Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para revolver as gavetas da história

IMPRENSA & MEMÓRIA

Celio Levyman (*)

Dentro de meus conceitos pessoais, a imprensa lato sensu não apenas informa, comenta e debate os assuntos relevantes, como também os armazena, servindo como memória do que mais importante aconteceu em um dado período da História. Basta ver o exemplo do grande historiador, premiado com uma longevidade espantosa, Eric Hobsbawn: depois de a Era dos Impérios, um de seus mais importantes livros, ele se apercebeu que daí para diante o historiador passava a ser observador dos fatos também, pois ele os viveu.E nos brindou com textos brilhante como a Era dos Extremos ? O Breve Século XX, e mesmo sua autobiografia, Tempos Interessantes, nos quais o historiador laureado se mescla com o jornalista, produzindo uma obra fundamental para a compreensão de nossa época e para registro dos futuros estudiosos.

Pois bem, se jornalismo representa memória e história, houve um fato que ninguém registrou, apenas os que dele participaram, e que merece a meu ver o devido apontamento: se ninguém o fez à época, os ali presentes devem dar seu testemunho para que não desapareça nas brumas do tempo, e escolhi o Observatório da Imprensa para tal.

Ano Novo

Entre 1993 e 1996 fui Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, o CRM. Entre 1995 a 1997 ocupei a função de Secretário Geral do órgão. No início de 1996 o então prefeito de São Paulo, Paulo Salim Maluf, resolveu modificar radicalmente o sistema municipal público de saúde da capital, instituindo o PAS-Plano de Assistência à Saúde.

As entidades médicas e de outras profissões afeitas ao assunto, ao analisarem as pré-propostas do tal PAS logo se convenceram de sua inutilidade técnica, de uma pseudoprivatização, de ser uma forma de burlar licitações e premiar amigos, com queda conseqüente da qualidade do atendimento médico, especialmente por uma opção pelas doenças mais simples, encaminhando as mais complexas ao SUS, abolindo-se vários centros de importância no sistema municipal de saúde de alta complexidade, como o serviço de queimados do Hospital do Tatuapé, as complexas cirurgias buco-maxilo-faciais e urológicas do Hospital Menino Jesus, etc.Maluf tentou implantar o PAS por decreto-lei, mas a Justiça não permitiu.

Durante oito meses seu projeto foi discutido na Câmara dos Vereadores, ocorreram audiências públicas e tudo o mais, mas a maioria absoluta de vereadores que votavam com o Executivo acabou por aprovar o decreto transformado em projeto de lei. E na virada do ano, no reveillon 1995 para 1996, simplesmente transformou-se o Hospital Municipal de Pirituba de um próprio da municipalidade em unidade do PAS.

Data imprópria em todos os sentidos para essa mudança, mas que demonstrou claramente o apreço dos defensores do plano de Maluf à vida de seus concidadãos: ocorreram tantos casos graves e mesmo óbitos (que a Polícia Civil passou a investigar), muito acima do normal, que o coordenador médico de plantão em Pirituba, médico do PAS, fez o mesmo que seus colegas não pertencentes ao PAS na sucatada rede de saúde: assustado, foi à delegacia da região e registrou boletim de ocorrência por preservação de direitos, pois não encontrou nenhum superior seu na Secretaria da Saúde a lhe enviar auxílio, pois deviam estar todos comemorando o Ano Novo… Apenas no dia seguinte apareceram mais médicos e até o coordenador geral do plano, que posava para a imprensa como se estivesse "trabalhando", para mostrar a eficácia (sic) do PAS.

Ações práticas

O CRM foi o primeiro órgão a denunciar publicamente com base em dados técnicos a imoralidade do PAS. Logo se juntaram várias outras entidades de classe, conselhos e ordens de demais profissões da área de saúde, movimentos populares, ONGs etc. O espaço não me permite falar das inesquecíveis assembléias de centenas de pessoas a debater e procurar acabar com o plano malufista. Apenas um exemplo: depois de implantado em Pirituba, o próximo hospital municipal que passaria para o sistema PAS seria o Hospital Infantil Menino Jesus, uma referência que recebia pacientes de vários estados da federação e até de outros países latino-americanos.

Com advogados renomados patrocinados pelo CRM, as entidades médicas ingressaram no Tribunal de Justiça com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de liminar, que foi concedida pelo então presidente do TJ, o desembargador Youssef Cahali, que ordenou que se parasse com a implantação do PAS e, dada a gravidade do assunto, que o desenrolar do plano deveria ser feito com acompanhamento do Poder Judiciário.

A sentença de várias páginas do desembargador Cahali, também professor titular da Faculdade de Direito da USP, só conseguiu ser derrubada em complexa manobra engendrada em reunião do Órgão Especial do TJ, formado pelos 25 desembargadores mais antigos. A partir daí, as assembléias tornaram-se ainda mais luminosas, com a presença de políticos federais, estaduais e municipais de oposição até conferências de Dalmo Dallari, especialistas em administração pública.

Em um dado momento, fomos pedir a colaboração de Dom Paulo Evaristo Arns: após uma reunião na Cúria, ele nos indicou o seu vigário de Comunicação, o padre Francisco Altmeyer, que passou a fazer parte da mesa coordenadora dos trabalhos nas assembléias e a trazer não apenas palavras de conforto, mas ações práticas da Igreja, como o uso de seus outdoors.

Numa dessas assembléias ocorreu uma idéia.Por que não fazer um ato ecumênico contra o PAS? O padre Altmeyer, sabiamente, gostou muito, mas achou que seria impróprio fazer algo "contra" na área de saúde, e sim um ato em favor da Saúde Pública, quando se poderia questionar uma série de coisas, e principalmente o PAS.

Toneladas de releases

O ato foi organizado da seguinte maneira: haveria uma celebração ecumênica na Igreja de Santa Ifigênia em um fim de tarde; em seguida, todos os presentes sairiam em passeata pacífica e silenciosa com cartazes alusivos ao tema pelo Viaduto do Chá, terminando no Mosteiro de São Bento.

Tentamos reviver o ato ecumênico de Vladimir Herzog: o cardeal Arns, por motivos de saúde, indicou alguém à sua altura para representá-lo, Frei Betto. Eu mesmo conversei com o pastor James Wright, que morava em Curitiba, e soube por ele que estava gravemente enfermo, mas obtive seu apoio incondicional e a indicação de outro pastor. E convidei e fui responsável pelo transporte do rabino Henry Sobel. De alguma maneira, estavam ali reunidas as pessoas e instituições que participaram do ato na Sé, além de representantes das Igrejas batistas, metodistas, luteranas, assim como budistas, afro-brasileiros etc. O ecumenismo foi ainda maior.

Por coincidência, estavam no Brasil as incansáveis e famosas Mães da Plaza de Mayo da Argentina, lideradas por essa figura maior que é Hebe Bonafini. Convidadas, elas compareceram ao ato.

Nos dias imediatamente anteriores a esse ato e no próprio dia, as assessorias de imprensa das várias entidades envolvidas, inclusive do CRM ? que é muito profissionalizada ? acionaram seus contatos em toda a mídia, mandaram toneladas de releases. Ninguém do mundo da imprensa poderá jamais alegar que não foi avisado.

Nenhum registro

O ato começou com um discurso de Frei Betto, depois falou o rabino Sobel e em seguida ouviu-se um emocionante relato de Hebe Bonafini, que conseguiu magistralmente relacionar direitos humanos à saúde com qualidade, mesmo tendo poucas informações sobre o PAS. Terminado o ato, como programado, seguimos no anoitecer de São Paulo, sob os olhares atônitos de vendedores ambulantes e transeuntes, em passeata, silenciosamente, com velas na mão ? e as Mães argentinas com seus clássicos lenços brancos na cabeça ?, até o Mosteiro de São Bento.

Como muitos comentaram, foi o ato mais próximo daquele histórico realizado quando da morte de Vlado no DOI-CODI. Mas aí vem a questão da memória: nenhuma emissora de televisão, rádio, jornal ou coisa que o valha esteve presente ou sequer deu guarida às informações contidas nos releases. O ato-passeata passou em branco.Ninguém o registrou.

Esperei alguns anos para ver se alguém retiraria esse fato dos arquivos. Como nada aconteceu, resolvi eu mesmo relatar o ocorrido aqui no OI. Em um assunto de importância setorial, claro, mas de ampla importância social. Guardadas as diferenças com o grito contra a ditadura militar e a tortura nos tempos do presidente Geisel, a imprensa, mesmo avisada por todos os meios, sem censura alguma, optou por minimizar o ato a ponto de não haver nenhum registro. Uma falha monstruosa ? e como considero a mídia um dos depositários de nossa memória histórica, ao menos aqui eu conto essa passagem, para que pelos menos o Observatório a conserve, dada sua importância.

(*) Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo