Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para que serve um jornalista?

O absurdo não se faz compreender pelo discurso jurídico, que é um discurso racional construído a partir de premissas não-problemáticas. Não se pode num discurso desse tipo formular perguntas como – se vale a pena apostar nas liberdades públicas; por que um de nós que quebra o pacto de sociedade merece algum tipo de sanção; por que o nome deste que merece algum tipo de sanção pode ou deve ser conhecido pelo público, para que a gente querendo o exclua de nossas relações pessoais, e assim por diante. Quando o discurso jurídico precisa formular como problema aquilo que é premissa não-problemática de seu raciocínio estamos diante do absurdo.

Quando o absurdo quer tornar-se lei a sociedade acolhe o autoritarismo ou recebe a tentativa no tom da comédia. Virou comédia a tentativa, ao fim de império de Fernando Henrique Cardoso, de intimidar a sociedade para que não levasse notícias inconvenientes à porta de um juiz, com a Medida Provisória nº 2088-35, de 27/12/2000, que criava a indenização prefixada em 151 mil reais contra o autor de ação de improbidade que não fosse bem-sucedida. Fábio Konder Comparato a descreveu como uma ‘espécie de lei punitiva às avessas’ que equipara acusadores a acusados, signo da:

‘Pior corrupção de um país [que] não advém da desonestidade pecuniária dos governantes, mas do desbaratamento, por eles provocado, dos mecanismos constitucionais de garantia da soberania popular e dos direitos humanos’. (Fabio Konder Comparato, ‘A ‘Questão Política’ nas Medidas Provisórias: um estudo de caso’, em Boletim dos Procuradores da República, ano III, nº 36, abril/2001; pág. 9)

Ainda que agora seja apenas história, o fato é que a falácia da proposta legislativa absurda tinha e tem adeptos no poder e na própria imprensa. Sem querer, começamos a dizer em público que alguém obteve direito a ser indenizado depois de ter sido ‘inocentado’ em certo processo (veja-se que o termo ‘inocentado’ não é o mesmo que ‘inocente’, e não se trata de mera sutileza de linguagem), de modo que compramos sub-repticiamente a idéia falsa de que a publicidade de uma acusação é lícita sob condição de posteriormente o acusado não ser absolvido. O primeiro assombro é que aquele que comete tal ato ilícito não pode saber que o cometia, pois precisa depender do resultado do processo para saber que andou em falta. A falácia evidencia-se em sua própria linguagem, pois nesse ‘ter sido inocentado’ sempre cabe mais do que a verdadeira inocência. Se o processo for criminal deviam dizer-nos sempre que existem diversos tipos de absolvição, e raramente se aplica aquele tipo de absolvição que pronuncia sem sombra de dúvidas a inocência do acusado.

Em geral a absolvição é por ausência de provas hábeis para condenação, mas existem vários outros acidentes de percurso numa demanda. Por vezes será aquela testemunha outrora tão valente que preferiu o cargo em comissão à verdade, ou será a prescrição que opera o esquecimento jurídico, ainda que de fato ninguém tenha esquecido a ofensa tão rapidamente, ou será – enfim – um mau juízo absolutório, pois erro judiciário em favor do réu existe demais, e ainda poderíamos falar que há tribunais aos quais nem prova mais cabal convencerá, porque não querem ser convencidos de determinados fatos inconvenientes.

Há que se reafirmar ainda o óbvio, que o fato de alguém ser processado e ter sido absolutamente inocente não induz necessariamente à conclusão de que a acusação tenha sido caluniosa, e por isso não induz à conclusão de que a notícia dessa acusação tenha sido difamatória e passível de perdas e danos morais.

‘Lavar’ a culpa

Em essência o ideal da medida provisória do ricochete de 151 mil reais é a utopia de um Estado autoritário que consente com certas liberdades desde que sejam exercidas em relação àqueles que o poder libera para serem objeto dessas liberdades. A lei dirá que o povo tem direito a questionar irregularidades administrativas dos governantes, mas o povo não pode exagerar e sair escolhendo todo e qualquer ato de todo e qualquer governante. Aqui toda ação que o poder julgasse improcedente se converteria automaticamente em reconvenção, ou dito de modo mais simples, teria o condão de ricochetear e voltar-se contra o ousado autor da ação, para que seja exemplarmente castigado.

O direito de ação civil de improbidade ou mesmo de ação popular torna-se um direito de papel, porque o poder cria uma condição impossível para o exercício dessa ação: que seja sabido de antemão pelo autor que o juiz vai condenar o réu, e se o juiz o condenar os tribunais vão manter a condenação. Ajuizar tais ações seria como apostar na sorte e só apostaria na sorte quem fosse absolutamente irresponsável. A medida legislativa que supostamente daria causa a incremento de responsabilidade no ajuizamento de uma ação desse tipo tem o condão de produzir seu exato contrário, pois quem é sério não joga com a sorte. Uma lei desse tipo dá forma legal à instituição autoritária do ‘bode expiatório’.

Se todos cometemos pequenos e grandes pecados, aquele que o poder já não pode salvar poderá ser objeto de ação, e de preferência deverá ser objeto de punição exemplar e terá sua intimidade livremente abusada pela imprensa falada e escrita, de preferência de modo espetacular, porque precisa ‘lavar’ a culpa dos demais. Se o réu não for desse tipo ele será protegido pelo ricochete, e quem ousou desafiar o poder será punido exemplarmente porque é um rebelde e desobediente ou alguém que não leu direito nos sinais de fumaça dos tribunais qual seria o alvo certo de sua liberdade consentida.

