PENSAMENTO & LINGUAGEM
Deonísio da Silva (*)
A diferença entre o jornalismo e a literatura é que o jornalismo é ilegível e a literatura não é lida. Oscar Wilde
Claudio de Moura Castro deu contribuição decisiva para o aprimoramento do ensino em nosso país. Seu nome é boa referência nos processos de avaliação do ensino superior, por exemplo.
Assim, foi com surpresa que li o que li em "A (falsa) crise do vestibular", publicado em Veja (n? 1738, 13/2/02, pág. 15), onde encontrei frases como estas: "A redação no vestibular não muda nada". "Isso ocorre também nas federais. Se houver mais de nove vagas e só nove candidatos, aprovam-se os nove, mesmo que não saibam nada. Igualzinho à Estácio de Sá." "O incidente do analfabeto no vestibular da Estácio de Sá virou munição para acertos de conta."
Não integro a horda dos arrogantes que só sabem ensinar. Quem sabe ensinar, deve saber também aprender. Assim, se tiver entendido mal o artigo, rogo-lhe que volte ao tema. Esta foi, aliás, a segunda decepção que tive com um autor cujos textos leio com atenção, sobretudo porque são muito bem escritos. Na composição dos palestrantes da 9? Jornada de Literatura de Passo Fundo, ano passado, estive entre os que propuseram, como um dos coordenadores, por solicitação da professora doutora Tania Rösing, o nome de Claudio de Moura e Castro para uma das palestras. E não saí satisfeito.
No artigo de Veja, o articulista (designação mais do que apropriada para a opção generalizada de nossa imprensa por artigos pequenos, vale dizer, artículos) quer convencer o leitor de que se um jumentinho qualquer inscrever-se no vestibular, levantar a patinha e aleatoriamente marcar uma das respostas sugeridas (do tipo a, b, c, d, nenhuma das anteriores), passará em qualquer vestibular.
Nos vestibulares que exigem redação, esse tipo de candidato não passa, não. É uma pena que na ânsia de igualar as universidades públicas e privadas, o articulista sobrevoe sem menção alguma a terceira via, as universidades pertencentes a ordens religiosas e outras formas comunitárias de manutenção. As PUCs são bem diferentes das universidades federais, estaduais e municipais. Discrepam ainda mais de estabelecimentos universitários como a Estácio de Sá. O mesmo se pode dizer de universidades como a Unimep, a Unip e outras. Todas elas estão longe de ter entre seus objetivos vender diplomas de acordo com a lei da oferta e da procura no mercado. Também nos colégios o processo é diferente. Há colégios de alto nível atuando na iniciativa privada com padrões de boa qualidade, compensando o abandono da escola pública pelos sucessivos governos nos últimos qüinqüênios.
Nesses colégios, a exigência da redação no vestibular obrigou-os a dar mais atenção ao ensino da língua portuguesa, esmerando-se sobretudo no ensino da produção do texto. Passaram a aferir as redações dos alunos, menos por acertos lexicais, e mais por indicadores como escolha adequada dos temas, coesão textual e outros que não vêm ao caso comentar.
Lutar com palavras
Assim, não é verdade que "passam todos os que fazem a prova, pois é praticamente impossível não acertar alguma questão". Não passam, não. Se houver redação, ainda que o candidato saiba "alinhavar palavras em carreirinha", como disse a mãe de um deles, comentando o desempenho do filho, se o pimpolho fugir ao tema receberá zero e será eliminado da concorrência. Se costurar um monte de bobagens, na tentativa de enganar o examinador, também o será, ainda que grafe todas as palavras corretamente e não cometa um único erro de regência que, segundo célebre humorista, alguns examinandos pensam que foi abolida com a proclamação da República.
"Considerando que nas federais praticamente não há níveis mínimos para entrar no ensino superior, será que o Estado deveria criá-los para as privadas?" O articulista sabe que os níveis mínimos não estão lá essas coisas em todas as federais, mas eles existem. Também nas estaduais, nas religiosas e nas comunitárias.
Ilustremos com um exemplo. A quem o articulista contrataria, sem muitas delongas para escolha, se precisasse com urgência de um advogado, de um médico, de um dentista ou de um engenheiro de materiais, e sua escolha estivesse entre profissionais formados no Largo São Francisco, na Faculdade de Medicina da USP, na Faculdade Odontologia da Unesp e na UFSCar, e outros, com iguais diplomas, mas formados por instituições semelhantes à Estácio de Sá?
Tanto é verdade que há diplomas e diplomas, que a própria OAB submete bacharéis em direito a um exame da Ordem antes de que recebam licença para matar o direito e, claro, sobretudo a língua portuguesa em suas petições. Se a redação no vestibular e exames adicionais ainda não impedem as aberrações que proliferam, imaginemos o que seria da clientela se as porteiras estivessem abertas na entrada e na saída de todas as universidades. Seria o caos!
Há outro ponto decisivo a favor da redação no vestibular. A tarefa de aprender a ouvir é essencial para aprender a falar. Por homologia, sabemos que para aprender a escrever é indispensável aprender a ler. Chutatis chutandi, a dieta de leitura é decisiva no ato de aprender a escrever. A exigência da redação no vestibular aperfeiçoou a indicação de autores e livros no primeiro e segundo graus. Estamos longe do êxito neste particular, mas se abolirmos a redação e as respostas discursivas, desceremos mais um patamar de qualidade e em breve alcançaremos a jumentalização do ensino.
Não é à toa que já há alunos orneando para professores, dando coices uns nos outros e às vezes também nos mestres. Nos casos mais graves, estão também atirando. Porque já não aceitam a palavra "não". Ninguém lhes pode dizer não. Ora, se ninguém disser na família, na escola e na universidade, a polícia ou outra força informalmente armada dirá com um revólver na mão.
Em resumo, a redação, ao ensinar a escrever, ensina a pensar. E entre várias vantagens, atesta que, discordando do outro, o aluno pode argumentar, abdicando da violência. Pois quando ele a comete, quem vai soltá-lo da carceragem não deve ser outro bandido, mas um advogado que lute com palavras.
Ou, como escreveu Drummond: "lutar com palavras/ é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã".
Pois precisamos continuar a luta com palavras e ensinar outros a fazerem o mesmo. A sobrevivência, especialmente a democrática, depende desses nossos atos. A redação antecede o voto em importância e em arma para o cidadão. Não sabendo pedir, nosso povo pede a metade. E os políticos, quando muito, dão-lhe a metade do que ele pediu. Assim, jamais passaremos dos 25%. E demoraremos ainda mais para substituir o verbo pedir pelo verbo exigir, e o favor pelo direito. Nenhuma verba resolverá este impasse. No princípio era o verbo; no meio e no fim também será.
(*) Escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são De Onde Vêm as Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo