DIPLOMA EM XEQUE
Jacques Mick (*)
É impressionante a resistência do mercado em reconhecer a legitimidade do Jornalismo como disciplina que exige, e precisa de, reflexão acadêmica. Tal resistência repousa nas entrelinhas de muitos dos textos publicados na última edição do Observatório, e creio que é mais relevante que a discussão sobre a exigência ou não do diploma. Consigo compreender que a ANJ celebre a não-obrigatoriedade de diploma. Mas me parecem de uma estreiteza absurda as condenações reiteradas, por empresários ou empiristas, do trabalho que os cursos de Jornalismo devem fazer.
Preconceitos e estultices emergem de debates acalorados como este, em torno do diploma. Para adotar como objeto de crítica um texto que coleciona lugares comuns, vamos ao editorial do Mino Carta. "Jornalismo não é ciência, na melhor das hipóteses pode ser arte", foi a primeira frase do dono da revista. É só retórica. Mas, no fundo dela, e no restante daquele texto, e em inúmeros outros de profissionais que se orgulham de seu empirismo, há muita frase feita a incomodar.
Jornalista pluque-use
Ninguém acredita mais que jornalismo seja ciência ou possa ser um herdeiro dos métodos científicos do positivismo. Nem por isso o jornalismo perde legitimidade como forma social de conhecimento. Porque não é ciência, o jornalismo não deveria ser objeto da investigação acadêmica? Direito é ciência? Ciência Política é ciência? Felizmente, nem todo conhecimento socialmente relevante tem de ser científico. E o que vem a ser arte para o editor-chefe? Decerto, um conceito generoso, que permite comparar José Louzeiro e Machado de Assis, Gay Talese e William Faulkner, Robert Fisk e William Shakespeare. Será arte uma coleção de rancores (e mal disfarçada inveja) reunida num roman-à-clef?
Jornalismo, diz o editor, "depende do talento inato de quem o pratica, da qualidade das suas leituras". Uma ilusão, uma meia-verdade. Bom jornalista não nasce feito: no mínimo, tem de passar pela "escola das redações", como defenderiam os empiristas, para aprender (geralmente mal) uma parte do ofício. Há jornalistas renomados que já escreveram mais livros do que leram em toda a vida. Ninguém duvida de que poderiam ser ainda melhores se acolhessem mais livros em sua memória, mas o fato (e Mino Carta diz adorar fatos) é que, nas redações, leitores são exceção.
"Jovens com talento para a escrita se tornam jornalistas num piscar de olhos na labuta das redações." E daí? Basta? É só o que um patrão sonha, um jornalista plugue-use? Limitar o jornalismo ao escrever como se fosse uma carta para a mãe é confundir o fenômeno com sua aparência ? um erro primário, sob qualquer prisma científico. O jornalismo acaba no texto. Começa no processo de produção, envolve linguagens específicas, depende da recepção do consumidor. Jornalismo é técnica, claro. Mas não é só técnica: é uma práxis, que exige reflexão teórica, lamentavelmente escassa. Uma escassez que deve ser atribuída, em parte, à miserável atitude dos empresários em relação à universidade.
Escola, vida ou redação
O preconceito contra a teoria, contra a reflexão a respeito das questões que compõem de fato a natureza do jornalismo, engessa as possibilidades de evolução das empresas. O que seria da indústria brasileira se não tivesse firmado programas de cooperação com os raros centros de excelência em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia no país? Esse tipo de relacionamento, básico, voltado à pesquisa aplicada, inexiste entre escolas de Jornalismo e o mercado. (Isso se deve, em parte, ao isolamento das universidades públicas, até pouco tempo as principais bases para a reflexão sobre o jornalismo no país). Fora os grupos que são donos de institutos, que empresas dispõem de pesquisas empíricas sobre a recepção de seus produtos jornalísticos? Levantamentos voltados ao departamento comercial, com insuficiências metodológicas não raro gritantes, não bastam para responder às questões que precisam intrigar uma redação.
Essa atitude cria um falso abismo entre a universidade e o mercado. Ajuda a estigmatizar professores que resolvem se dedicar apenas à academia. Reforça o auto-engano daqueles que consideram que o saber é commodity de quem está no mercado. Pode-se atribuir esse tipo de recalque à vaidade dos autodidatas, dos que têm orgulho "de nunca terem pisado numa escola", de terem "aprendido com os mestres da redação".
"A melhor escola é o próprio jornal", diz o editorial. Não: a melhor escola é uma boa escola; o jornal é espaço de dominação, de enquadramento, de um tipo de aprendizagem em muito diferente da academia, certamente não a única possível (nem a mais desejável). É como dizer: a melhor escola é a vida. E qual seria o lugar da escola? Conheço analfabetos com muito mais dignidade que doutores-presidentes; daí a negar a relevância da escola é render-se a silogismos, à simplificação rasteira, típica de matérias de jornal. A qualidade de poucas escolas passa a ser medida a partir da miséria das demais. Ignora-se que centros de excelência são construídos a partir de relações sólidas com o mercado. Melhorar a qualidade dos cursos não depende apenas das universidades.
Ao sabor das frases feitas
"(…) Em inúmeros pontos do mapa nativo, o diploma se torna anteparo à vontade dos coronéis do pedaço, que em lugar de diplomados prefeririam colocar apaniguados." O dono da revista deve ter incluído São Paulo nos inúmeros pontos. A lei do diploma, convenhamos, nunca foi suficiente para impedir empresários de contratar quem quisessem; de encher as páginas com textos escritos por consultores, juristas, ex-ministros, gente com talento nato para escrever boas cartas para a mãe. (Que fique claro: não estou falando de colunistas).
A mídia resiste a qualquer crítica, venha de onde vier (especialmente, se o onde for uma escola de Jornalismo). O limite da tolerância está em artigos nos jornais de domingo, escritos pelos especialistas do momento, criticando o conteúdo dos outros. Quem pensa, na universidade, acaba falando sozinho. Os novos livros de teoria do jornalismo são recebidos pelos jornais com resenhas meramente laudatórias ou entrevistas com os autores (não raro, um modo de falar sozinho).
Há inconsistências recorrentes, perguntas nunca respondidas porque nunca pesquisadas a sério. Quais as exigências do consumidor de informação? Como se complementam as informações obtidas em diversas mídias? Quais as variações admissíveis na linguagem dos veículos ou cadernos segmentados? Que impactos trará a convergência digital? As respostas das empresas e dos empiristas surgem apenas em tempos de crise, ou quando já é tarde demais. A teoria tem métodos para encontrar as respostas e identificar as tendências; isso não se aprende na redação.
O fato é que jornalistas costumam desprezar a teoria. Qualquer teoria. Enquanto isso perdurar, a qualidade do debate sobre a natureza da profissão e as particularidades de seu exercício seguirá ao sabor das frases feitas.
(*) Jornalista, doutorando em Sociologia Política (UFSC); Tem agência de comunicação em Florianópolis e dá aulas no Ielusc, em Joinville, SC
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