Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Parabólicas na casa grande e na senzala

TEMPOS MODERNOS
(*)

Jacques A. Wainberg

Casa Grande e Senzala com Antena Parabólica, de Jacques A. Wainberg. Editora da PUC-RS (Edipucrs), 2001. Av. Ipiranga, 6681, prédio 33 # Caixa Postal 1429 # 90619-900 Porto Alegre, RS # fone (51) 3320 3523. E-mail: <edipucrs@pucrs.br>; sítio <www.pucrs.br/edipucrs>

Ao longo do tempo, e desde seu alvorecer, o Brasil viveu a tensão de ser ao mesmo tempo uma massa geográfica continental e um arquipélago cultural. Um arquipélago de regiões que buscavam, com alguma ansiedade, a unidade política e elos simbólicos comuns de pertinência.

Tal dilema é proposto nestes termos na vasta literatura existente que trata da identidade nacional e a formação de um eventual caráter brasileiro. Alguns autores afirmaram com vigor em suas obras as forças da dispersão. Roger Bastide, por exemplo, definiu o país como um arquipélago relativamente disperso. Neste mesmo espírito o acompanhou Gilberto Freyre. O autor lembrava em Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal que, em tempos coloniais, quando chegava um navio ao porto, subia um frade a bordo "a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício". À época, era a heresia fator impeditivo ao desembarque. Maculava tal estrangeirismo a identidade planejada do homem brasileiro. "De que se fazia questão era de saúde religiosa… soubesse rezar o padre nosso e a ave-maria, dizer creio-em-Deus, fazer o pelo-sinal-da-Santa Cruz e o estranho era bem vindo no Brasil colonial."

Jacques Lambert, em Os Dois Brasis, acompanha a tendência, e define o país como ôco. Um Brasil vazio de gente e de identidade, identidade que permanecia a sua época turvo, indefinível. Também os "textos de crise" ? clássicos diagnósticos da historiografia, sociologia e psicologia brasileira que debatem a partir dos anos 20 o futuro do Brasil ? expressavam esta ansiedade adolescente dos nacionais pelo self. O despertar da modernidade desta década trouxe consigo a busca das raízes, da civilização brasileira, da identidade nacional e do retrato do país. Nos termos de Darcy Ribeiro, nesta fase de desenvolvimento, seria "o povo brasileiro em aceleração evolutiva". Ou ainda, "o povo novo" desalienando-se, passando a uma outra etapa sócio-cultural.

O que a modernidade que se inicia verdadeiramente a partir de 1920 propôs com a urbanização, a industrialização e a crise das oligarquias foi a construção da nacionalidade. Este é o tema focal desde então à ação de uma indústria cultural que se instala e se desenvolve em todo o território brasileiro. É ela que media a construção deste imaginário e que se capacita, com o passar dos anos, a criar, conforme Renato Ortiz, "estados emocionais coletivos". Um imaginário verde-amarelo que uniria virtualmente as regiões
deste imenso arquipélago transformando-o, enfim, num continente também cultural.

Outros autores caminharam pela mesma trilha. Ecléa Bosi realça a habilidade com que certos produtos culturais massivos como a telenovela foram capazes de "colocar o coração em conserva". Tais mensagens para adultos acabam sofrendo certa dose de "regressão infantil", o que nos leva a concluir com ela que a cultura de massas que se introduz crescentemente a partir destes anos 20 tangencia a superior, tentando absorver todas as camadas da população.

Tal resultado de rede articulada das partes num todo não será obtida facilmente, embora tenha se transformado em objetivo estratégico da autoridade, como ver-se-á a seguir. A indústria cultural emergente não conseguirá até os anos 60 ter este caráter integrador, conforme Ortiz. Nem até os anos 70, conforme Roberto Schwarz pois "a chamada cultura brasileira não chegaria a atingir, com regularidade e amplitude, 50 mil pessoas, num país de 90 milhões de habitantes".

No fundo, tais observadores sempre acompanharam com certa apreensão a opacidade da auto-imagem brasileira. Lhes intrigava, no entanto, o resultado inesperado: apesar de tudo, e das fugazes experiências de segregação regionalista, sustentou-se a integração política, lingüística e religiosa das populações brasileiras. O que aqui se propõe é que deve-se buscar um traço de interseção entre tais abordagens de sabor humanístico que realçam o esforço na formulação de tais elos simbólicos integradores e a atuação crescente das telecomunicações e dos mass media no Brasil. Tais aparatos são concebidos como teias ou redes capazes de a todos alcançar, superando barreiras físicas, raciais, regionais, econômicas e religiosas.

Esta caminhada rumo à unidade já é percebida nos anos 30. Luta-se então pela integração política, sucedida por esforços de difusão cultural. O Estado Novo é exemplar no uso massivo do rádio. O cinema brasileiro emergente fala do país como ele é, reagindo ao estrangeirismo. Os jornais formam conglomerados, abrindo a janela a novos cenários e horizontes. O país, crescentemente, se lê e se ouve. E se vê a partir de 1950, com a
chegada da televisão.

O avanço de tais aparatos de comunicação de massa, e outros de telecomunicação, é a articulação política e cultural do país como um todo. Uma articulação orgânica, diriam muitos. O separatismo ficaria crescentemente sufocado. Contextualmente, tal cenário encontra defensores com os tenentes, com as novas classes burguesas ansiosas por mercados amplos, e a queda correspondente dos cafeicultores e do mundo agropastoril
e seu imaginário paroquial. Tal ritmo que se acelera vem embalado nas quarteladas, rebeliões e formações de partidos políticos de base urbana, como sugere Octavio Ianni.

É um tempo que permite exagerar: o Brasil começa em 1920, toma impulso nos anos 30, e amadurece nas décadas de 60 em diante. É uma era de nacionalismo, de elos simbólicos de pertinência. É a era da Semana de Arte Moderna, da Coluna Prestes, de Macuinaíma, dos livros de Fernando Azevedo, Gilberto Freyre, de Oliveira Viana. É a era de Vargas, do Masp, da Vera Cruz, da fotonovela, da Cásper Líbero, da TV Tupi. É a era do capitalismo
industrial e financeiro e do mercado de bens simbólicos também. Um tempo no qual a mediação massiva proporcionada por uma base tecnológica de telecomunicação sofisticada romperá as herméticas fronteiras das regiões entre si, e do país com o mundo.

Em decorrência destes novos contextos, há que se perguntar se o caldeamento das matrizes étnicas africana, européia e indígena bastam para explicar o brasileiro contemporâneo. Bastam a casa grande e a senzala, a família, o sertão e o misticismo nacional para decifrar os maneirismos de hoje? Bastam as figuras de mucamas, sinhôs-moços, Caramurus e Iracemas para definir o que é vigente, ao que é contingenciado pela revolução tecnológica e pelo fenômeno da globalização?

Surge, acreditamos, uma nova configuração histórico-cultural, nos termos de Darcy Ribeiro, face aos novos fatores que autorizam graus crescentes de interação (satelitização, ubiquidade dos meios massivos, a consolidação da indústria cultural, a incorporação de audiências antes marginalizadas, a integração simbólica como requisito geopolítico.)

Já em 1958, Roland Corbisier percebia indícios destas transformações. Em seu clássico Formação e Problema da Cultura Brasileira ele perguntava se a universalização da ciência e da técnica européia tendiam a sufocar a originalidade cultural dos povos periféricos. Estava implícita a ameaça hoje percebida por inúmeros grupos dos efeitos da globalização. O que aqui se afirma é que o Brasil, nascido arquipélago, tornou-se crescentemente continente não só pelos fatores assinalados (língua e religião), mas também pelo avanço das telecomunicações e de seus produtos derivados.

Os efeitos da integração e relativa homogeneização das populações do país constituem-se, ao meu ver, na cena mais recente deste espetáculo que é a formação do Brasil. Os clássicos referidos raramente incorporaram em suas análises este fenômeno da mediação massiva e do impacto geopolítico das novas tecnologias comunicacionais. No entanto, autores contemporâneos ? como os referidos Éclea Bosi e Renato Ortiz, e também Alfredo Bosi ? já não deixam escapar esta evidência. A única forma da cultura que era possível ao homem colonial ? a do conhecimento alheio, enchendo "o seu vazio interior com os produtos culturais estrangeiros, que nele se depositam, arbitrária e caprichosamente, sobre um fundo de torpor e sonolência vegetal, como as folhas mortas na superfície das águas estagnadas" , já não caracteriza o cenário cultural brasileiro. Na verdade, no novo contexto de redes sofisticadas que se interligam, os brasileiros têm o que partilhar. O objeto do Brasil tornou-se o Brasil.

