Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para acabar com todas as guerras

BRASIL NA 1? GUERRA

Francisco Carlos Teixeira Da Silva (*)


Prefácio de A imprensa brasileira e a Primeira Guerra Mundial, de Sidney Garambone, Mauad Editora, Rio de Janeiro, 2003; título e intertítulos da redação do OI


Ao seu tempo, sem nenhum outro paradigma de comparação, a Primeira Guerra Mundial foi simplesmente chamada de a Grande Guerra. Nada antes havia se assemelhado à amplitude do conflito, seja em extensão ? envolvendo países da Ásia e América do Norte e Latina, além de colônias e domínios europeus da África, na disputa iniciada no coração da velha Europa ?, seja em intensidade, tanto em relação ao número de vítimas, quanto ao uso de armas e tecnologia até então inéditas em conflitos bélicos, como o carro blindado, o avião, as granadas de mão, o submarino ou a metralhadora.

Para muitos, a Grande Guerra foi o marco decisivo da guerra moderna, a mãe de todas as batalhas que marcariam o século XX e, já agora podemos infelizmente dizer, também o século XXI. Claro, a Guerra de Secessão Americana ? 1861-1865 ? foi, sem dúvida, a primeira guerra de massas da história, em que a mobilização total dos recursos de uma sociedade foi colocada à disposição da máaacute;quina de guerra, visando atingir os fins estratégicos que garantiriam a vitória. Contudo, mesmo frente ao morticínio e a imensa dor, a Guerra de Secessão foi circunscrita a um país, meio-continente, um só povo. Neste sentido, o então impressionante desenvolvimento industrial americano não poderia ser comparado ao poder industrial de nações como o Império Alemão ou Britânico, a República Francesa, e mesmo os próprios Estados Unidos e o Império do Sol Nascente, na Ásia nas vésperas da Grande Guerra, em 1914. Assim, a Grande Guerra garante para si a glória duvidosa de abrir um novo capítulo na história da humanidade: a moderna guerra total.

Para além dos recursos materiais e humanos investidos, procurava-se ainda reverter os principais ensinamentos ? a própria doutrina militar ? das últimas grandes guerras européias: as guerras napoleônicas. Convencidos do mérito das políticas defensivas, otimizadas pela moderna engenharia de casamatas, trincheiras e bastiões, ao lado da excelência das novas armas de tiro, todos os principais países envolvidos desenvolveram técnicas defensivas anticlausewitzianas. Entrincheirar-se por entre casamatas, com campos minados e redes de arames farpados pareceu, para os generais de plantão em 1914, uma fórmula ideal para evitar os desastres da Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, quando exércitos alemães em rápidos movimentos envolveram e paralisaram as defesas francesas, abrindo caminho para Paris.

Tribunal universal

Assim, desde os seus primeiros dias, a Grande Guerra tornou-se uma guerra de posições, travada em trincheiras, de grandes desgastes, enterrando exércitos inteiros no lamaçal, sob o frio, a fome, as doenças e a desesperança. As metralhadoras e os gases venenosos, inaugurando o uso das armas químicas, devastavam milhares de homens de uma só vez. São os fatos que alimentam páginas heróicas da literatura pacifista de todos os tempos: Dalton Trumbo (Uma Arma Para Johnny); Ernest Heminguay (Adeus às Armas); Erich Maria Remarque (Nada de Novo no Front) ou Bruno Vogel (Alf). Foi em verdade uma guerra dura, suja, cruel, e a vitória que dela emergiu foi marcada pela recriminação, humilhação e frustração, abrindo caminho para novos tempos de barbárie: os fascismos na Itália e na Alemanha, e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial.

Por esta razão, para muitos, a Grande Guerra não terminou em 1918: foi apenas uma pausa, para que os beligerantes, exaustos, pudessem se recuperar, reorganizar as forças, realinhar as alianças estratégicas, para a retomada do conflito em 1939. Assim, a Grande Guerra poderia ser vista como uma longa guerra, pontilhada de pausas eventuais ? uma paz armada e precária ? e retomadas cíclicas das hostilidades, como no caso do Japão contra a China, desde 1931, ou da Itália contra a Etiópia, em 1936, além da destruição das democracias indefesas, como a Áustria e a Tcheco-eslováquia, frente à Alemanha de Hitler, em 1938. Estaríamos, então, face a uma nova Guerra dos Trinta Anos do século XX, em alusão àquela outra Guerra dos Trinta Anos que, no século XVII (1618-1648), destruiu a Europa e espalhou o pânico e a dor por todo o continente e suas dependências coloniais.

Não podemos minimizar, de forma alguma, o impacto causado pela Primeira Guerra Mundial, mesmo em pontos remotos do planeta, fora dos eixos geoestratégicos centrais do mundo. Aos poucos fomos ? o Brasil da República Velha ? tragados para o centro do conflito, puxados para participar da crise, muito menos em função de nossas possibilidades militares, do que em função da visão de mundo que surgiu em meio ao clamor das batalhas.

Nossa participação devia-se, grandemente, à emergência nos Estados Unidos de uma nova visão de mundo, do seu destino e, principalmente, da forma de administração das relações internacionais pós-conflito. Nesse sentido, a postura do presidente Woodrow Wilson (1856-1924) foi fundamental. Pela primeira vez os Estados Unidos rompiam com os sagrados princípios dos Pais Fundadores contrários ao envolvimento do país nos conflitos ? mesquinharias dinásticas e colonialistas, aos olhos do americano médio ? da velha Europa. A ameaça do Império Alemão, contudo, desafiara o equilíbrio mundial de poder, e corria-se o risco de as potências anglo-saxães, baseadas no poder naval, na auto-administração, no controle do comércio marítimo mundial, serem sujeitadas por um poder continental, no caso alemão, baseado em imensos exércitos de terra, em forte centralismo autoritário e na concentração industrial. Por isso os Estados Unidos decidiram-se pela guerra. Deveria então ser uma guerra para acabar com todas as guerras, culminando numa paz administrada a partir de um tribunal universal de povos, a Sociedade das Nações. Eram retomados, nos chamados princípios wilsonianos, o otimismo humanista de Kant e sua esperança em uma Paz Perpétua.

Linha vermelha

É assim que a chamada à guerra feita a todos os povos deveria ser, também, a chamada para a construção das bases da Nova Ordem Mundial a emergir do conflito. Chamado a participar de tal arquitetura, o Brasil deveria também participar da guerra, habilitando-se a ser um dos construtores da nova arquitetura das relações internacionais.

Até aqui os livros explicam: conhecem-se a política internacional, as decisões brasileiras, as disputas pela participação na Sociedade das Nações e, quase imediatamente, as decepções sofridas. O Tratado de Versalhes constituindo-se em instrumento de punição, em vez de alicerce para a paz, e a recusa dos Estados Unidos, o proponente original, em participar da Sociedade das Nações. Mas, o que não se conhece, praticamente nada se sabe, são as condições em que o Brasil viveu a guerra. Qual o seu significado no nosso dia-a-dia, o impacto sobre o país e, enfim, como os brasileiros fizeram a Grande Guerra?

Este é, verdadeiramente, o objetivo de Sidney Garambone neste livro. Alguns pontos são, sem dúvida, absolutamente surpreendentes, originais e esclarecedores. Logo de saída a constatação da decadência do serviço diplomático brasileiro, envelhecido, desligado das questões mais prementes de um mundo já industrial e de massas, perpassado pelo desejo de fazer carreira, e envolvido numa prática discursiva bacharelesca, pela qual falar o francês sem sotaque era mais importante do que o conteúdo mesmo do discurso. Da mesma forma, a qualidade das informações de que dispunha o governo brasileiro, em vistas de estabelecer uma estratégia de longo prazo, mostrava-se pífia, senão equivocada. Sidney Garambone, em uma linguagem direta, firme e de fina ironia, consegue trilhar os rumos tomados pela política brasileira e das conseqüências daí decorrentes. A experiência do autor, de longa data no jornalismo palpitante, vivo e também ocupando-se de um campo onde os erros estratégicos são tratados com a mesma fina ironia, permitiu que a análise das fontes principais usadas no trabalho ? os jornais ? leve o leitor para além da aparência, do evidente e do repetitivo. Sidney Garambone cruza, pela primeira vez, a linha vermelha que separa o Brasil da História do Brasil na Grande Guerra.

(*) Professor-titular de História Moderna Contemporânea da UFRJ