BRASIL BRASILEIRO
Carlos Vogt
O Brasil tem, históricos, 501 anos. Isto é, estamos no dia seguinte, mais precisamente no ano seguinte da metade de milênio de seu descobrimento, como dizem uns, ou de seu "achamento", como desejam outros, ou ainda de seu "encobrimento", segundo os que acham que não foram achados, tampouco descobertos e que não havia nada para comemorar no ano findo das festas do V Centenário, muito pelo contrário.
Redescoberto, nas festividades dos 500 anos, o que se achou e o que se perdeu entre os vários projetos e programas organizados para a efeméride ou por ela motivados?
Sabemos, desde logo, que alguns deles deram com os burros n?água, ou melhor empacaram na luminosa liquidez do Oceano Atlântico que travou a réplica da nau capitânia e não a deixou sair do lugar. Só meses depois é que, refeita a navegabilidade da nau e ajustado o seu moderno motor diesel é que ela singrou os mares já dantes navegados da costa da Bahia e dos demais costados de nosso extenso e intenso Brasil.
Os portugueses, nossos irmãos, na contraparte dessa contradança é que se divertiram, pois sua caravela replicou com sucesso e prosopopéia a viagem de Cabral, enquanto que a nossa, embora custando caro ? mais de 4 milhões de reais ? acabou chegando tarde para a festa, os fogos já queimados, a fogueira só cinzas e o mar indiferente à desilusão.
Parece que hoje a nau capitânia está nos mares recortados de Ubatuba onde se prepara para protagonizar o cenário de um filme que se roda ou se rodará. Quem sabe um dia não venha ela ainda a substituir, com graça, a velha, simpática e inútil caravela que há tantos anos inscreve de tranqüilo absurdo a paisagem do Parque Taquaral, em Campinas!
Outros projetos, contudo, transformaram-se em verdadeiros programas e, mesmo transcorrido o ano das comemorações, tiveram prosseguimento em sua dinâmica social e cultural.
Entre estes está sem dúvida a Mostra do Descobrimento, de rara e original beleza, com um público recorde em São Paulo e um sucesso garantido nas cidades por onde passou no Brasil e no exterior.
O mesmo se dá com o projeto Objeto Brasil: 500 anos que depois de ter realizado várias mostras e exposições continua com a fina programação que nos faz percorrer pelos objetos de artesanato e design a história e os mitos do Brasil se descobrindo.
O Museu Aberto do Descobrimento, antes e depois da festa do V Centenário, publicou livros densos, de artigos e ensaios, e leves, de fotos, paisagens e ilustrações, dando consistência à idéia de que a data histórica, plana no tempo, pode multidimensionar-se em memória e prospecção.
A esse propósito veja-se, por exemplo, os livros Invenção do Brasil e O Brasil Renasce onde Nasce.
Zélio Alves Pinto comandou uma equipe destacada de pesquisadores e historiadores que ao longo de vinte edições mensais produziu para o D.O. Leitura, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (IMESP), um encarte sobre a história e os personagens que marcaram, em cinco séculos, os grandes acontecimentos do país e a sua relação com a história paulista. Planeja-se agora a reunião de seus opúsculos em livro e a continuidade das pesquisas para a produção de novos encartes que darão origem aos Cadernos Paulistas ? História em Movimento.
Lenda que escorre
Vários outros projetos seguiram em ritmo de perenidade que outros tantos não conheceram, ou pela pontualidade que os caraterizava, como é o caso do relançamento da Primeira Missa em Porto Seguro com todas as controvérsias que envolveram a cerimônia religiosa no manto diáfano do ritual político. Índios e sacerdotes não se entenderam bem, nem mesmo no perdão confesso enunciado em público, ao vivo e a cores, para o Brasil e para o mundo, no mea culpa que coroou a réplica da plantação da primeira cruz no solo dos que aqui estavam pelos que nele recém-chegavam.
Polêmico também o projeto de criação de um Parque Nacional do Monte Pascoal, cuja idealização logo entrou em conflito com a realidade da reserva Pataxó, índios para os quais chegou-se a pensar na construção de um moderno complexo comercial, o Patashopping, ou Pataxoping para ficar com a grafia do empreendimento mais perto do grafismo étnico dos empreendidos.
Aqui também parece que a Nau Capitânia virou Catarineta e ancorou na passarela.
A manifestação de índios e sem-terras que juntos marcharam contra a oficialidade das comemorações teve enormes repercussões na mídia e na imprensa nacionais e internacionais.
Nesse caso, se o evento esteve circunscrito pela sua pontualidade política, tomou-se, no país, um certo gosto pela teatralidade dos espetáculos emulativos já que, sob vários aspectos o Fórum Mundial Social ocorrido este ano em Porto Alegre reproduziu, por oposição à chapa branca do Fórum Mundial de Economia, de Davos, na Suiça, a reverberação dos nãos, e os nãos sinceros, patéticos, oportunistas, indignados, carnavalescos, mas justos e legítimos dos excluídos.
Mas e a Ilha Brasil quantos anos terá?
Bem, aqui a história é outra ou, se quiserem, o Brasil são outros 500.
Quer dizer, onde "o mito é o nada que é tudo", como escreve o poeta Fernando Pessoa, a história tem intercursos de austeridades e futurismos que se mesclam no imaginário e nas representações que, feitas no tempo e na geografia física de espaços localizados, insinuam-se pela poesia e pela humanidade metafórica das gerações em que a vida se renova e a existência limitada se perpetua, em sua finitude.
Ainda Fernando Pessoa:
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Mito e história
Assim, pois, o mito, existiu antes da história, e a ilha, antes do continente. O paraíso terreal da Ilha Brasil atravessa a Idade Média, povoa as narrativas de viajantes, invade o Renascimento, ilumina a poesia de William Blake e a prosa incandescente de James Joyce e permanece vivo na utopia popular de nossa redenção.
O Brasil, no mito, é anterior ao pau que, na história, quer lhe dar nome por razões de importância comercial. É-lhe também posterior. Está, portanto, em toda parte e em nenhum lugar, mas é tão real, enquanto fenômeno histórico, como é falso enquanto história factual.
Nos 500 anos que se comemoraram com pompa, circunstância, fiasco, farsa, tristeza e alegria, como terá o mito contado os homens de nossa história recente?
Como o Brasil que se globaliza convive com as camadas geológicas e sedimentadas de seus mitos de formação?
Como se encontram hoje os esforços de compreensão histórico-social das raízes do malogro que se contrapõe à ilusão de modernidade e de contemporaneidade internacional que se segue à Abolição da Escravatura, em 1888 e à Proclamação da República, no ano seguinte?
Em que ponto de nossa psicologia social o mito e a história se encontram, ou se confundem para oferecer-nos ilusões de conquistas e conquistas efetivas de identidade?
Sob muitos aspectos, a alegria da festa dos 500 anos, foi também a oportunidade para a reflexão e a análise e mesmo a representação dramática e cômica, quando não melodramática, do país com suas imagens, metáforas e representações.
Uma coisa é certa, o Brasil sobreviveu a si mesmo e, na Quarta-feira de Cinzas do grande carnaval, sóbrio amanheceu, tal como havia bêbado adormecido: igual em suas diferenças.