Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pasquale Cipro Neto

LÍNGUA PORTUGUESA

“?Livros que não dá pra não ler?”, copyright Folha de S. Paulo, 25/09/03

“Inúmeros leitores me escreveram para perguntar sobre a frase que está no título desta coluna e encerra uma campanha publicitária da Folha. Que perguntam os leitores? Se em vez de ?dá? não se deveria empregar a forma ?dão? (?Livros que não dão pra não ler?). Outros se incomodam com o ?pra? (querem que seja substituído por ?para?).

Comecemos pelo caso mais simples (o segundo). Largamente empregada na linguagem coloquial e em textos literários de autores de nomeada, a forma ?pra? não encontra abrigo na linguagem escrita culta formal, em que é substituída por ?para?. Mas quem foi que disse que em publicidade a única linguagem possível é a formal? Nada a declarar, pois, sobre o uso de ?pra? nesse caso.

Passemos agora ao caso da forma ?dá?. Começo pelo fim, ou seja, pela resposta: é ?dá? mesmo. E por quê? Peço-lhe licença, caro leitor, para usar um ou outro termo técnico, mas -prometo- só o necessário. Vamos lá, pois. Suponha o seguinte texto: ?Esses livros são ótimos. Não é possível (ou ?É impossível? ) não ler esses livros?. Nenhuma dúvida quanto ao ?é? desses casos, certo? Esse ?é? tem por sujeito (ai!) a oração ?não ler esses livros?. É esse fato (o de não ler esses livros) que não é possível (ou é impossível).

É por isso que se emprega a forma verbal ?é?, no singular, o que, por sinal, vale para todos os casos em que um verbo tem por sujeito toda uma oração. Outro exemplo disso se vê em ?Ainda falta apurar cinco urnas?. O sujeito de ?falta? não é ?cinco urnas?; é a oração ?apurar cinco urnas?. É claro que em ?Ainda faltam cinco urnas? a história é outra. Agora, o sujeito de ?faltar? é ?cinco urnas?, o que impõe o verbo no plural.

Pois bem, voltemos à frase da Folha. Nela, a forma verbal ?dá? foi empregada justamente com o valor de ?é possível?; o que ?não dá? é o ato de não ler os livros.

Convém discutir pelo menos mais dois aspectos da questão. O primeiro diz respeito à inequívoca influência da proximidade no processo de concordância (que, no caso, se dá entre ?livros? e o verbo ?dar?). Não custa repetir: o sujeito de ?não dá? não é ?livros?; é o ato de não ler esses livros.

O segundo aspecto que se deve discutir é justamente o emprego de ?dar? com o sentido de ?ser possível?. De larguíssimo uso na língua viva, esse sentido não encontra registro nos dicionários clássicos (?Novo Aurélio Século XXI? e ?Houaiss?, para citar os mais recentes) e nos específicos (de regência), como o de Celso Luft e o de Francisco Fernandes.

O ?Dicionário de Usos do Português do Brasil?, do eminente professor Francisco S. Borba, da Unesp, registra o sentido, de que dá dois exemplos: ?Não dava para manter o script? (da revista ?Veja?) e ?Da jaula dos leões daria para escutar a conversa? (de ?Meu Pé de Laranja Lima?, de J. M. de Vasconcelos). O dicionário do professor Borba se apóia nos registros dos últimos 50 anos.

Como se vê, não há registros clássicos do emprego do verbo ?dar? com o sentido de ?ser possível?, o que talvez permita a afirmação de que, em se tratando de linguagem escrita formal, seu uso não é adequado. Negar seu emprego e vida na outras variedades da língua, no entanto, é querer negar a força do vento. É isso. Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.”

“Ministério da Saúde está doente”, copyright Jornal do Brasil, 29/09/03

“Há um cerco ao fumante no mundo inteiro. No Brasil, o Ministério da Saúde adverte a todos que o fumo faz mal à saúde. Nas campanhas publicitárias, porém, a vítima é a língua portuguesa, pela qual deveria zelar. Afinal, não faz sentido boicotar a missão de outros ministérios, como o da Educação e o da Cultura.

É verdade que muitos cursos de Direito formam advogados que não sabem fazer uma simples petição sem ofender a mãe gentil, mas ainda assim é comum que a desajeitada maneira de escrever não impeça que os clientes obtenham os remédios jurídicos indispensáveis.

Precisamos discutir a questão da língua, como propõe o projeto do deputado federal Aldo Rebelo, ainda que mais preocupado com os abusos dos neologismos. Semana passada, a Folha de S. Paulo cometeu, aliás, uma ironia curiosa. Como o jornal aboliu o trema, fez com que o parlamentar errasse a grafia de todas as palavras que requerem o sinal diacrítico. Diacrítico veio do grego diakritikós, radicado em diakríno, separar, distinguir um do outro.

A freqüência de tais erros confunde alunos que lêem o jornal, pois se escreverem daquele modo nas provas, o professor certamente os advertirá dos enganos cometidos. Escola, imprensa e publicidade precisam entrar num acordo: a língua é a mesma para as três? Ora, a língua oficial do Brasil é a mesma para todos e ainda não foi privatizada.

