ELOGIO DA INCERTEZA
Nivaldo Tetilla Manzano (*)
Nesta semana, o Observatório publica, dividido em três partes, o segundo dos três capítulos deste ensaio do jornalista e escritor N.T.M.; o texto será completado na próxima edição do OI.
Segundo capítulo
Parte 1
A temática do conflito e da solidariedade pode ser escandida em todas as claves, na cozinha, no trabalho fora de casa, na arquitetura, na pescaria, na arte, nas relações amorosas ou nas relações internacionais. Assim, por exemplo, no debate sobre a necessidade de gestão ambiental integrada da Zona Costeira brasileira ? que é aqui considerada como o espaço unitário de suas possibilidades de uso ?, registram-se conflitos entre os usos da região em competição por recursos (recreação x navegação x lançamento de esgotos urbanos, exploração de petróleo x pesca etc.); competição por espaço (preservação x expansão urbana, portuária etc.); conflitos por impactos de rejeitos (as atividades de um setor interferem negativamente no ambiente de outro setor, ou no próprio ambiente); e conflito de valores (diferenças na percepção dos valores da região costeira por diferentes grupos sociais, econômicos, políticos etc.). A orientação assumida neste livro é que não se trata de eliminar liminarmente tais conflitos, pois dessa forma se removeria o problema em vez de solucioná-lo. Conflitos por razões de espaço, recursos, valores, sempre existirão, e é graças à explicitação de sua emergência que se constrói um espaço comum e pedagógico para a busca de soluções. Trata-se, pois, de estimulá-los para que venham à luz e, assim, se possa enxergar melhor a complexidade da realidade, ou o contexto com o qual se está lidando. Como condição para que a sua resolução seja adequada ? o que significa uma resolução necessariamente incompleta ?, é preciso neles enxergar-se o aspecto que os integra na unidade de sua diversidade.
Observe, leitor, que a exigência de unidade e de visão integrada por parte do ambiente é a contraface do caráter integrado da ação humana, no sentido preciso e universal da expressão, o que se traduz na prática em acolher o critério de obter-se o máximo proveito na exploração econômica desses nichos sob a condição de que seja realizada mediante o reconhecimento e a explicitação de seu valor não apenas em termos monetários, mas também e principalmente em termos de sustentabilidade. É dizer que o aspecto econômico da exploração não pode ser dissociado dos demais valores, tais como o estético, o ético, o social, o antropológico, o lúdico e o ambiental. Obviamente, o caráter unitário da gestão ambiental não se concilia com a lógica da acumulação de capital, que é excludente.
Em que pese a proliferação de programas, instrumentos e normas para a Zona Costeira, o fato é que a retórica da "gestão ambiental integrada" não avança em qualidade, na medida necessária, por razões que fogem ao âmbito de nossa vocação legiferante. A exação de normas, expressão do estado de construção da consciência ambiental no espaço do Estado e da sociedade, não produz mecanicamente o aprimoramento da gestão integrada dos recursos naturais. A letra da lei é circunscrita abstratamente e, por isso, não interage com o meio promovendo enlaces solidários. Para se avaliar o contraste esquizofrênico entre a morosidade na obtenção de resultados e a proliferação de normas, é preciso atentar para algo mais, para o que representa, singularmente, a atualização histórica e cultural do paradigma ambiental e a sua contribuição para a gestão da vida em sociedade, aí incluída a gestão dos recursos naturais.
A problemática ambiental emergiu, na atualidade, do reconhecimento da incapacidade do Estado e do mercado, considerados isoladamente, de lidarem com as questões ambientais. Essa incapacidade não é fruto de geração espontânea, mas sim um resultado ideológico imprevisto, embora deliberado e contraditório em seus princípios, da visão econômica neoclássica, que consiste em uma profissão de fé nos princípios do individualismo metodológico, do utilitarismo e do equilíbrio, em consonância com os cânones da física clássica e, por extensão, com a sociologia de Durkheim, criadas para lidar com coisas inertes. Trata-se de uma visão de mundo que intenta explicar a economia e a vida em sociedade como agregação das ações de indivíduos racionais, que se comportariam de modo a maximizar suas utilidades individuais, o que conduziria a alguma forma de equilíbrio. Esses são os princípios subjacentes à soberania e ao funcionamento do livre mercado, a partir do comportamento dos indivíduos. Tal abordagem termina por conferir o status de econômico a algum fator ou elemento apenas se este puder ser reduzido em termos das utilidades ou preferências dos indivíduos, que se expressariam em termos monetários.
Sendo o livre mercado a estrutura institucional central da economia neoclássica, é o mercado também a estrutura central em sua abordagem teórica da problemática ambiental. Na atualidade, porém, por pressão das circunstâncias reais, que estão a atropelar a crença de Hayek e Friedman na suposta transparência das informações do mercado, a abordagem ambiental neoclássica acabou por admitir a existência de custos sociais que não se encontram expressos em termos de preços de mercado. Ou seja, aqui o mercado, suposto promotor automático do equilíbrio, falha, ao expressar no sistema de preços apenas determinados custos que efetivamente ocorrem. Tais custos, por se constituírem em valores que aparentemente não incidem sobre as preferências subjetivas do agente que os gerou, são chamados externalidades, no caso, externalidades negativas.
O nível ótimo de dano
Nessa ótica, a autoridade reguladora ambiental deveria simplesmente visar, primeiro, à identificação dos custos sociais externalizados e, em seguida, utilizando-se de instrumentos como taxas ou licenças, levar o agente gerador de tais custos a internalizá-los (princípio do poluidor-pagador). Com isso, supõe a teoria, o dano ambiental em questão terá sido reduzido exatamente ao nível entendido como economicamente ótimo de dano.
O problema é saber-se como mensurar esses custos, uma dificuldade que não se resolve no âmbito do mercado. Isso porque um recurso natural, ou um valor ambiental, tem associado a si necessariamente um valor existencial, e este, não sendo uma mercadoria, não se expressa no sistema de preços. Ou seja, o critério de avaliação utilizado pelo individualismo metodológico não guarda por construção compromisso com os requisitos de sustentabilidade e de justiça com as gerações futuras.
Em contraposição à abordagem neoclássica, tem-se, como resposta epistemológica e ética, ao mesmo tempo imprevista e desejada, à agressão ambiental generalizada, a atualização de uma perspectiva que migra da visão que assume o locus econômico como formado pelo locus dos indivíduos, para o reconhecimento da centralidade da interação indivíduo-meio e dos valores comunitários. E, ao se eleger essa interação como o valor-referência da existência humana, subverte-se em decorrência a própria acepção tradicional de epistemologia, pois de agora em diante a racionalidade instrumental, responsável pela fragmentação artificial do conhecimento e pela correlata fragmentação artificial da realidade, não poderá mais dissociar-se da axiologia, ou da ética e os demais valores humanos.
Tal perspectiva encontra suas fundamentações nas elaborações da Economia Ecológica e suas variantes. Resumidamente, destas têm-se que as pessoas ? os movimentos sociais, as ONGs e as instituições ? constituem, juntamente com o mercado e o Estado, o locus social, econômico e cultural, que é indissociável do locus existencial, da mesma forma como são indissociáveis as interfaces de um determinado ambiente. O próprio mercado não é um fato estritamente econômico, ou natural, mas uma instituição humana, uma construção social e cultural que depende de leis e normas para seu funcionamento. O mercado, com seu sistema de preços, e os indivíduos, com suas preferências, constituem por certo importante elementos, mas os elementos que importam não são apenas esses, quando se considera o aspecto da exigência ética de sua integração. A contribuição específica da participação comunitária no modelo consiste em impedir que ele se dissocie ? alçando vôos auto-suficientes e alucinados, a exemplo de orelhas que se desgarrassem da cabeça ?, da prática social, terreno do qual brota a legitimidade não somente das exigências normativas como também da necessidade de sua revisão recorrente.
Reencontro entre cidadão e pessoa
Nessa perspectiva, ao se reintroduzir no espaço da reflexão a interação do indivíduo com o meio, como dimensão ética da vida em sociedade, remove-se o paradigma linear e mecânico, da mesma forma que a univocidade autoritária do discurso que lhe corresponde, e se restabelece o paradigma ambiental, ou o diálogo e a contextualidade, ou seja, o reconhecimento da diversidade real dos pontos de vista, conflitantes necessariamente, mas solidários no espaço unitário que vincula e compromete a todos no desejo comum de se comprazer numa existência sustentável. Restabelece-se, em outras palavras, o caráter substantivo e plural da democracia, a diversidade dos discursos, a afirmação das diferenças na igualdade, ou a Política do Sujeito. Têm-se, assim, a remoção da arrogância e do preconceito e o reencontro entre o cidadão e a pessoa, entre o indivíduo e a comunidade, entre o local e o global, entre a dimensão individual e a dimensão universal, obviamente indissociáveis.
Uma abordagem adequada ao desafio da gestão ambiental integrada da Zona Costeira exige, pois, que se superem as concepções tradicionais de desenvolvimento, segundo as quais as comunidades participam como mão-de-obra apenas. A participação das comunidades envolvidas, como uma das interfaces e referência do contexto, deve dar-se no reconhecimento da realidade, na análise, na decisão e na ação. Mais importante que tudo, a ação integrada e recorrente, daí resultante, deve orientar-se por uma referência última ? o desejo comum a todos de se comprazer numa existência sustentável.
