AMOR EM LIVRO
Beatriz Singer
Arlindo Machado é defensor e amante da TV. A maior prova de amor que o estudioso deu recentemente foi a publicação do livro A Televisão Levada a Sério (Editora Senac, 2000, 248 páginas) [veja remissão abaixo]. Desde que foi inaugurada no país, há meio século, a televisão não deixou de crescer em importância, firmando-se hoje como meio de comunicação de maior influência nos costumes e na opinião pública. Paralelamente a esse poder nunca antes exercido por outro meio, cresceram também as opiniões divergentes sobre televisão. Para Arlindo Machado, a visão dominante sobre o meio é marcada por distorções da mensagem que a televisão difunde. Essa visão dominante ? ou, com termos de Machado, essa "visão adorniana" ? tende a enxergar a TV como algo negativo.
E mesmo ao hastear a bandeira em prol da televisão, Machado critica visões genéricas como as de McLuhan, que julga ser a TV naturalmente boa. Aliás, visões genéricas e generalistas, no mais das vezes, não conduzem a um estudo sério sobre a TV. Para o autor de A Televisão Levada a Sério, esse importante meio, que pode ser tanto perigoso quanto indispensável para a sociedade, tanto servir de meio de alienação quanto de educação nacional, merece um estudo mais parcimonioso para, só assim, ser realmente levada a sério.
O trabalho historicamente desempenhado por Arlindo Machado coloca-o na posição privilegiada de um dos maiores especialistas em televisão do Brasil. A Televisão Levada a Sério é um grande exemplo. O autor sabe do que está falando e para cada conceito, argumento ou hipótese formulados há um exemplo que acompanha e permite ao leitor vislumbrar o raciocínio ali embutido. Some-se ao grande conhecimento prático adquirido em muito tempo de atenção crítica ao que passa na tela da TV, um forte embasamento teórico e notável aptidão para a análise de técnicas e intenções em todas as áreas visuais. Com isso, mostra o que há por trás de reportagens, minisséries e videoclipes, por exemplo. Trata-se de uma leitura indispensável para estudantes e pesquisadores da área, atendendo, simultaneamente, ao leitor leigo interessado em uma avaliação do conteúdo da programação televisiva e em suas nuances plásticas.
O autor, que tem a idade da TV no Brasil ? 50 anos ?, está convencido de que palpita vida inteligente nos conteúdos televisivos. Afirma existirem muitos programas de qualidade, basta saber pesquisar e selecionar. Não se pode negar a coragem desse professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP e do Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA/USP. Como poucos, ama assumidamente a televisão.
TV & arte
Com uma linha de raciocínio perfeita, chega a cutucar as feridas de senso comum do leitor, de que TV é sempre ruim, de que seu efeito "anestesiante" é algo vergonhoso. Ao mesmo tempo, recai sucessivas vezes no que pode se chamar de erro ao comparar algo comercial e etéreo como a TV com algo isento e milenar como as artes. Vale considerar arte como uma forma de expressão de sentimentos e pensamentos de um indivíduo para o meio exterior. A TV faz o caminho inverso, partindo do público para o produtor, diretor, autor de telenovelas etc. Aliás, o próprio Arlindo Machado diz que "a TV é o que fazemos dela". Pois então. Se fizéssemos os quadros de Van Gogh, as sinfonias de Beethoven, os filmes de Fellini, das duas uma: ou seríamos todos gênios da arte, ou a arte simplesmente deixaria de existir ? o que seria mais provável.
Em uma frase do parágrafo acima é até possível encontrar elementos que evidenciam a falta da essência da arte na TV. Um filme bom terá seu diretor reverenciado; um livro bom, igualmente; assim como na música e em todas as outras formas de arte. Na TV, os créditos de um bom programa ficam diluídos e acabam restritos à emissora. Não raro dizemos que "tal programa de tal emissora é bom", sem mencionarmos o principal idealizador ou realizador do programa.
Arlindo Machado diz que amar a TV sem correr o risco de submergir na banalidade é uma questão que se aplica a qualquer outro meio: o espectador de cinema escolhe o filme a que quer assistir antes de sair de casa, o leitor de romances escolhe o livro que vai ler, por que então o espectador de televisão não deveria selecionar o que vai entrar no seu aparelho?
Os problemas da questão são dois. O primeiro, o fato que se deve reiterar, de que TV não é arte e, sob os moldes atuais, não será. O segundo, o fato de não podermos selecionar com tal facilidade o que será exibido em nosso aparelho. Em tempos de TV a cabo, temos mais opções mas mesmo assim não podemos escolher exatamente o programa que queremos assistir em determinado dia e horário. Com cinema, teatro, literatura, música etc, temos, aí sim, o poder de escolher para que obra dedicaremos nossa atenção por um tempo prolongado. Esse poder de penetração não é alcançado na TV como o é nas artes. Raras vezes um bom programa de TV marca a vida de uma pessoa a ponto de ficar retido na lembrança do espectador para o resto de sua vida. E isso até faz sentido! Não é esse o objetivo da TV. Grosso modo, a televisão é um meio com estrutura para fins econômicos, do qual se extrai duas coisas básicas: entretenimento e informação. Tudo o mais é apenas derivado dessas "veias primitivas".
TV & sociedade
A discussão da TV como mero entretenimento e como formadora de opiniões deixa um pouco a desejar. Seu livro faz uma viagem pelos campos mais plásticos da TV, mas evita discutir em profundidade a repercussão social da TV de massa e da TV de qualidade ? termo que o autor repudia justamente por colocar a TV em um patamar superior, ao lado da literatura, do cinema e, por vezes, das artes plásticas. Nas poucas vezes que ousou comentar repercussões sociais, só o fez visando a defender a TV.
Quando comenta o gênero de TV ao vivo, por exemplo, contesta a crítica de que programas e tomadas ao vivo são etéreos e vazios e afirma que já mobilizou populações de nações inteiras modificando o rumo da história. Até aí, ztudo bem. Mas faltou falar do outro lado. Por exemplo, por que o autor não comenta o famoso caso de uma transmissão do Jornal Nacional, da Rede Globo, que disse ser uma manifestação da Praça da Sé uma comemoração do aniversário de São Paulo quando, na verdade, era uma das primeiras movimentações massivas pelas Diretas Já?
A TV mobiliza massas, sim. E é aí que mora o perigo. Seu hipnotismo é extremamente perigoso. Não é à toa que, como o próprio Arlindo Machado afirma, a censura militar concentrou suas maiores forças nesse meio de comunicação. Utilizando-se de exemplos diversos, Machado tentar mostrar como um telejornal, por exemplo, não é manipulativo à medida que uma mesma notícia é absorvida singularmente por cada telespectador, de acordo com sua cultura e sua vivência. O que afirma o autor é correto, mas muito generalista e aplicável a qualquer outro exemplo cotidiano. Por exemplo, o nazismo de Hitler foi encarado diferentemente por toda a população. Alguns defendiam a exterminação dos judeus, outros a repudiavam. Todos basicamente tinham acesso às mesmas informações, mas, com certeza, se não houvesse um aspecto manipulativo nas entranhas no nazismo não haveria como defender sua causa.
Outro exemplo, ainda mais próximo, é o mesmo sobre a reportagem deformada da manifestação das Diretas Já, já citada. E, para como exemplo ainda mais recente, as telenovelas da Rede Globo têm sido duramente criticadas por incentivar ou desanimar a população para determinada atitude. A personagem Capitu, da antiga novela das 8 Laços de Família, é um bom exemplo. A emissora sofreu grande pressão de ONGs de direitos humanos e várias ameaças de processo por estimular a prostituição ao exibir a personagem encarnada por Giovanna Antonelli. O mesmo ocorre agora com a minissérie Presença de Anita, em que a protagonista, Mel Lisboa, e o amante, José Mayer, aparecem fumando em cenas ligadas a sexo. Mesmo transmitida sempre depois das 23h, a minissérie é alvo de críticas por indução ao vício tabagista. Isso não é prova do poder da TV de manipulação?
Negação de uma mesma categoria
Qualquer estudo deve estar enquadrado dentro de alguma categoria. Os primeiros pensadores latino-americanos a defenderem e justificarem a situação da América Latina, não pensavam em categorias diferentes dos europeus retrógrados que acreditavam em raças superiores e inferiores, em "destino" etc. Em outras palavras, os primeiros pensadores a defender a América Latina faziam-no negando o que pensadores europeus diziam ? caindo (por negação), portanto, na mesma categoria deles. Só mais tarde surgiram pensadores que criaram uma nova categoria de pensamento, não tão preocupada em rejeitar idéias quanto em criar novos conceitos e linhas de raciocínio.
No exemplo citado, pode-se dizer que Manoel Bomfim se enquadra entre os defensores da América Latina por negação, dentro do olhar da categoria européia retrógrada, enquanto Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda criam uma nova categoria de pensamento, autônoma, com dados novos para reflexão. Se seguirmos essa mesma lógica de raciocínio, Arlindo Machado seria o Manoel Bomfim da televisão. Sua preocupação em negar teorias que depreciam a TV é tanta que o livro é quase que um rebate ao pensamento dominante e negativo do meio. Justamente por isso, deixa de introduzir elementos novos na discussão. A sensação que se tem ao ler seu livro é de afirmação e negação de conceitos já conhecidos, e não de novas concepções que fustiguem formas inusitadas de pensar a TV.
O livro de Arlindo Machado é precioso. Precioso em dados e exemplos acessíveis ao leitor. Mas sua preciosidade vem de outro campo, o que incita a pensar a TV de forma mais isenta, sem adoção do pensamento geral da elite intelectualizada, que deplora o meio, reservando-lhe a penosa atribuição de "meio de comunicação de massa". Seus estudos e obras anteriores indicam que Machado será grande referência para estudos futuros. Está dando o primeiro passo para se tornar revolucionário. Como em qualquer argumentação ? e utilizando-se da nomenclatura hegeliana ?, a negação ? ou antítese ? é apenas o primeiro passo para se chegar a uma síntese final. E só da síntese pode-se extrair elementos novos fundamentais para revolucionar concepções há décadas enraizadas.
Se a intenção de Arlindo Machado foi estimular um pensamento que levasse a TV a sério, seu objetivo foi alcançado com lucidez e convicção.
Leia também