, ou como ambos os contextos lhe são favoráveis, Santos oportunista tem os seus pares de sim e não preparados para ambas as eventualidades.

Já um outro personagem de Machado, de vocação sacerdotal e messiânica, caiu na ilusão de que é possível remover o conflito ? e assim removeu de si mesmo, no mesmo gesto, a solidariedade. É Simão Bacamarte, o médico cientista, protagonista tragicômico de seu conto "O alienista". Bacamarte, com sua autoridade apoiada em diplomas de doutor obtidos nas melhores universidades de Portugal e Espanha, instala-se na vila de Itaguaí e se põe a separar os seus habitantes em dois grupos, os loucos e os sãos. Iluminado pela fé na sua racionalidade científica, na certeza absoluta do conhecimento, que separa a verdade do erro, acreditava que conseguiria divisar com precisão a linha que separaria a razão da loucura. Como, porém, há sempre alguma pitada de loucura na razão e de razão na loucura, Bacamarte acaba por querer trancafiar a todos no hospício ? e somente não completa a tarefa porque, antes disso, trancafia-se a si mesmo, de espontânea vontade, no manicômio que criara. A tragicomédia de Bacamarte expressa a ilusão de que os opostos podem ser separados da unidade que os une.

Disso não se deram conta também as feministas nos primórdios de seu movimento. É o que pode observar-se num episódio recente ocorrido nos Estados Unidos. As marinheiras norte-americanas, que a esse papel chegaram na coroação da luta feminista pela igualdade de direitos no trabalho, uma vez embarcadas no projeto de novos submarinos, recusaram-se, no tratamento recebido do almirantado, a serem iguais aos marinheiros, depois de estes terem apoiado democraticamente, em nome da igualdade, a remoção da discriminação contra a mulher no trabalho. Postados diante de sua igualdade, agora reconhecida, ambos os sexos, com exceção dos almirantes, dão-se conta de suas diferenças, que é preciso respeitar.

A história é a seguinte: o projeto de novos submarinos não reserva espaço suficiente para a construção de dependências sanitárias distintas para homem e para mulher, em razão de na sua distribuição ter-se dado prioridade ao armamento. Com tantos mísseis igualitários a bordo, pouco espaço restou para acomodar as diferenças. Dando-se conta do engodo, agora elas batem o pé perante o almirantado, exigindo em nome da privacidade (diversidade) banheiros exclusivamente femininos, enquanto os marinheiros, em defesa de si mesmos, na afirmação de sua respectiva diversidade, tratam de apoiá-las, sob o argumento de que homem nenhum é de ferro. Os iguais, apoiando-se reciprocamente na afirmação de suas diferenças. Em resposta, o almirantado diz que não se podem confundir as lidas da guerra com as coisas do amor. Se vence o amor, perde-se a guerra.

De fato, o amor não combina com toda dialética de opostos que suprime a sua unidade. No início de seu conto, Machado introduz o problema de Bacamarte, antes que este se ponha a separar a razão da loucura, como um conflito entre a racionalidade científica e o amor. A ciência do erro e da verdade mutuamente excludentes não convive em paz com as manifestações da vida. Se vence a objetividade da ciência sem sujeito (a das partes sem conflito), falece o amor. Assim é que Simão Bacamarte renuncia ao amor de Dona Evarista no casamento, levado por suas convicções científicas. É ele quem o diz: nela interessavam-lhe apenas as suas prendas fisiológicas e anatômicas, intestinos que digerissem com facilidade, uma cabeça que dormisse regularmente, um bom pulso, uma excelente vista e aptidão para lhe dar filhos robustos, sãos e inteligentes. E se Dona Evarista não era bem composta de feições, tanto melhor, pois assim "não preteriria os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte".