O processo de consulta e de participação comunitária é um processo político. Quando um projeto, como o do desenvolvimento sustentável da Zona Costeira, é de natureza contínua e abarca a tomada de decisões em todas as fases de seu ciclo recorrente, transforma-se em modelo de valor exponencial para o fortalecimento da sociedade civil, de maneira democrática e aberta, condição prévia do desenvolvimento sustentável. A participação comunitária significa algo mais que simplesmente ser informada sobre os planos de desenvolvimento ou de se levar em conta os conhecimentos da comunidade local e suas prioridades. Introduzir a dimensão comunitária no modelo significa que a comunidade, os planejadores do governo e os agentes do mercado celebram um diálogo interminável, no qual as idéias da comunidade contribuem decisivamente para configurar e gerir os projetos.
O desenho definitivo ? se é que existiria ? de um projeto deve refletir as respostas da comunidade no processo de diálogo. Esse processo deve abrir espaço para um estilo de participação no qual a comunidade compartilha a autoridade e o poder em todo o ciclo de desenvolvimento, desde as decisões normativas e a identificação dos projetos até à sua avaliação recorrente. Com a inclusão da participação comunitária, o conceito de desenvolvimento converte-se num processo que tem como referência o ser humano e não os objetos, e as comunidades passam a ser enxergadas como promotoras e gestoras de seu próprio desenvolvimento. Aí está o fundamento ético de toda atividade, mesmo quando esta se presume estritamente econômica.
Isso é dizer que o desenho da gestão ambiental tem como ponto de partida a definição de critérios de sustentabilidade e de justiça com as gerações futuras, tanto quanto isso seja possível. Tais critérios são definidos, analiticamente, do ponto de vista técnico-científico, determinando-se as condições técnicas para a sustentabilidade, e do ponto de vista social e cultural, reconhecendo-se o compromisso ético com as gerações atuais e futuras. Na realidade concreta, porém, esses processos, indissociáveis embora distintos por definição, dão-se a um só tempo numa mesma perspectiva unitária. Dados tais critérios, a análise deverá então identificar o vetor de valores, monetários e não-monetários, confrontando-os.
Um exercício necessariamente conflitante. Mas a realidade é assim, e não há outra. Quando chegar a hora de se confrontarem os valores monetários e os valores não-monetários ver-se-á que o desafio é auto-recorrente: o enunciado do problema, por definição, consiste na delimitação de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que as fronteiras têm a delimitação que a resolução do problema requer. Em razão disso, ao contrário do que pretende o individualismo metodológico, a solução nunca é completa, para a nossa sorte: assim temos a oportunidade de rever as próprias decisões por ocasião de uma percepção mais abrangente e integrada da realidade.
A existência é valor
A quem me acusasse de relativista, cético ou cínico, responderia que a existência é valor, uma normatividade. E aqui remeto o leitor à obra de Georges Canguilhem, que sigo de perto nesta exposição (veja a bibliografia) [a bibliografia poderá ser consultada na última parte do terceiro capítulo, na próxima edição]. A normatividade designa aquilo pelo qual o ser humano vincula-se a seu meio, tornando-se sujeito do meio graças à eleição de valores mediante os quais ele transforma o meio em obra sua. A normatividade subentende, assim, a criação de normas pelas quais o ser humano se mantém e se individualiza. O ser vivo, e o ser cultural, não sofre passivamente o meio no qual se encontra. O comportamento vegetal, animal ou humano (biológico e cultural) não é uma resposta mecânica aos constrangimentos do meio. O ser vivo contribui para constituí-lo, e essa solidariedade no meio é o que caracteriza e constitui a normatividade orgânica e cultural. O ser vivo recorta do exterior aquilo que favorece o seu desenvolvimento, caracterizando-se, dessa maneira, por sua diferenciação. Essa atividade, de manutenção e de produção, atualiza valores biológicos, ou culturais, específicos e particulares. Assim, os termos de obra e de eleição de valores precisam a natureza da atividade.
A vida tanto da ameba quanto do ser humano consiste em preferir e excluir. A regulação do organismo, ou da cultura, que é a possibilidade de harmonizá-los com o seu meio interno (harmonia = conflito e solidariedade), valoriza as condições de sua co-evolução, ao mesmo tempo em que desvaloriza as perturbações recorrentes do meio, que o expõem à destruição. Assim, todo ser vivo (ou cultural) individualiza-se pelos valores que atualiza. A normatividade especifica a criação viva de valores que tornam possível a co-evolução do ser vivo e do seu meio, ou seja, seus estados de mudança. O ser vivo e o meio são, pois, processos paralelos e autônomos, não porém auto-suficientes. É a sua interdependência que define o seu contexto, de que é expressão a sua atividade co-evolutiva.
Invenção normativa ou normatividade inventiva é como se definiria a existência: instituição de normas valorativas dos fatos com vistas à sua afirmação e defesa contra os obstáculos que se opõem à sua preservação e expansão. A normatividade exprime uma atividade fundamental da vida em todos os seus níveis, para lutar contra o que lhe é prejudicial. Como valor, a normatividade orienta o esforço do ser vivo de se diferenciar, tendo em vista a sua afirmação, como preservação e desenvolvimento, e a sua rejeição a tudo o que se define como negativo, como a doença e a ideologia, que se lhe contrapõem. Assim, a normalidade da existência, ou seja, as configurações contextuais que assume ao lidar com o patológico, vem de sua normatividade.
"A norma, para o ser humano, é a capacidade de mudar de norma" (Canguilhem, G., 1966). Em contraste, a doença define-se pela sujeição da existência a uma norma única. Uma norma única de vida submete a existência a uma privação. Já a normatividade, ou a capacidade de criar novas normas, assegura-lhe positivamente a possibilidade de mudar. É nisso que consiste a normalidade homeostática, na instalação de um novo estado do problema, estimulada pelos desvios normativos da própria existência. O estado patológico, sob esse ponto de vista, é o debilitamento de seu poder normativo.
A criação de valores pressupõe a existência, como manifestação afirmativa. Seria o que em Nietzsche corresponde à vontade de potência, que o leva a pensar a existência como desejo, ou apetite de nutrição, processo que não pode ser enxergado senão como criação, no sentido de seleção, de escolha e de sua atualização (Le Blanc, G., 1998). "Viver é já valorar. Toda atividade implica uma avaliação, e a vontade está presente na vida orgânica" (Nietzsche). O ato de nutrição pressupõe que o organismo seja capaz de apetite, de avaliação de possibilidades de escolha que permitam satisfazê-lo. O ato de nutrição seria, assim, um ato normativo, que expressa a capacidade criativa do organismo. O corpo vivo, ou a existência humana, torna-se assim o centro de referência absoluto em relação ao qual a vida pode afirmar o seu valor criativo. É a sua criatividade que tornou possível a diferenciação do ser humano quanto á sua participação distinta, porém includente, nos valores. Embora os processos de cada pessoa sejam analiticamente distintos, independentes e paralelos, em razão dos diferentes valores, eles não são auto-suficientes. Todos encontram-se embebidos numa mesma referência, o desejo de se comprazer na existência, desejo indissociável do reconhecimento de outrem, pois o ser humano somente se reconhece a si mesmo na sua alteridade.
Contágio na metamorfose
A quem me acusasse de reformista, por promover o reconhecimento da aproximação legítima das partes como condição para se poder explicitar o conflito, enxergar melhor a realidade e ampliar assim o espaço de negociação, respondo com o exemplo do banco Grameen e com a analogia da transição do Império para a República. Diferentemente do que ocorre na linguagem binária, na qual o Zero toma o lugar do Um, sem tensão conflitante e solidária, um regime não remove o outro de modo súbito e abrupto. A transição do Império para a República ocorreu porque ambos os regimes contagiaram-se na sua metamorfose, sem se confundirem um com outro.
O que é a metamorfose da pupa e da borboleta (para não falar de outras fases larvais de seu ciclo de vida)? São duas fases distintas, opostas e complementares da vida do inseto, que interagem na sua co-evolução, de acordo com suas respectivas referências e com a referência comum a ambas (veja adiante). A pupa, na condição de pupa, desenvolve-se para permanecer no que é, obedecendo a regras de organização que fazem dela uma pupa; a borboleta procede do mesmo modo. Ambos os respectivos sistemas de regras, característicos de cada fase, opõem-se um ao outro, e essa oposição caracteriza a sua distinção. Como, então, explicar a transição de uma forma de vida para outra? Como é possível transgredir pela repetição e repetir pela transgressão? A resposta é a seguinte: pupa e borboleta, ao mesmo tempo em que obedecem aos respectivos sistemas de regras, orientam-se no seu ciclo de vida por uma referência comum, feita de normatividade e inventividade, ciclo de vida cujo sistema respectivo de regras opõe-se e não se opõe a um só tempo aos sistemas de regras da pupa e da borboleta. Quem preside, instituindo, o espaço conflitante e solidário das partes, é a referência, a pessoa, lógica e não-lógica, a um só tempo.
Realidade e fantasia
A tragicomédia de Dom Quixote é a de quem, medroso, rejeita o risco da transição, e com ele o prazer, para se prender à identidade reiterativa do mesmo (dualista). A figura de Dom Quixote é um exemplo historicamente antecipado do individualismo metodológico. Dom Quixote busca a coincidência plena entre o mundo real que tem &agragrave; sua frente e o mundo de sua fantasia cavalheiresca que, recolhida aos livros que lê, já não existe. A sua tragicomédia consiste em fazer com que a abstração da instituição medieval que traz na cabeça corresponda à realidade em mudança de sua época. É uma tal identidade que faria a ilusão de sua felicidade epistemológica: não criar nada de novo, senão confirmar a adequação da realidade à sua fantasia.
Dom Quixote é a mais genial encarnação da tragicomédia de todas as ideologias. Assim como estas, ele procede de maneira racional e lógica, ao juntar num todo coerente, com pertinácia e suspicácia, todos os pormenores e todos os fragmentos da realidade que acredita enxergar à sua volta. O que orienta a fúria delirante de suas investidas é o propósito, não de reconhecer uma diferença, uma novidade, mas de confirmar na realidade à sua frente a fantasia que leva na cabeça. Diferentemente do jogo machadiano entre Deus e o Diabo, cada novo lance de sua aventura consiste, não numa nova aventura, mas na coleta de provas adicionais que confirmem a sua verdade delirante. O mundo não lhe desperta interesse, senão como expediente e suporte para confirmar, por simetria lógica, que o verdadeiro mundo é aquele que traz no bestunto, confirmando assim, inversamente, que o mundo real de Sancho Pança não passa de fantasia. Assim, os descaminhos fantasiosos nos quais se perde representariam apenas um desvio do percurso lógico, em circuito fechado, que tem início e se conclui em si mesmo, como se nada de real pudesse ocorrer entre uma operação de inferência e outra. Grandes filósofos, como Descartes ou Hegel, que procederam do mesmo modo, por razões corporativas são poupados do apodo de quixotismo pela tradição acadêmica.
No mundo funcional da atualidade, o valor ideológico supremo é o quixotismo, ou a "ascensão da insignificância" da coisa, no dizer de Cornelius Castoriadis. No papel de Dom Quixote, tem-se, por exemplo, a figura do turista globalizado: sempre o mesmo aeroporto, as mesmas grifes, o mesmo frankenfood, os mesmos hotéis, o mesmo relógio, o mesmo conjunto de malas ? tudo ordenado antecipadamente de maneira tão perfeita que não existiria possibilidade de ocorrência de qualquer novidade, a despertá-lo para a sensação de que ainda não morreu. Eis o certificado da "qualidade do serviço" globalizado. Encarnar o princípio de identidade é a aspiração suprema dos idiotas.
O vencedor, ou o vazio hipertrofiado de nada
"À medida que se conforma a um estereótipo", escreve Vaneigem, "o papel tende a se congelar, a assumir o caráter estático de seu modelo. Ele não tem nem presente, nem passado, nem futuro, porque ele é um tempo de pose e, por assim dizer, uma pausa no tempo. A reprodução aqui está assegurada pelos ritmos da publicidade e da informação, pela faculdade de fazer o papel falar e, por conseguinte, pela possibilidade de se erigir um dia em estereótipo". O herói, o self made man, o CEO, o vencedor é aquele que, empenhado em se fazer reconhecer aos olhos do mundo pela força de seu próprio engenho, modela a sua personalidade segundo os critérios da impessoalidade do estereótipo. Assim, o vencedor, ou o especialista, é ninguém, um vazio hipertrofiado de nada, que exibe como virtude conquistada com o suor do trabalho (em geral, dos outros) a façanha de se ter convertido numa cópia perfeita do que não existe, senão no mundo de sua abstração. A identidade entre a pessoa e o estereótipo de seu papel é o arremate de sua nulidade, uma negação programática de sua existência singular, única e insubstituível.