II

Quem enfrenta o absurdo precisa reformular como problemas as bases não-problemáticas de um moderno pacto de sociedade e vida em comum, porque o absurdo subverte todos os valores falando em nome deles, principalmente com a arma da pergunta retórica cuja resposta parece auto-evidente. Uma dessas perguntas é a que está na base da falácia da medida provisória dos 151 mil reais: ‘então você acha justo que uma pessoa inocentada pelo poder que tem competência para julgá-la possa ter sido impunemente execrada pelos meios de comunicação de massa como se fosse um bandido?’

A pergunta é retórica porque a resposta já foi formulada nela mesma. E é por isso que essa retórica aparentemente liberal entra em contradição consigo mesma. No extremo, só poderíamos tomar conhecimento de faltas praticadas depois de passar em julgado a condenação. Que todas as absolvições seriam sigilosas é uma decorrência dessa lógica, que conduziria a um Estado sem liberdade pública alguma. Para fugir a essa poderosa retórica, precisamos recolocar cada coisa em seu lugar, saber de cada uma qual é sua natureza, seu fim, seu limite, sua forma ideal ou sua perversão.

Juízos públicos sobre atos errados de nossos semelhantes são do interesse comum e por isso objeto (como direito e dever) de interesse da imprensa. A imprensa inequivocamente veicula juízos morais, mesmo quando pretenda isentar-se de opiniões, pois o simples fato de revelar um ato errado de nosso semelhante já é uma sanção social, o que leva alguns a imaginar que os juízos passados pela imprensa dependem dos juízos definitivos da justiça para serem legítimos.

Existe de fato uma relação entre as duas instâncias. A justiça controla (punindo os infratores) o abuso de direito, ao passo que a imprensa controla (revelando suas razões) os abusos de justiça. Ambas são o que Agnes Heller denomina em sua Ética Geral de ‘autoridades sociais’, porque são pessoas ou instituições habilitadas a emitir juízos que envolvam sanções sociais. Toda sanção legalmente determinada é um juízo moral sobre o certo e o errado, mas nem todo juízo moral envolve sanções legalmente estabelecidas. Não há em essência diferença entre juízos morais e legais, mas algumas sanções são ‘privativas’ de determinadas pessoas ou instituições:

‘As leis prescrevem determinadas sanções que jamais podem ser implementadas por outras autoridades que não as legalmente habilitadas. As leis, porém, não podem impedir-nos de emitir juízos. Nesse sentido, a opinião pública tem direito a pronunciar que ‘A’, condenado pela lei, é inocente, ou que ‘B’, absolvido pelo tribunal (pela lei) é culpado. Mas o público certamente não está legitimado a libertar o primeiro nem a prender o último’. (Agnes Heller, General Ethics. Oxford: Blackwell, 1988. p. 115)

O fato de que autoridades institucionais apliquem determinadas sanções de modo privativo não exclui a possibilidade de que outras sanções sociais sejam livremente estabelecidas, sob sua própria responsabilidade, por outras autoridades sociais. A imprensa é veículo de autoridade social, pelo menos em seu sentido ideal, numa sociedade moderna e democrática, porque oferece ao conhecimento público fatos e condutas socialmente repreensíveis que sempre interessam a todos.

Numa sociedade moderna e democrática o direito de informar está dissociado do que a justiça irá resolver a respeito do fato. A imprensa noticia, em seu próprio direito e sob sua autoridade, a ocorrência de má conduta dos cidadãos e essa notícia constitui crítica social. O que confere autoridade à crítica social é a validade intrínseca do juízo e não a ‘posição’ institucional de seu emitente, como ocorre nos juízos institucionais, onde a autoridade está definida de modo hierárquico.

Também não se deve conceber a informação passada pela imprensa – que é um fim em si – como um ‘instrumento auxiliar’ das autoridades instituídas para que façam justiça. Daí parecerem suspeitas as ditas ‘parcerias’ de jornalistas com policiais, com promotores de justiça ou procuradores, para fazer da publicidade um instrumento de justiça social – a condenação moral daqueles que o sistema judicial é incapaz de atingir. Tais atitudes criam aquele universo eticamente suspeito do ‘jornalismo fiteiro’ denunciado nesse Observatório da Imprensa.

Perdas e danos

Quando algum de nós é processado por algum motivo que possa ser de interesse público (motivos de família e outros que têm sigilo resguardado excluídos) não é o fato pelo qual nos processam que será o fato primário informado pelo jornalista, mas o segundo fato, ou seja, a própria existência do processo é o fato a noticiar e quem descreve a existência desse processo evidentemente cumpre a sua tarefa jornalística e não precisaria (normalmente) temer pela absolvição do acusado para imaginar que pagará perdas e danos.

Quando o processo termina, se o réu for condenado sua condenação será para a imprensa outro fato, assim como sua absolvição será também um fato novo. Tanto é lícito à imprensa noticiar novamente o fato pelo qual o réu foi absolvido quanto criticar, querendo, por ser autoridade social habilitada a isso, o próprio ‘fato novo’ da absolvição como um erro judicial. Agora, se em seguida ao erro judicial da absolvição decorre outro, de condenação de quem supostamente não podia ter ‘noticiado’ a existência do processo antes de transitada em julgado a decisão judicial, aí já estamos perto do absurdo. O absurdo é sempre paradigmático e em geral subverte a natureza, fazendo do que é excepcional regra e da regra, exceção.

É excepcional, por exemplo, a hipótese mais do que rara de um verdadeiro complô entre a parte acusadora (denunciador calunioso) e o repórter (que sabia da calúnia). Mas o absurdo dificilmente é desafiado por um discurso jurídico e será melhor tomá-lo como um fato social e político. É de um caso absurdo e paradigmático que faz da regra exceção, do normal ilícito, que nos ocupamos.

O objetivo inequívoco da condenação, aqui, não é restabelecer justiça, mas criar um fato político novo, de intimidação. Não obstante o silêncio, aparentemente imposto, é evidente que continua sendo lícito divulgar a notícia que rendeu a um jornalista condenação judicial por perdas e danos, até porque esse fato é também notícia, e a notícia precisa ser completa, em especial se tem também por objetivo discutir a validade intrínseca dessa condenação. Feita a ressalva de que seria absolutamente lícito contar aqui o fato com todas as suas circunstâncias e os nomes reais dos envolvidos, será por força de estilo ou talvez imposição do próprio absurdo do assunto que nossa opção cairá sobre a ficção, e não sobre o real.

III

Pouco depois de eleito e pouco antes do seu impeachment, no final de 1992, o primeiro presidente escolhido diretamente pelo povo ao fim da ditadura iniciada em 1964 no Brasil nomeou um cidadão para um cargo de certa hierarquia em certo tribunal da República. Vamos chamar a este cidadão Numa Pompílio de Castro, personagem de Lima Barreto na ‘grande política’ do início do século 20 e que é o retrato do parvenu por excelência.

Sua biografia ‘não tinha história nem interessante nem longa. Filho de um pequeno empregado de um hospital no Norte, fizera-se bacharel em Direito, à custa das maiores privações’. ‘Aos poucos, com aquele faro de adivinhar onde estava o vencedor – qualidade que lhe vinha não de uma sagacidade natural e própria, mas de uma ausência total de emoção, de imaginação e orgulho inteligente – foi subindo até juiz de Direito. Durante toda a sua passagem pela magistratura, Numa adquirira fama de talento. Fundava jornais onde escrevia panegíricos aos chefes, organizava bandas de música e animava representações teatrais (…) Fazendo de sua vara de juiz alfange de emir obediente aos desígnios de Neves Cogominho, não estranharam que, eleito este presidente do Estado, Numa fosse feito chefe de polícia’.

Conhecido por sua ‘sua influência, o seu atrevimento, o seu despudor em fazer do seu cargo judicial instrumento das ambições políticas do partido e de opressão para os adversários’, Numa Pompílio assim jurisdicionava:

‘O processo da ‘Boa Vista’ indicava bem a alma do seu chefe de polícia. Flores, o Coronel, por uma questão de gado, invadiu certa vez a estância do rival, matando-lhe filhas, filhos e criados e deixando que a horda que o acompanhava saqueasse casas, moinhos, currais e estrebaria. Até portas trouxeram.

Devido à celeuma que o caso levantou no Rio, houve processo e Numa, apesar das testemunhas, apesar de todas as provas, despronunciou Flores e seus sequazes.

Como esta, eram muitas as causas em que o juiz se fizera criatura do caudilho.’ (Lima Barreto, Numa e a Ninfa).

Imaginemos agora que Numa Pompílio se faz presidente de um tribunal em 1992 e determina como a medida mais relevante de sua gestão a confecção de carteiras funcionais novas com o tipo sangüíneo dos servidores. Todos os exames de sangue do corpo funcional do tribunal seriam realizados por um laboratório contratado sem a habitual licitação, e que por coincidência teria em seu quadro societário um nome de certa forma ligado ao presidente da República. Estando então a democracia em terras nacionais mais nutrida de liberdades, Numa Pompílio é alvo de uma ação popular que descreve todas as aparentes irregularidades e nepotismos.

Uma jornalista noticia o fato, relatando objetivamente ter sido ajuizado um processo contra Numa Pompílio por tais e tais alegações de irregularidades administrativas. Prudente e responsável, a jornalista verifica as fontes, assegura-se de que o processo existe, que os autores existem, entrevista-os e eles confirmam suas alegações, e a parte contrária, procurada para falar a respeito, não é localizada etc. Segue o manual de redação em todos os pormenores, não procura enfeitar a notícia, que aliás não conta com um único ‘adjetivo’ pejorativo a qualificar a autoridade judicial processada e informa que o juiz federal de primeira instância recebeu a petição inicial e suspendeu todos os atos do referido magistrado (por analogia cf. a matéria ‘Juiz suspende decisões do presidente do TRT’, no Jornal do Brasil, de 24/7/1993; veja remissão abaixo).

Não obstante o serviço da repórter ser absolutamente normal, 11 anos depois lemos num informativo jurídico que Numa Pompílio de Castro…

‘Inocentado de todas as acusações, reclamou danos morais na Justiça, pedindo a condenação solidária do editor, da jornalista e da juíza entrevistada. Fixou a indenização em cem vezes a remuneração que recebia como presidente da Corte, mais 20% de honorários advocatícios, além da publicação na íntegra da sentença transitada em julgado. Ao decidir sobre o caso, o ministro (…), relator do processo, entendeu que o editor pode contribuir para o dano da honra de alguém, tendo o papel fundamental de evitar o tratamento fragmentário, incompleto, injurioso ou difamatório da matéria, que vai do conhecimento da notícia até sua publicação’. [Para a analogia com nossa realidade ver Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), edição de 30/9/2004].

Num país em que as leis não ‘pegam’, medida provisória revogada pega, e aí está a dos 151 mil reais em sua glória póstuma. A primeira reação de perplexidade atinge quem não devia, e critica o Superior Tribunal de Justiça que se limitou a decidir por critérios razoáveis que – se algum dano devia ser reparado, cujo mérito não lhe competia decidir – não haveria por que excluir de responsabilidade o editor, que também é responsável na ordem hierárquica de produção da notícia, ordem que começa no repórter e termina no dono do jornal.

Por paradoxal que pareça, a decisão condenatória que transitou em julgado é absurda mas a decisão do tribunal superior (que não a podia modificar no aspecto de mérito que estivesse ligado a fatos ou provas) não é absurda. Não há nada de censurável no julgamento do STJ se for compreendida a limitação da matéria jurídica que ele aprecia, e pode-se até afirmar que o voto vencido não é tão progressista quanto parece, porque o jornalista empregado evidentemente nunca foi ‘o dono da notícia’ e não é o único responsável na instância civil, ao contrário da criminal. O absurdo está na condenação em si, que apreciou o fato (notícia do Jornal do Brasil de 24/7/1993) para concluir pela condenação de perdas e danos morais em favor do nosso Numa Pompílio de Castro.

Mas aqui retornamos àquela intuição de que já não é possível falar dessa condenação em linguagem jurídica. O absurdo não tolera um discurso racional nem mesmo para ser descrito. Teremos de tomá-lo como um fato político, decifrar as razões políticas desse proceder, que é socialmente equivalente a uma intimidação paradigmática, signo da desejada transformação do estado democrático em estado de liberdade consentida. É preciso formular, então, perguntas essenciais, quase infantis.

IV

‘Me diga papai, para que serve a história?’ – é a pergunta infantil com a qual o historiador Marc Bloch começa suas notas para um livro sobre o seu ofício, escrito no fronte de guerra e publicado postumamente, uma vez que o autor, tendo-se reunido à Resistência francesa em 1942, foi capturado e executado pelos alemães. (Marc Bloch, The Historian’s Craft, tradução de Peter Putram. New York: Vintage, 1953).

A pergunta pueril é sempre bom início de reflexão, porque em geral não sabemos bem o que responder. Ocorre-me essa pergunta pueril para seguir refletindo sobre esse caso de condenação da jornalista que descreveu sucintamente o processo a que respondeu Numa Pompílio de Castro. A analogia é legítima porque sugere que na anormalidade não se consegue trabalhar e seguir uma rotina, então é hora de parar para pensar sobre quem a gente é e para que serve.

A pergunta infantil formulada socialmente traduz um estado de perplexidade, diante de um fato inacreditável. Quem quer que leia a notícia ‘Juiz suspende decisões do presidente do TRT’, do Jornal do Brasil de 24/7/1993 (remissão abaixo), e conclua que a partir dela não existe como condenar em perdas e danos a jornalista e a juíza entrevistada, autora da ação popular que questionava atos questionáveis de Numa Pompilio (não precisa ser jurista para essa conclusão, que é de bom senso), olhará incrédulo para a sentença condenatória e imaginará o engasgo dos condenados ao se fazerem tais perguntas infantis como ‘para que serve um jornalista?’, ‘para que serve um juiz?’.

No estado de perplexidade nossa resposta mais autêntica é dizer ‘não sei’, ou ‘não sei mais’…Tudo que eu sabia e era sólido se desmanchou no ar da restauração antidemocrática que privilegia como ‘ordem natural das coisas’ a idéia de que alguns dentre nós possuem imunidades para fazerem o que bem quiserem sem que nós possamos sequer tomar conhecimento. Os que respondem naturalmente conforme sua experiência normalmente nos apresentarão a realidade e o ceticismo desse mundo cão. O jornal é uma empresa, hierárquica, concorre num mercado a cada dia mais monopolista etc., ao passo que outros permanecem na sublime idéia de imprensa, sem um chão de realidade. A identidade talvez não seja um extremo nem outro, mas algo entre eles, porque a gente não é só o que é na vida cotidiana, mas também um pouco daquilo que a gente quer ser.

Talvez fosse melhor voltar um pouco aos antigos e falar do tipo ideal e sua perversão, como Aristóteles na Política. Todo jornalista será algo entre o que existe e seu ideal. Se o ideal for um ideal razoável e factível (não muito alienado ou de uso meramente ideológico) ele sempre servirá como metro de valor do existente. Só por ser vítima de intimidação social, como cremos que seja a verdadeira essência da condenação judicial de que se cuida aqui, já se poderia considerar que o jornalista é artífice de um produto cuja consistência, coerência, verdade e responsabilidade são socialmente relevantes para que possamos qualificar a quantas anda nossa democracia e sua ausência.

Embora vá ocupar mais espaço do que o devido, peço licença para apresentar o tema da identidade política do jornalista à luz de conceitos desenvolvidos por Hannah Arendt, como os conceitos existenciais de pária e parvenu e os conceitos políticos de autoridade e poder.

V

Hannah Arendt desenvolveu a análise do totalitarismo a partir da exceção e não da regra. A exceção é o pária, a regra o cidadão. Os dilemas da política formulam a necessidade de que todo pária seja um cidadão. Agora, há diversos níveis de cidadania, pois algumas condições de exclusão são social e não politicamente determinadas. A palavra inclusão, além do plano político, sempre será problemática, porque a igualdade social não apenas é impossível como também fomenta ressentimentos, e por vezes transforma o preconceito em ódio social.

O conceito existencial do pária – e seu oposto de parvenu – foi o centro de interesse de Hannah Arendt ao escrever a biografia, iniciada na Alemanha e concluída por volta de 1933, de Rahel Varnhagen, uma mulher judia. Os conceitos de pária e parvenu formam o universo dentro do qual se desenrola a trágica questão da assimilação judaica na Europa Central no século 19, pré-história do totalitarismo em sua feição nazista. Arendt certa vez disse que apenas o pária é humano, em correspondência a Karl Jaspers. Mas em realidade o ‘pária’ como conceito é uma caricatura, assim como uma caricatura é o parvenu, porque todas as pessoas reais situam-se entre esses extremos. A humanidade de Rahel Varnhagen, conclui Arendt, estava em ter sido uma ‘rebelde’ e o que caracteriza um rebelde é o fato de ter-se mantido pária em sua condição de parvenu, o fato de não ter podido pagar completamente o bilhete de ‘ingresso’ na sociedade, quando a exigência implicava uma anulação do centro de sua personalidade.

Mais tarde, no capítulo do anti-semitismo das Origens do Totalitarismo, Arendt retoma esses conceitos para explicar como surgiu a caricatura do ‘judeu em geral’ da literatura anti-semita. De um lado os partidários da dissimilação formulavam o mito dos profetas, eternos promotores de justiça na terra, que compartilham dos ‘atributos que são em realidade privilégios dos párias, e que certos judeus vivendo à margem da sociedade de fato possuíam – humanidade, bondade, ausência de preconceito, sensibilidade em relação à injustiça’ (Hannah Arendt. The Origins of Totalitarianism. Harcourt Brace & Jovanovich, p. 66).

Por viverem à margem da grande sociedade, alguns judeus podiam por isso mesmo viver numa sociedade utópica sem preconceitos, sem barreiras, onde privilégios de nascimento não representavam nada, como ocorria principalmente no salón romântico da Berlim do século 19, que era o universo de Rahel Varnhagen, onde o judeu era socialmente admitido, mas como um judeu de exceção. O outro lado da exceção socialmente admitida era o parvenu por excelência, o ‘judeu da corte’, financiador de despesas e negócios de Estado. Mas todos confrontam-se com o conflito de viver permanentemente com o ‘remorso do pária por não se ter tornado um parvenu e com a má-consciência do parvenu por ter de trair seu povo e negociar direitos iguais em troca de privilégios pessoais’. O judeu do anti-semita, mito de poder, foi construído sobre a caricatura do parvenu, que ascende socialmente sobre as qualidades de desumanidade, ambição, insolência, servilismo, e determinação para sempre ir em frente (idem, p. 66).

O problema da assimilação/dissimilação dos judeus foi um caso trágico e especial, mas os dilemas que apresenta são de todo corpo social e por isso as categorias existenciais de pária e parvenu permitem que compreendamos toda uma série de relações, desde a política até as relações privadas, inter-pessoais. Como afirma Arendt, ‘enquanto existirem povos e classes difamados, as qualidades pária e parvenu serão reproduzidas por todas as gerações com incomparável monotonia, na sociedade judaica ou em qualquer lugar’ (idem, p. 66).

Bilhete de ingresso

Em termos políticos, os conceitos existenciais estão de certo modo associados aos de autoridade e de poder. Autoridade é qualidade dos párias sociais, mesmo que possuam poder em virtude dela, porque a autoridade social não negocia seu eventual poder valendo-se de sua integridade como moeda de troca (ela sabe dizer não, obrigado, quando o serviço requisitado não é muito honrado).

O poder é um local típico de parvenus. Mesmo aqui os conceitos tomados em seus extremos são caricaturas, porque não existem instituições sociais em que se ausente o elemento de poder. O que assegura uma certa sanidade social é que os poderes não sejam completa e absolutamente dominados por parvenus, que ainda se cultive autoridade de algum modo dentro dos poderes. Como aqui se fala linguagem política e não moral, não faz muita diferença se os poderes vão ter que se render à autoridade de boa vontade ou forçados por circunstâncias exteriores (como a pressão da opinião pública, que cobra autoridade e com isso faz com que os poderes cultivem um certo grau de ‘prestígio’). Dito de outro modo, a única diferença entre agir de acordo com a regra de autoridade por impulso interno ou exterior é uma outra qualidade chamada ‘confiabilidade’. Aquele que cultiva autoridade e prestígio apenas por pressão exterior poderá deixar de fazê-lo assim que as circunstâncias exteriores deixem de exigir essa qualidade.

Recorrendo a duas formas espaciais para figurar a diferença entre poder e autoridade, com fundamento no ensaio clássico de Hannah Arendt sobre o conceito de autoridade, teremos que a autoridade normalmente se exerce na figura da pirâmide, em que cada degrau de autoridade deve obediência ao escalão superior e só pode agir dentro de sua alçada. Já o poder se exerce como na figura da cebola, em que o centro de poder está no interior e vai-se espalhando por diversas camadas para fora, até aparecer na casca, mas em seus efeitos, apenas, nunca se sabendo ao certo de onde proveio (Hannah Arendt. Between Past and Future – Eight Exercises in Political Thought. p. 99).

Enquanto a autoridade permite que o poder seja visível, na cebola o poder é invisível e no centro da cebola podem estar os mais diversos conteúdos – como poder econômico, poder político, relações de parentesco e outros. A administração de autoridade, normalmente, se exercerá com lealdade entre os diversos escalões de poder e formalidade no modo de agir, porque há transparência de atribuições e competências. O poder é sempre um pouco difuso na sua origem, mas sempre mais tirano em seus efeitos. O poder em estado bruto administra com competência um afeto social poderoso chamado ‘medo’ (e este não é aquele medo da inflação de Regina Duarte).

Existem instituições que têm por utopia serem autoridades sociais. A universidade é uma delas, no universo científico. No político, o Ministério Público brasileiro criado na Constituição de 1988 deveria ter mais autoridade do que poder, pois seria autoridade vigilante na guarda da Constituição diante dos abusos (sempre naturais) dos poderes. Certa vez, Dora Kramer referiu-se ao Ministério Público como o ‘quinto poder’ (‘Um basta ao quinto poder’, Jornal do Brasil, ‘Coisas da Política’, 24/7/2000), o que não era uma descrição da realidade. Essa caracterização falava linguagem mais ideológica do que descritiva. Mas não está assegurado por uma lei natural que isso não venha a acontecer, e que essa instituição se torne mais ‘poder’ do que autoridade, subvertendo a utopia constitucional de sua criação, até porque quanto mais nos distanciamos da lembrança libertadora que esteve no ar na chamada ‘transição democrática’, mais sedutor se mostra o poder, em especial às novas gerações que compartilham desse contemporâneo e assustador ‘fundamentalismo moral’, que no agir político é sempre poder em estado bruto e jamais pode ser autoridade.

Isso que chamamos de autoritarismo raramente é um sistema de autoridade, mas de concentração de poder bruto, e este é multiforme, mas sempre relacionado à sedução. São sempre minoria os que são relativamente infensos à sedução do poder. De certo modo, Dora Kramer acertou e errou. Acertou quando apontou para o perigo de o Ministério Público perder sua autoridade, errou quando pediu que o quinto poder fosse controlado pelos demais, porque se a tendência a tornar-se quinto poder se concretiza então já não há necessidade de controle, porque o poder com o poder se coordena e harmoniza.

Dentre as instituições, a Justiça é em geral o lugar por excelência dos parvenus. Aqui alguém retrucará que quem diz isso ‘não gosta do Judiciário’. Mas na observação política não há lugar para gosto ou desgosto, primeiro porque não se trata de escolher uma instituição que melhor se adapte às nossas inclinações pessoais, e segundo porque, como diz Agnes Heller em algum lugar que agora não localizo, ‘instituições nunca são amáveis, elas podem ser toleráveis ou intoleráveis’. Elas tornam-se intoleráveis quando se tornam lugares de sobrevivência de parvenus, onde alguém precisa obrigatoriamente pagar seu bilhete de ingresso ou permanência a partir de qualidades como desumanidade, ambição, insolência, servilismo, e determinação para sempre ir em frente a qualquer preço.

É uma evidência que existem juízes com autoridade e vocação para a prática da justiça sob o credo de Rui Barbosa: ‘Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade’ (Oração aos Moços). Mas é também evidente que comumente são párias em suas próprias casas, e ascendem aos cargos mais altos normalmente pelo critério da ‘antiguidade’.

VI

A utopia da imprensa é de uma instituição com autoridade social sempre maior do que seu poder. A imprensa que é só o ‘quarto poder’ é uma perversão desse ideal. O jornalista em seu ideal é um pária socialmente remunerado para garantia da existência de um espaço público que assegure nossa própria sanidade. A idéia assim formulada é evidentemente algo romântica, que lembra as idéias de que intelectuais são agentes flutuantes sem vínculos de classe ou casta, preconceitos ou carreiras que os impedissem de dizer as verdades, mas toda realidade pode ser um pouco de seu ideal.

Alguém dirá com razão que ideais não existem, que as pessoas reais são sempre algo ‘entre o pária e o parvenu’, e por isso a complexidade da vida real exige uma descrição mais rica do que simplesmente seu ideal. Lima Barreto caracterizou muito bem o debate entre os dois extremos no seu romance Isaías Caminha. Numa discussão entre amigos, surge um partidário da ‘grande imprensa de autoridade’ do Império quando outro lamenta a ‘subversão’ desse ideal em tempos republicanos. Na discussão entre os amigos Leiva e Plínio de Andrade, um descreve o ‘poder’, o outro, a autoridade:

(Plínio) – ‘Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda prova…..’

(Leiva) – Você exagera. (…) O jornal já prestou serviços.

– Decerto… não nego… mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses…’ (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, 6ª ed. São Paulo: Ática. 1995. pp. 80-81)

O jornal é descrito como essa ‘máquina’ onde autoridade não faz sentido, apenas o poder, o jornal é um ‘engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões. Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!’ (pág. 98).

Os grandes jornalistas do Império eram autoridades sociais, verdadeiros párias, a serviço da causa da humanidade, ao passo que as modernas empresas são esses pequenos reinos, em que o senhor diretor impera como senhor feudal:

‘No jornal o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não. (…) Não há repartição, casa de negócio em que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o repórter; o repórter, o revisor; este por sua vez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão. A separação é a mais nítida possível e o sentimento de superioridade, de uns para os outros, é palpável, perfeitamente palpável. O diretor é um deus inacessível, caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter Tonante, cujo menor gesto faz todo o jornal tremer. Para ciência dos povos, porém, aquilo é ‘uma tenda de trabalho onde mourejam irmãos’. (pág. 129)

O fato de a autoridade ser posta no plano pessoal não é falso nem antiquado, pois em geral autoridades ainda são pessoas e não instituições, mas instituições devem cultivar mais autoridade do que poder. Não existem instituições que sejam locais só de autoridade ou só de poder: em todas haverá uma mescla de ambas, ora pendendo mais para um lado, ora mais para outro.

Lima Barreto seria um mero caricaturista se a ‘realidade’ fosse apenas apresentada nesses dois extremos de autoridade (imperial) e declínio republicano. Desde que ele sempre radiografa o poder do ponto de vista dos párias sociais (do mulato, das mulheres) ele consegue estar atento aos ‘rebeldes’, ao que resta de humanidade nos parvenus e no poder, conseguindo por isso estar atento também às enganações. Por isso Lima Barreto apresenta um tipo novo e complexo de poder, que vem para ficar, embora na época apenas antecipe a essência política do caudilhismo, que é o poder que imita a autoridade, o parvenu que imita o pária. Apresenta o poder não para só descrevê-lo, mas para esvaziá-lo, destruí-lo, seja pelo riso seja pelo desprezo.

É assim que constrói a grandeza humana de um Ricardo Loberant, diretor do fictício O Globo do romance, cuja evolução está em começar como pária, tornar-se um parvenu e descobrir-se um rebelde, alguém que continua sendo um pária. É justo aqui que termina a história, porque ela é uma história esperançosa (apenas para Isaías já não havia tempo para viver nesse novo mundo, por isso ele se retira da ‘grande vida’, acolhe um emprego público de coletor de impostos e uma pacata vida interiorana).

Loberant surge no universo da imprensa tradicional como a novidade, aquele que inflamava as massas com a crítica aos governos, ao poder. Em seguida torna-se um parvenu, porque gosta do poder e passa a esconder as verdades, tornando-se um ‘apaniguado’. Mas esse universo simbolicamente ‘morre’ com o suicídio de Floc, e é significativo que esse acréscimo de poder seja representado em seu apogeu numa saturnália orgiástica na ‘casa de Rosalina’, na qual o pária Isaías Caminha não se sentia à vontade de participar, porque a todo instante sentia aquele remorso de participar de um prazer que instrumentaliza outro ser humano, fazendo-o partícipe da desgraça alheia.

É depois de ‘vexado’ nesse apogeu meio romano que Loberant descobre-se o rebelde que antes apenas imitava. É quando ele se torna amigo do contínuo mulato e faz de Isaías um repórter, companheiro de pândegas e da grande vida.

‘Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas chácaras. (…) A indolência mental leva-os a isso e assim também pensava o doutor Loberant. Não tive grande trabalho em o fazer modificar o juízo na parte que me tocava. Mas não me dei por satisfeito. Percebi que me viam como exceção; e, tendo sentido que a minha instrução era mais sólida e mais cuidada do que a da maioria deles, apesar de todos os seus diplomas e títulos, fiquei animado, como ainda estou, a contradizer tão malignas e infames opiniões, seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino ter força para realizá-las, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor’. (pág. 158)

‘A natureza desgostosa e defeituosa de Loberant simpatizara com a minha fraqueza e a humildade dos meus começos. À força de falar em injustiça por especulação jornalística, adquirira um pouco de sentimento de reparação que externava em altos brados. Vendo em mim a necessidade de uma, não quis que ela continuasse a verificar-se; protegeu-me, estimou-me e fez-me seu valido. Se não fosse ele, logo no primeiro dia de reportagem, eu teria sido destituído. Na própria redação quase todos me eram hostis.’ (pág.159).

É evidente que essa ‘nova vida’ de Isaías é já a vida do parvenu, que sente a má-consciência de ter sido admitido apenas por ser ‘exceção’ à regra. Mas não é só isso: Lima Barreto sabe por experiência que o pior dos tiranos é o ‘nosso protetor’. Qualquer emancipação é trabalho do amor, e não do ódio. Nosso espaço deve ser conquistado por direito próprio, nossa dignidade humana deve ser assegurada sem olhar, em ressentimento, para o que outro garantiu para si. O poder deve ser destruído e desprezado por que não permite essa emancipação, e o pior dos enganos é que alguém nos emancipe como nosso ‘protetor’, a pior das tiranias – essa é mensagem política que podemos extrair de Isaías Caminha (até uma comédia surpreendentemente atual em torno a uma ‘quota’ para a colônia portuguesa na redação de O Globo aparece aqui).

Prestígio do poder

Isaías Caminha e Policarpo Quaresma, as duas grandes obras de Lima Barreto. Não há maior ou menor, pois elas não são comparáveis. A primeira, por sintética e quase elíptica que seja, não deixa de ser um Bildungsroman, a segunda é uma peça dramática (daí que possa, como já foi, ser levada ao palco). Como romance de educação, Isaías Caminha termina onde se encerra a ‘pré-história’ do herói, que depois de toda adversidade sabe afinal quem ele é e enfrenta seu destino. O final, que parece resignado, é em realidade utópico. Ao fechar o pano, Ricardo Loberant diz a Isaías que ele é um tolo e convida-o a tomar cerveja, e de certo modo tem razão, porque embora Isaías não pudesse fazer parte do círculo romano por ser sensível à instrumentalização das mulheres, quando aparece em cena Lola, a italiana, no passeio à Ilha do Governador, já não há essa instrumentalização, porque Lola não está ali como objeto e nem submetida ao poder, mas em relação de harmonia, representada pela forma como ela – e também Isaías, mas não Ricardo Loberant – aprecia a natureza.

Embora seja lateral ao nosso argumento, é interessante como o conceito do belo em Lima Barreto tenha ao mesmo tempo um pouco de Kant e um pouco de Nietzsche, ele não precisa escolher entre este ou aquele, quer tanto o belo natural como símbolo do bem (de um possível novo mundo moral, onde Natureza e Liberdade se mesclem e não se oponham) quanto o belo como ‘promessa de felicidade’ de que fala Stendhal, elogiado por Nietzsche (A genealogia da moral, consulto tradução em inglês de Francis Golffing para Nietzsche, The Birth of Tragedy & The Genealogy of Morals. Doubleday, 1956. p. 238). O fim da história de Isaías é a utopia de um possível mundo novo, ainda que para os outros.

Se fôssemos fazer uma síntese desse universo político representado pelo fictício O Globo, veríamos que a imitação da autoridade e acúmulo de poder levam a um excesso que termina em orgia, ao final da qual surge a possibilidade de uma restauração de autoridade. A quem se enfrenta com tais poderes, Lima Barreto tem a receita de ‘humanismo’ de Lessing: todo poder precisa ser esvaziado, seja pelo riso, seja pelo desprezo, seja pelo sacrifício, quando for exigível. Policarpo sacrifica-se para esvaziar o poder do Marechal de Ferro, depois de tê-lo afinal compreendido, mas é Olga (prevalece aqui também o ponto de vista dos párias sociais) quem o esvazia pelo desprezo com que se recusa ao último gesto, de inclinar-se diante do poder para pedir perdão.

Os poderes precisam ser confrontados com autoridades sociais, porque de outro modo eles acumulam-se sem quaisquer limites, e terminam em grandes orgias. O que as instituições que cultivam mais poder do que autoridade sempre desejam é que não existam instâncias sociais que as controlem, que possuam por ideal as qualidades-pária de humanidade, bondade, ausência de preconceito, sensibilidade em relação à injustiça. Autoridades institucionais multiplicam poderes, ao passo que a autoridades sociais é socialmente conferido prestígio.

Por mais caricaturesco que pareça, podemos dividir o mundo entre aqueles que aspiram a qualquer preço ao prestígio do poder (cujo acúmulo sempre os faz viverem em universos quase-romanos), de um lado, e aqueles outros que só contam com o poder (que paradoxalmente por vezes será a impotência) do prestígio. A honraria dos primeiros jamais é idêntica à honradez dos últimos. Mas nisso tudo, onde ficam as calúnias?

VII

Uma vez que chegamos até aqui é preciso afirmar com veemência que sem sincero respeito pela honra de cada um de nós talvez nem se pudesse começar a falar em liberdades públicas. A ofensa à honra não é algo que tenha preço, que seja negociável, e ainda que a vítima recorra a um pleito indenizatório (que é medida reparadora de justiça) o preço é sempre infinitamente menor do que o mal. A ofensa à honra deixa vestígio dificilmente curável, porque ela divide a vida da vítima em dois tempos, o de antes e o depois. No depois há que arrumar de novo todas as conexões sociais, pois haverá os que sem saber se crêem ou não, por via das dúvidas, afastam-se, haverá aqueles solidários pelos motivos que não eram os melhores, como aquele gesto de reconhecimento do fato como se fosse ‘um azar porque só pegaram você, se todos fazem o mesmo’, isso para não falar nos filhos terem de usar um ‘aposto explicativo’ ao nome, ao apresentarem-se – sim sou filho do fulano, mas ele é inocente.

Agora não pensem os que virem a sentença condenatória em favor de Numa Pompílio de Castro que os tribunais sensibilizam-se com essa dor. Nas honras, talvez mais do que em quaisquer outros assuntos, é onde mais visivelmente aparece o sistema dos duplos padrões (double standards) ou de dois pesos e duas medidas. Aqui ele é dado na seguinte fórmula: (a) desonrar um dos nossos com uma acusação fundada é sempre crime de lesa-majestade, salvo se o culpado for por nós liberado à execração pública como bode expiatório (o caso paradigmático aqui é o de Numa Pompílio de Castro, agora discutido), mas se (b) for desonrado um do povo com acusação infundada, ocorre mais ou menos o seguinte: ‘Vocês sabem como optamos por viver numa sociedade com amplíssimas liberdades públicas e a liberdade de expressão não pode ser restringida porque a vítima subjetivamente, etc.’.

A vítima, que já conhece o sistema, dificilmente paga para ver quanto vale sua honra, porque depois de tudo bem acontecido, ainda teria a maior dificuldade do mundo em provar que lá onde plantaram fumaça não havia fogo (paradigmático aqui é o caso Larry Rohter e a Nota Pública da Associação de Magistrados Brasileiros, discutido em nosso texto ‘Tudo como dantes no reino da Bruzundanga’, neste Observatório – remissão abaixo).

Como se arranja então uma república, para que esses males da difamação tenham justa condenação e, de outro lado, não se amedronte o povo de levar ao conhecimento das autoridades os crimes e irregularidades que os governantes possam cometer? Com certeza não é com o ricochete da medida provisória dos 151 mil reais, encarnada nessa recente condenação, mas com mais democracia. Como andamos sempre esquecidos dela, será conveniente lembrar o mestre florentino, que além de republicano conhecia a ‘natureza das coisas’. Maquiavel intuía que a dignidade da democracia diminui quando se incrementa a intimidação e se busca diminuir o direito de acusação pública, pois é aí que as calúnias fervilham, registrando em seus Discorsi que a república bem ordenada deve estabelecer:

‘O princípio de que todo cidadão poderá ser acusado, sem qualquer temor ou perigo; uma vez estabelecido e bem observado este direito, os caluniadores devem ser punidos rigorosamente. (…) as calúnias devem ser detestadas nas cidades que vivem sob o império da liberdade (…) para isto, o melhor meio é abrir caminho às denúncias. (…) Acusa-se os cidadãos perante magistrados, perante o povo, ou os tribunais; calunia-se nas praças públicas, em reuniões particulares. A calúnia é mais empregada sobretudo nos Estados onde a acusação é menos habitual, e cujas instituições não se harmonizam com este sistema’. [Maquiavel, Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (‘Discorsi’). Tradução Sérgio Bath. 3ª ed. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1994. 436pp. Aqui, pp. 45/6]

Esvaziemos o poder, pelo riso, ou pelo desprezo, e depois o que restará da condenação injusta é apenas um problema operacional – isto é, como pagar o indébito, que não saiu barato. A solidariedade é tanto um conceito de direito civil quanto uma virtude social. Será interessante trocarmos o primeiro pela última e que cada um que veja nessa injustiça um caso paradigmático potencialmente prejudicial a todos contribua, na medida de suas posses, em subscrição para o pagamento da despesa dessa extraordinária ‘vitória’ de Numa Pompílio de Castro.

Depois disso, que se dê uma sonora risada, porque afinal não foi a primeira e nem será a última causa em que ‘o juiz se faz criatura do caudilho’.

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Procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova York (EUA), autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004; e-mail (maurelio@prsc.mpf.gov.br)