Abstração e realidade

Atente o leitor desaprendiz para o seguinte: se diante do objeto sobre o qual debruça a sua atenção não reconhecer nele ao mesmo tempo o conflito e a solidariedade, a exemplo de Bacamarte, desconfie de que está diante da própria abstração que construiu, e não diante da realidade que tem à sua frente, uma abstração que o obriga a optar entre a luz e as trevas, sem direito à escolha do lusco-fusco. É o que ocorre ao presidente George W. Bush, por exemplo, quando diz que "Quem não está com os Estados Unidos está com os terroristas", como se a realidade fosse naturalmente dicotômica. Dicotômica é a abstração, que separa vencedor e perdedor, sem se dar conta de que na realidade ambos os papéis podem ter como suporte e referência uma mesma pessoa, um mesmo mundo humano. Razão teve no episódio a diplomacia brasileira ao afirmar, discretamente é verdade, que o Brasil não estava nem com Bush nem com os terroristas. E razão teve também Odisseu, que não abdicou de realizar o desejo de se comprazer na existência: em vez de optar entre o prêmio e o castigo, elegeu como pólos prazerosos e arriscados de sua alternativa a Calipso e Penélope, colocando assim tanto o bem quanto o mal de cada um dos lados, para evitar que na sua oposição dicotômica se eliminassem um ao outro. Assim procedendo, estava convencido de que na realidade não existe situação sem saída. Situações do tipo "ganhar ou perder" existem somente no plano do jogo, que é o plano da abstração. Já no plano da realidade, o problema inverte-se, como se observa no episódio das sereias: difícil é escolher entre as muitas saídas que se podem divisar. Enxergar a diferença entre um plano e outro, para dela tirar proveito, é ser capaz de se reconhecer no contexto, no "aqui e agora". Contextualizar os problemas é uma arte que, infelizmente, não se aprende na escola. Por isso, este livro pode ser considerado como uma introdução aos princípios da contextualidade, e é dirigido a quem está interessado em reconhecer o caráter contextual da existência, para nela se comprazer, com risco porém.

Desconfiado de quem, auto-iludido pela abstração que construiu, pretende que o mundo esteja ordenado segundo um par de opostos excludente, Machado de Assis rejeitou em sua ficção a idéia de um Deus único, criado à semelhança de um G. W. Bush, a ordenar na sua auto-suficiência o mundo de cima abaixo. Em um de seus contos sobre a parceria entre Deus e o Diabo, na construção de uma opereta, o autor de Quincas Borba corrige o mito bíblico da Criação, afirmando que o mundo não teve começo, para se evitar a disputa excludente entre Deus e o Diabo pela primazia na paternidade da idéia. Como Veríssimo, Machado percebeu o risco para a humanidade embutido na idéia de se fixarem hierarquias entre os papéis, fazendo prevalecer a vontade dos intestinos sobre o paladar ou vice-versa. Ou seja, ambos os autores, mais Deus e o Diabo, mais Heráclito, mais Homero e tantos outros enxergaram na pretensão de um Deus egoísta, sádico, vaidoso e prepotente o risco metafórico de se introduzir a tentação do poder possessivo no mundo humano, como réplica caricata do poder divino.

Segundo a alegoria de Machado, a emergência da Criação dá-se no transcorrer de um jogo, no qual os contendores, Deus e o Diabo, iguais e diferentes entre si, se entretêm. De que jogo se trata? Do jogo de remover as regras que eles próprios se dão, pelo prazer de criar outras. Assim, remove-se a fixidez das hierarquias entre os papéis, com a vantagem de poderem ambos se comprazer na exploração da diversidade dos pontos de vista, pois o jogo nunca é o mesmo. Dependendo contexto, mudam tanto as suas regras quanto a posição dos parceiros, quanto o tabuleiro. Divertem-se, desse modo ? ao mesmo tempo que estimulam reciprocamente a sua criatividade ? , no jogo de criar mundos diferentes, novos modos de perceber o mesmo mundo, para evitar o aborrecimento da eternidade.

Infere-se daí que o desespero da monotonia, da mesmidade, o ódio puritano a si mesmo, o delírio e a violência contra outrem, que a ficção bíblica do monoteísmo estimula, é fruto mosaico do poder hierárquico, impotente e imobilizado na sua incapacidade intrínseca de estabelecer um enlace solidário com outrem, olhar com olhar, como ocorre entre os amantes, para evitar de se reconhecerem como iguais na sua diversidade. Assim procedem todos os que se deixam levar pela ilusão de poder remover o conflito, ou controlar a realidade. Esquecem-se de que quem tudo controla é a realidade, incluída a ilusão de se poder controlá-la.