Cabe por isso distinguir entre cultura e caráter. O primeiro conceito,
que nos interessa, nada tem a ver com traços eternos. Ele refere-se simplesmente
à forma como os brasileiros adaptaram-se à natureza ao longo do
tempo. Se, como afirma Darcy Ribeiro,


(1) "a
cultura é uma ordem particular de fenômenos que tem de característico
sua natureza de réplica conceitual de realidade;
(2)
transmissível simbolicamente de geração à geração;
(3) através
dos quais os homens se integram e se humanizam;
(4)
incorporando-se a um entidade étnica, ao aprenderem sua língua
ao se libertarem a fazer as coisas de acordo com as técnicas que
ela domina, a comportar-se segundo as normas nela consagradas e, finalmente,
viver de acordo com seus usos e costumes;


então, afirmamos:



É esta classe de fenômeno a ser avaliada no Brasil moderno: o poder que as telecomunicações (e tecnologias decorrentes) têm de iluminar e obscurecer fatos, impor e/ou alterar modas, fortalecer e fragilizar crenças e atitudes, promover e abalar a auto-estima nacional, fazer uso do acervo cultural disponível promovendo-o à estatura de imaginário coletivo, integrando o continente e dando a "sensação" de pertencer ao indivíduo.

São esses alguns dos temas que uma nova sociologia da crise brasileira tem pela frente. Uma Casa Grande e Senzala com antena parabólica. Esta é a cena que desafia as matrizes étnicas clássicas e referenciais que explicam o Brasil. A senzala de então abriu espaço para o nosso ambiente existencial multimídia. Cabe ver agora "a interação dos indivíduos na rede social mediante os meios de comunicação", como afirma Éclea Bosi. Já há uma cultura nacional enraizada fruto deste andar histórico, como reafirma Alfredo Bosi.

Em suma, o que se propõe mostrar nos trabalhos que seguem é propriamente o papel da antena que paira agora sobre a senzala. Uma senzala em rede, graças à telefonia móvel, à Internet, aos cabos de fibra ótica, à comunicação espacial. A longa caminhada do Brasil em direção a si próprio foi realizado também e graças a estas tecnologias que permitiram o impacto estratégico desejado na identidade e cultura da nação.

A modernidade e seu projeto desenvolvimentista propôs na verdade um novo ritmo que demandou uma ampla infra-estrutura de comunicação, sem o que o resultado final não seria propriamente este de nação-continente. Uma nação que no século 21 é parda, é branca, é litorânea, é sertaneja, é distinta e variada como sempre foi, mas está mais próxima. E este fator é determinante para a cultura que emerge destas vizinhanças partilhadas, dos olhares que se dá ao ambiente, e das decisões que se toma para domá-lo. Por isso não se adota aqui a ousada e radical teoria de que não há cultura brasileira, como afirmado por Dante Moreira Lima quando diz:


Se considerarmos a chamada cultura nacional, veremos que esta não tem unidade, a não ser a língua e de organização política. Embora se possa, com certa restrições, falar em cultura de classe média, de classe pobre e de classe rica, será muito difícil encontrar padrões comuns a essas várias classes.


Especialmente na era das telecomunicações. O que tais tecnologias de comunicação à distância provocaram foi exatamente isso: romper as fronteiras das diferenças e cruzá-las. O impacto e a profundidade do resultado é o objeto que deve nos ocupar daqui para a frente. E se amanhã ou depois, um olhar retorspectivo for feito sobre o Brasil do século 20, o que se verá?

Ver-se-á o que deve ver um olhar sobre a cultura em geral, ou seja, as encarnações do espírito humano (a matéria do que é feito, sua forma e o mais importante, o seu sentido, "a significação de que são portadores"). Verá que o significado deste Brasil mediado já não é o mesmo da moral da senzala. O legado da geração modernizadora adquirirá vida própria, convertendo-se em "espírito objetivo no mundo dos valores culturais". A matéria e suas formas são menos familiares e paroquiais, menos promíscuas, revelando um novo significado. O de um Brasil mitologicamente potência, talvez! Com novos atores erguendo a voz e rompendo o silêncio. Tal resenha começa a ser feita. O que se vê, por enquanto, é um Brasil hiper-ativo.

(*) Introdução de Casa Grande e Senzala com Antena Parabólica, de Jacques A. Wainberg, Editora da PUC-RS (Edipucrs), Porto Alegre, RS, 2001.

    
    
                     

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