Todas essas prestidigitações, com vistas à afirmação e garantia da certeza, têm em comum o fato de escamotearem o sentido de interação, a noção de meio. Constituem-se, em projeção reflexa, da falsa segurança oferecida pelo dinheiro/capital. A teoria de Charles Darwin sugere que a seleção, atuante sobre os organismos no meio, dá origem a novas espécies. Sempre mecanicamente, porém, sem interação entre o organismo e os seus meios interno e externo. Em Darwin, que parece espelhar a sua ciência numa ontologia providencial, o organismo é o objeto, não o sujeito das forças evolucionárias. A variação individual entre os organismos emerge como conseqüência mecânica das forças internas e externas, que são auto-suficientes, ou seja, independentes do organismo. Se o meio muda, não é em conseqüência de sua interação com os organismos, e sim de eventos cosmológicos, geológicos, climáticos etc. O darwinismo clássico faz do organismo uma emergência mágica resultante da justaposição mecânica entre forças internas e forças externas. Da contiguidade entre dois determinismos, emergiria miraculosamente o acaso. A galinha (o meio) é a transição, metodologicamente ausente, entre a evolução de um ovo e a seleção de outro ovo. Santos, em seus papéis de barão e banqueiro, é a transição, metodologicamente ausente, entre o Império e a República. Elimina-se, assim, o espaço do drama, o prazer e o risco, o encantamento, em nome da certeza e do controle sobre a realidade.
É mediante tal prestidigitação que se acredita poder afastar o autêntico sentido de interação, identificando-a, equivocadamente, com relações entre funções. Do mesmo modo procede Ludwig von Bertalanffy, em sua Teoria Geral dos Sistemas. Biólogo, Bertalanffy rebelou-se, inicialmente, com o paradigma da física aplicado à biologia. Advertiu que o paradigma não permite distinguir um cão vivo de um cão morto. Seria preciso reintroduzir o cão vivo no laboratório, do qual havia sido banido pelo cientista receoso de que o seu rabo, em agitação contínua, a descrever no ar trajetórias imprevisíveis, esbarrasse numa de suas hipóteses "experimentais", pondo todo o trabalho a perder. Infelizmente, o próprio Bertalanffy acabou procedendo do mesmo modo, ao estabelecer para o rabo trajetórias funcionais (previsíveis). Em escolho de igual natureza chocou-se o grande matemático do século passado, Alan Turing, ao pretender mediante o uso de sua matemática descrever o processo de diferenciação celular. Não há como sair do impasse artificial, senão abandonando as noções de estrutura e função.
É preciso ter em mente que o meio não preexiste ao organismo. Não é uma caixa de correio à espera de que nele se deposite a carta que se quer enviar. Não é um galho inacessível da árvore à espera de que a girafa encompride evolucionariamente o seu pescoço. O organismo não é um mero medium neutro, como o supõe a cibernética, pelo qual as forças externas do meio, ao se confrontarem com as suas forças internas, sem interagir efetivamente, produziriam a mudança. O meio faz-se meio na sua interação com o organismo (espécime), e este faz-se organismo (espécime) na sua interação com o meio. O meio, em sua interação com o organismo, normatiza, ao individualizar, e se individualiza, ao normatizar. E assim procede também o organismo. Não há dois meios idênticos, assim como não há dois organismos idênticos. Ou seja, o organismo influencia a sua própria evolução e a do meio, ao agir ao mesmo tempo como objeto da seleção e como sujeito criador, em interação com o meio, das condições dessa evolução.
O organismo participa da criação de seu próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento não é determinante na transição para o estado seguinte, pela simples razão de que o estado seguinte é dependente de como o organismo influi no que virá a ser o resultado anterior de seu desenvolvimento. Um problema auto-recorrente. A estabilidade dos fenômenos, naturais ou culturais, conjuga-se no tempo passado, aquele que já não existe.
Interação co-evolutiva
A discussão sobre os aspectos implicados na gestão ambiental integrada da Zona Costeira contribui para se enxergar melhor o caráter unitário do espaço em que convivem o problema e a solução: eis a interação co-evolutiva da pessoa do turista com suas partes. À luz da exposição feita acima, pode assumir-se a pessoa do turista como sendo um ambiente no qual interagem as suas "funções" (paladar, intestinos etc.), ou papéis. Na referência ao ser humano, o ambiente apresenta-se como um contexto. Um contexto é uma maneira de se representar a realidade, sobre a qual vai-se falar mais à frente. À diferença de uma simples abstração, ou de uma forma, como uma figura geométrica ou um conceito, o contexto, embora seja também uma representação da realidade, inclui num mesmo espaço unitário, prático, real e abstrato ao mesmo tempo, o sujeito que a representa, que é a sua referência. Difere, pois, da noção de objetividade na ciência, a coisa social, que salta para fora do campo da subjetividade do cientista, para que ele possa instalar uma dualidade sujeito/objeto, que não interagem. Sujeito e objeto, isolados um do outro pela visão dualista, são como orelhas que, desprendidas da cabeça, alçassem vôos auto-suficientes e alucinados por conta própria.
Encontrar-se em contexto é estar integrado (conflitante e solidariamente) consigo mesmo, com seus papéis, com a sua própria referência, que se assume como adequada para qualquer unidade de referência, o indivíduo, a sociedade, a cultura ou a humanidade, e para todas elas simultaneamente. É encontrar-se em estado de mudança, pois das interações resultam estímulos que, ao incidirem de volta sobre o contexto, levam-no a co-evoluir (o contexto e seus componentes). A noção de contexto permite, assim, distinguir, sem separar, o plano da realidade, concebido como o espaço infinito de todos os possíveis (todos os objetos, recursos, noções, abstrações, formas, palavras e também o sujeito, com a sua racionalidade, os seus sentimentos, a sua ética, a sua estética etc.) e o plano da abstração, ou do objeto, considerado isoladamente, que é parte também do plano da realidade, já que a realidade é tudo.
Considera-se como parte do contexto, e somente parte, a arena dos duelos lógicos, paladar x intestinos, na qual se digladiam também o papel de vencedor e o papel de perdedor, a luz e as trevas, o certo e o errado, Bush e Bin Laden etc. Parte, porque não é possível conceber a disputa entre paladar e intestinos na ausência da pessoa do turista, o ser humano, que é o contexto de todos os contextos. Não há duelos lógicos sem audiência ? da mente, por exemplo ?, suporte, testemunha e juiz da luta. Opostos que, se se pudessem eliminar mutuamente, seriam como dois insetos fechados numa caixa de fósforo que se entredevorassem, desaparecendo ambos. O vencedor não subsiste sem o perdedor, e vice-versa. São papéis correlatos, e quem enxerga a correlação não são os papéis, que são abstrações, e sim aquele que a constitui, o sujeito, que é realidade.
Numa analogia com a lingüística, o contexto é o plano do sentido, da linguagem, do discurso, cruzado implicitamente pela referência. O plano do sentido não pode dissociar-se da referência, sempre ausente do que é explicitado "objetivamente" (segundo o dicionário) no discurso. A referência é tanto o que orientava Sherlock Holmes em suas investigações, quanto aquilo que Holmes buscava reconhecer, para identificar o assassino. Ao dar início ao seu trabalho, o detetive sabia e não sabia do que se tratava e, por isso, cuidava (1) de enxergar sentido nas suas supostas descobertas parcelares à luz da referência que desconhecia e que, no entanto, o orientava na investigação; e (2) cuidava de se apoiar na referência, assumida como mera conjetura, ao emprestar sentido aos pormenores dos quais ia suspeitando pelo caminho. Os rumos da investigação de Holmes no futuro eram dependentes de sua avaliação no presente sobre os resultados do passado. Ao mesmo tempo, os resultados do passado, na sua avaliação do presente, eram dependentes dos rumos de sua investigação no futuro. Ou seja, tanto o problema encaminhava-se para a solução quanto a solução encaminhava-se para o problema. Um problema e uma solução auto-recorrentes: Política do Sujeito.
O mesmo ocorria com Holmes quando pedalava a sua bicicleta. Ao dar uma nova pedalada, o ciclista Holmes buscava no presente corrigir o desequilíbrio provocado pela pedalada anterior, tendo em vista, como sua referência, atingir um ponto determinado no futuro de seu trajeto (política do conceito). Assim, a correção do desequilíbrio anterior era dependente, ou estava orientada pela referência de seu futuro. Ao mesmo tempo ? aqui entra a auto-recorrência ? a garantia de permanência da referência de seu futuro era dependente da correção do desequilíbrio anterior.
Ou, ainda: um sonhador idealiza a realização de um sonho, e ao dar o primeiro passo nessa direção, que nele estimula uma nova visão de seu contexto induzida por esse passo, divisa um novo sonho, um novo modo de sonhar e um novo repertório de sonhos. O futuro do sonho, que ainda não se realizou por completo, já é outro: o futuro é dependente do presente. Como outro, incide no caminho de volta sobre o presente do sonhador, induzindo-a à mudança no modo de sonhar: o presente é dependente do futuro. Assim, o presente do sonhador, que já não sonha o que sonhava, incide sobre o futuro do sonho, que já não é o mesmo, processo que induz o sonhador a estimular, com a sua resposta, a mudança que vai mudá-lo.
O catálogo de Bertrand Russell
No empenho em remover a auto-recorrência do contexto humano, para fazer evoluir a ciência da objetividade sem sujeito, os "istas", em geral, como os marxistas-positivistas, gastaram rios de saliva e montanhas de papel. Derrotou-os o exemplo do catálogo da biblioteca, enunciado por Bertrand Russell, sem que ele próprio dele tenha tirado as conseqüências em toda a sua extensão. Esse catálogo, que é parte da estrutura da biblioteca, tem a função, como se sabe, de fazer dele constar todos os livros nela guardados. Pergunta-se, então: de que livro constaria o próprio catálogo, já que também é um livro da biblioteca? Ora, sabemos, não há livro capaz de contê-lo, e quem o contém é a mente do usuário ou do bibliotecário ? e somente ela ?, que não é uma estrutura nem uma função, e sim a instância auto-recorrente: Política do Sujeito.
A prática da auto-recorrência (re-flexão) que se colhem nesses exemplos, é a mais corriqueira das experiências. Na realidade, não há outro tipo de experiência. Se disso não nos damos conta facilmente, é porque somos adestrados no seu desaprendizado formal desde os primeiros anos de escola, onde se atualiza a ideologia da objetividade funcional, ou das aspirações absolutistas das partes de representarem o todo. A escola, que prepara o cientista ou o cidadão do futuro, visa à universalidade da cidadania, em prejuízo da singularidade da pessoa. Visa à igualdade, em prejuízo da diferença. E, assim, ao apontar para o horizonte, desvia-nos o olhar do próprio nariz ? do contexto, ou da auto-referência.
Não se trata de um programa inocente. Nestes séculos de liberalismo e marxismo-positivista ? ideologias que professam a mesma a crença na linearidade do destino humano ?, é-lhes indispensável acenar com a cenoura à frente do burro na carroça, para que continue puxando a carga e não se rebele. A quem se subtraiu, epistemológica e eticamente, a liberdade e a responsabilidade humanas é preciso infundir a confiança de que, a exemplo da maçã de Newton que não padece de incertezas, cairá do galho por decisão e mérito próprios. A pessoa do turista, que assim se teria fragmentado, em proveito das razões soberanas dos intestinos ou do paladar, busca-se compensá-la da perda de seu sentimento de unidade com o expediente vicário de uma transcendência qualquer, o indivíduo liberal, a coisa social ou a classe operária redentora, por exemplo, que se reconheçam como capazes de contê-lo nos varais. É assim que se produzem as miragens do paraíso capitalista e do paraíso comunista. Enquanto o capitalista acena com o progresso automático, o cozinheiro hegeliano-marxista da "lógica da totalidade dialética" vai enrolando o seu rocambole temporal, como o vem fazendo desde o albor da história, e promete entregá-lo no futuro à degustação somente dos últimos convivas. Aos que foram convocados para a festa antes da hora, caberá conformar-se com terem feito da existência um mero esboço do que poderia ter sido e não foi. São ideologias que se dão as mãos na empreitada de remover de suas vítimas o sentido da contextualidade. E lá vai, descontextualizado, o burro, assim convertido em passarela da História, para a passagem da Idéia, da Razão, da Raça Ariana, da Revolução, do Estado, do Livre Mercado, em resumo, das políticas do conceito dissociadas da Política do Sujeito.
O escritor argentino Jorge Luís Borges vale-se da alegoria de seu conto "O espantoso redentor Lazarus Morell" para denunciar a ilusão da liberdade emancipadora, pela ação do futuro. Ambientada nas plantações do sul dos Estados Unidos, no século XVI, a história narra como o cruel redentor de escravos procedia. Escolhia um negro infeliz e propunha-lhe a liberdade. Morell dizia-lhe que fugisse do dono, mediante a sua ajuda, para ser vendido por ele, numa segunda vez, em alguma fazenda distante. O fugitivo receberia então a paga, correspondente a uma porcentagem de seu preço de venda. Com a acumulação do dinheiro assim amealhado, o escravo compraria finalmente a sua liberdade, das mãos de Morell. Antes, porém, que chegasse o dia da alforria, o futuro alforriado era destroçado pelos capangas de Morell, acumpliciados com ele no processo "libertador".
A ideologia do progresso automático, da escatologia, da ontologia ou do messianismo desempenha aqui o papel orgânico de gerar, alimentar e manter o estado de salivação feérica em que se debate a vítima, em busca de resposta à exigência de uma existência plena, que somente se rende quando se deixa fragmentar. Trata-se de uma ontologia que é também uma ética, a ética do dever-ser, que se impõe indiferentemente à maçã da ciência e ao destino humano. O que se pretende com ela é fazer dizer sim à lei da gravidade a quem, senhor da criatividade, não está sujeito a lei transcendental alguma, senão à lei que assume na sua imanência, no reconhecimento de si mesmo em outrem.
[Fim da Parte 1 do segundo capítulo. Clique em PRÓXIMO TEXTO para ler a segunda parte desta matéria]
(*) Jornalista e escritor, autor de A volta de Simão Bacamarte ? anotações sobre a filosofia em Machado de Assis e Que pau é esse? ? uma introdução à contextualidade na resolução de problemas
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