Já no jogo entre Deus e o Diabo, no qual um não consegue impor-se ao outro, em razão do reconhecimento recíproco de sua interdependência, mantém-se o conflito, graças à solidariedade entre os parceiros, que se manifesta na disposição de ambos de continuarem unidos na parceria, assegurando a continuidade do prazer de jogar. Não ocorreria o mesmo no diálogo humano? Na arte? No amor? Na evolução da ciência? Não é o que se passa com Santos, dividido entre as regras do jogo do barão e as regras do jogo do banqueiro? Com o turista de Veríssimo? Com Odisseu, na sua indecisão prazerosa entre jogar com Calipso e jogar com Penélope?

Embates e recombinações

Antes, porém, de ser machadiana, parece tratar-se de uma sabedoria oriental. Pois aprendemos com os orientais que o mundo também não teve começo; é fruto do embate entre forças opostas e solidárias. Os sopros terrestres e os sopros celestes, ao se chocarem, de modo recorrente, provocam turbilhões, que geram um novo estado de mudança no mundo, este estado em que nos encontramos e que mudará outra vez por força de uma nova configuração suscitada pela ocorrência de novos turbilhões. Basta a ocorrência de uma nova idéia, para se recombinarem, de modo diferente, todas as idéias que se tinha na cabeça.

O resultado prático e a vantagem dessa visão de mundo é que o sábio chinês desconhece o que seja um herói, um especialista, um self made man, à moda ocidental, um sujeito auto-suficiente, que se acredita capaz de crescer à força de puxar para cima os próprios cabelos e dobrar o mundo à sua vontade ? controlar a realidade. Da mesma forma, desconhece o equívoco simétrico ? a passividade do ser humano, que se deixaria manipular, como uma marionete, seja pelos seus intestinos seja pelo seu paladar. Enquanto o herói ocidental, à moda de Dom Quixote, levanta-se contra seus moinhos de vento, para se fazer notar, o sábio chinês mantém-se discretamente atento ao entrechoque dos turbilhões, na expectativa de divisar o momento favorável que lhe permita reinstalar-se no novo estado de mudança do contexto, para tirar proveito da sincronia que assim se estabelece, como o faz o surfista diante das ondas do mar. Assim como o surfista não se enxerga como um Deus, capaz de converter o mar em geléia, em proveito de sua imperícia e desgraça de sua destreza, também o sábio chinês, por não se enxergar como um Deus, capaz de separar a luz das trevas, instala-se no lusco-fusco à espreita de um estímulo do contexto, por definição em estado de mudança, que o induza a responder ao desafio.

O herói ocidental, o líder auto-proclamado, tem por vocação remover o conflito, rachar as águas do mar ao meio, para que seus liderados o atravessem sem molhar os pés, como o fez Moisés, ou parar o sol, para fazer a vitória pender para o lado do povo eleito antes do anoitecer, como o fez Josué na batalha de Jericó. Eis o fundo judeu-cristão do imaginário ocidental, que irá inspirar o individualismo liberal e a sua álgebra de Boole. Quando se converter em cientista, na idade moderna, a mesma figura mitológica, dotada de poderes demiúrgicos, criará a Física, com a sua lei da ação e da reação, das forças iguais e contrárias, a lei dos corpos que não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, etc. Criará depois, na Revolução Francesa, a guilhotina, para separar a Razão das paixões. Decapitará o rei, que encarnava o poder divino, para distribuí-lo em migalhas aos súditos, agora transformados em cidadãos, estilhaços do poder divino, divididos ao meio no seu ressentimento, por não serem rei nem Deus. Auto-iludidos diante da facilidade com que assim se poderia controlar a realidade, os novos cidadãos cuidarão de zelar pela afirmação do caráter universal de tais abstrações, estendendo a legitimidade de sua aplicação a todo o universo, ignorantes de que paladar e intestinos, forças iguais e contrárias, além de ocuparem o mesmo espaço, na pessoa do turista, não se equilibram nem se eliminam uma à outra. A prova é que o turista parte em viagem.

Diferentemente dos ocidentais brancos, judeus e cristãos, os orientais jamais conheceram um Deus de barbas longas, a conferir a mesma potência de seu poder transcendente e soberano às coisas, como o fez Newton, num supremo gesto de rendição da inteligência humana à própria obra, impedindo-a assim de voltar a criar. A realidade primordial da cosmovisão chinesa não é uma coisa, e sim um estado de conflito entre sopros celestes e sopros terrestres, solidários na recorrência de seu entrechoque. Não sugere isso que Norbert Wiener, da cibernética, o médico Guilhotin e Boole se tenham deixado levar pelas implicações do monoteísmo, matriz do poder hierárquico?

Sujeição à lei da coisa

O momento da sujeição do destino humano à lei da coisa, que o submete tanto quanto a lei da gravidade obriga a maçã a cair do galho, pode associar-se a qualquer instante alienado da existência, à alienação promovida pelo capitalismo ou à alienação de toda hora. Historicamente, o seu marco inaugural teria sido o Neolítico, período que deu início à civilização sedentária, hierárquica e letrada. Ou, então, teria sido o advento do monoteísmo, ou de um dos filhos diletos de sua moral do dever-ser, o puritanismo. O certo é que a prevalência da lei da coisa ? dos intestinos ou do paladar sobrepondo-se soberanamente à vontade da pessoa do turista ? é indissociável de uma ontologia ou de um Padre Eterno, que se teria antecipado ao ato criador, ao privar o Diabo e o ser humano do prazer de desenhar o seu destino a gosto ? em contexto, obviamente: de acordo com as regras do jogo que estiverem jogando.

É desse modo que enxergam o mundo os olhos do artista criador. A arte é também um jogo de criar regras, novos modos de se enxergar e sentir o mundo. A realidade que se exibe ao olhar do artista apresenta-se como uma diferença em relação à realidade costumeira, enxergada pelos olhos do hábito. Uma nova obra de arte é uma nova maneira de se conceber e sentir a realidade, que enriquece a percepção que dela se tinha. Enriquece tanto em razão da continuidade com a visão anterior ao seu advento quanto em razão de sua descontinuidade em relação às obras anteriores, introduzida pela proposta de uma nova visão. Continuidade e descontinuidade, disputando um mesmo espaço conflitante e solidário de possibilidades, é o que caracteriza a tensão dramática entre o paladar e os intestinos. Se se remover uma ou outra, suspende-se o drama, o prazer e o risco, e perde-se o turista.

O mesmo ocorre quando do advento de toda inovação. Ao contrário do que supõe a linguagem binária da cibernética, toda inovação é percebida no espaço unitário que compreende ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o seu lado familiar. Não existe a possibilidade cibernética de se reconhecer algo que seja absolutamente estranho. O objeto da percepção é, por definição, diferencial. O novo somente é percebido como novo sobre o pano de fundo contínuo do que não é novo; do contrário não se saberia dizer em que consiste a novidade, a diferença. Assim, por exemplo, para se fazer reconhecer como nova religião, o cristianismo teve de se apresentar ? no seu ritual, na sua liturgia, nos objetos de seu culto ? revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos pudessem reconhecê-lo, primeiro como religião, e depois como nova religião. É o mesmo que dizer que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de novo, precisa incidir sobre um espaço unitário de possibilidades, como é o do turista, que se caracteriza pelo conflito e pela solidariedade entre a continuidade e a descontinuidade. Ocorre descontinuidade quando o paladar pretende instituir, na afirmação individualista e excludente de suas reivindicações perante o turista, a sua oposição lógica (sim ou não) à afirmação, igualmente individualista e excludente, dos intestinos. Ocorre continuidade quando o turista acolhe em si, como um outro de si mesmo, na solidariedade que promove entre os pólos da tensão, tanto os argumentos do paladar contra os intestinos, quanto os argumentos dos intestinos contra o paladar. Observe o leitor o contraste entre o caráter abstrato, lógico (sim ou não) da pretensa auto-suficiência dos argumentos do paladar e dos intestinos e o caráter não-lógico do comportamento do turista ? não-lógico, porém, real, pois o certo é que, a despeito da tensão assim criada, ou graças a ela, ele vai partir em viagem. Aos olhos de cada uma de suas partes, consideradas isoladamente, o turista é uma contradição consigo mesmo. É dela, no entanto, ou seja, da unidade de sua pessoa, que ele retira estímulos para se comprazer na existência. Lógico: princípio de identidade (A = A); não-lógico: princípio de equivalência.

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(*) Jornalista e escritor, autor de A volta de Simão Bacamarte ? anotações sobre a filosofia em Machado de Assis e Que pau é esse? ? uma introdução à contextualidade na resolução de problemas