A freqüência do erro, sobretudo na imprensa e na propaganda, desconcerta os educadores e outros cidadãos empenhados em ensinar pelo exemplo, como é o caso dos pais dos alunos que acompanham as lições dos filhos e ficam sem resposta diante de sábias questões dos pimpolhos, que alegam terem ouvido e lido outra coisa, como em antiga propaganda da Caixa Econômica Federal, que convidava: ?vem pra Caixa você também?.

Errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico, diz o provérbio. No caso da medicina, pode ser mortal. Talvez muitos médicos prescrevam em garranchos para que os clientes e as farmácias não descubram que os doutores não sabem escrever, omitindo, assim, uma questão que poderia inquietar ainda mais os doentes: saberá diagnosticar os males que os afligem, tratá-los com dignidade e manejar com precisão o bisturi um profissional que comete erros ortográficos que podem transformar um remédio em veneno?

E o que se faz quando o próprio Ministério da Saúde tropeça na língua portuguesa? Quem cuidará das fraturas? Quais os ortopedistas a quem devemos recorrer? Com efeito, em cartazes que espalhou pelo Brasil inteiro, o Ministério da Saúde denuncia os males do fumo em péssimo português. E o que fazemos com os males do estilo ali empregado?

Um dos cartazes apresenta uma modelo com um cigarro na mão. Ela é a mocinha. O cigarro, o bandido. A mensagem tem obviamente fins educativos. A advertência é: ?fiquesperta?. A forma escolhida – ?fiquesperta? – aprovada no Ministério da Saúde, é reprovada no Ministério da Educação, cujo ministro se queixa, com razão, de que as verbas são insuficientes para tirar o Brasil de péssima companhia: está no rol dos países cujos alunos não entendem o que lêem.

Em outro cartaz, o mocinho substitui a mocinha. E o erro troca de gênero: ?fiquesperto?. A referência não é mais o cinema, é o esporte. Logo abaixo vem a advertência: ?o cigarro usa o esporte e a moda para te prejudicar?. O erro adicional é de concordância, que foi para o espaço. Publicitário, no caso.

O Ministério da Saúde está doente. Foi atacado por estafilococos muito freqüentes em propagandas. Eles pertencem a um gênero de bactérias que atuam também em outros ministérios. De acordo com o dicionário Aurélio, ?isoladamente, em pares, ou em aglomerados irregulares?. E ?são potencialmente patogênicas, produzindo lesões locais e graves infecções oportunísticas?.

Será o caso de encaminhar os cartazes para a Fundação Oswaldo Cruz?”

 

CRÍTICA CULTURAL

O que é um bom crítico?“, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 23/09/03

“A questão da crítica, levantada aqui mesmo no Comunique-se há bem pouco tempo (Críticas Desprezíveis, José Paulo Lanyi, coluna Link SP), tocou num dos pontos que sempre me atazanaram o juízo: a validade, a necessidade e embasamento da crítica. Isso, de uma pessoa que se definiu como ?crítica? durante boa parte de seu trabalho… Se voces estão se perguntando se, estes anos todos, eu exerci a função enquanto duvidava dela, estão completamente certos. Mas eu sempre preferi ser essa metamorfose ambulante do que ter a velha opinião formada sobre tudo.

Aliás, olhando em perspectiva, noto que uma boa dose de dúvida, que leva necessariamente a uma boa dose de auto-crítica, é muito saudável para qualquer crítico que almeje ir al&eaeacute;m da trivialidade e do achismo.

A crítica de formação acadêmica tem disciplina e treinamento próprios. É coisa que se aprende em escola, como fazer obsturações e construir viadutos. Um crítico com esse tipo de formação, num veículo de massa, seria certamente embasadíssimo. E, com toda certeza, também mataria de tédio seus leitores.

Restam-nos então críticos como eu, que caem na atividade, como dizem os informáticos, por ?default?, porque não existe na redação outra pessoa com tanta paixão e, francamente, tanta paciência para a colheita do joio e do trigo num determinado assunto.

Ou assim o era nos tempos jurássicos. Hoje, com as redações microscópicas e estressadas que temos, suspeito que o profissional se torna crítico, muitas vezes, porque é o que está mais próximo da pilha de Cds ou convites que o moto-boy acabou de entregar.

Tornado crítico por default ou por proximidade, que qualidades deve ter esse profissional para que leitor e assunto sejam bem servidos? Além de auto-crítica, paixão e paciência, eu diria: cultura o mais abrangente possível, não apenas no assunto a que se devota, mas em geral, para poder ver seu tema no quadro mais amplo da sociedade, da economia, e da história; senso de humor, que vem naturalmente da capacidade de não se achar o centro do universo; e humildade, companheira natural do senso de humor, porque presume que o assunto, e não quem escreve sobre ele, é o fundamental.

Afinal, como todo crítico sabe, muito poucos de seus colegas permanecem nos registros implacáveis do tempo, enquanto uma grande parte dos que passam, temporária e momentâneamente, pelo seu crivo, viverão talvez para sempre, no tecido vivo da cultura. Em outras palavras: quantos críticos voce consegue lembrar pelo nome?

Ao se aproximar de seu objeto de análise, o crítico deveria ter a mesma atitude dos monges trapistas diante da cova aberta em suas celas, ou a dos antigos heróis romanos que entravam em triunfo, cobertos de louros, enquanto um servo lhe balbuciava ao ouvido: ?lembra que és um mero mortal.?

São padrões muito altos? São. O assunto assim o exige. E o poder, ainda que efêmero, que vem com o posto, simplesmente o obriga.

Num mundo ideal, críticos assim cumprem uma função vital para a boa troca de informações que deve ser a mídia; são a voz informada, a opinião abalisada (nem que seja na paixão) que tempera e dá perspectiva ao dia a dia da produção cultural. Um bom crítico presta ao seu leitor um serviço precioso – no melhor dos mundos, ele o ajuda a pensar, a analisar, a bem ver e bem ouvir, a não ser um consumidor passivo.

E isto, acima de tudo, deveria ser o objetivo do bom jornalismo cultural.”

 

JORNAL DA IMPRENÇA

“Gugu e a democracia radical (1)”, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 27/09/03

“Tentativa de atentado

Nosso considerado amigo José Inácio Werneck escreve de Bristol, EUA: ?O Globo de hoje (24/9) traz o seguinte título, na primeira página: Polícia investiga se houve tentativa de atentado contra diretor do IML.

Estarrecido com o atentado à língua portuguesa, fui às páginas internas. Lá encontrei a repetição da repetição da redundância: ?Polícia investiga se houve tentativa de atentado…?. E a reportagem não deixa por menos. Declara, no lead, que ?o delegado investiga se os bandidos estavam tentando praticar um atentado?. Ainda estupefato, quero dizer ao amigo que tenho ao menos uma boa notícia: descobri como usar o trema no novo formato de meu computador!?.

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Afrouxaram a rédea

O mestre Roldão Simas Filho, que sempre custeou os próprios estudos, lamentou esta notícia que o Correio Braziliense publicou em seu primeiro caderno: ?Um menor infrator custa R$ 7 mil por mês aos cofres da União. Com essa mesma quantia, o Estado custia (sic) durante todo um ano um aluno matriculado na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (…)?. Nosso diretor conclui: ?É o curso primário mal feito, segundo a expressão da Dad?. A Dad a que Roldão se refere é Dad Squarisi, ?aquela que sempre conduz o idioma em rédea curta?, como costuma dizer Janistraquis.

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Intenção de enganar

Nosso diretor paulistano, Daniel Sottomaior, pegou mais uma dos ?tradutores? do Estadão: ?O texto fala sobre os ?motivos ulteriores? da Casa Branca para a guerra. Em português, ulterior significa somente posterior, ou situado além. Em inglês, tal significado também é possível, porém o uso primeiro se refere àquilo que está além do que é evidente e é escondido especialmente com a intenção de enganar. Uma boa tradução seria ?velado?.

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Sabor arretado

Leitor que se assina simplesmente Coelho envia um título do indispensável Meio&Mensagem o qual soou, nas orelhas de um leporídeo, como espetacular extravagância: Coca-Cola lança guaraná Kuat sabor laranja. Janistraquis ficou boquiaberto: ?Considerado, se a moda pega, teremos em breve o guanará sabor cenoura, para alegria do Coelho, e o guaraná sabor uísque paraguaio, para gáudio e assanhamento de muitas pessoas que a gente conhece.?

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Tá faltando macheza

Em caudaloso editorial intitulado Autoridades desafiadas, o jornal O Povo, de Fortaleza, escreveu : ?O Ceará inteiro continua estarrecido e revoltado com a chacina de Limoeiro do Norte, onde sete pessoas foram mortas por pistoleiros, sendo que seis delas tiveram as orelhas arrancadas.(…) As autoridades policiais acreditam que a chacina foi praticada por um grupo de pistoleiros atuante na área, chefiado por José Roberto dos Santos Nogueira, que seria responsável, entre outros homicídios, pelo assassinato de Nicanor Linhares. Nogueira, também conhecido pela alcunha de Chico Orelha, está com prisão preventiva decretada pela Justiça(…). Os bandidos, desta vez, foram longe demais(…).?

O diretor de nossa sucursal no Ceará, Celso Neto, que nos enviou a orelha, digo, a matéria, considera que está havendo perigosa leniência em sua terra: ?Foi preciso que houvesse uma chacina dessas para o jornal afirmar que os bandidos, desta vez, foram longe demais. Ora, o que é demais é essa doçura que não combina com cabra macho, né mesmo??. É.

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Nota dez

O melhor da semana saiu na coluna de Elio Gaspari, em O Globo:

?Algum dia Lula decidirá se acaba com o terceiro mandato de FFFHHH. Ele pode decidir encerrar o triste período da História nacional que abriu seu alçapão nos anos 80 e levou uma geração de brasileiros para o andar de baixo. Essa é a verdadeira herança maldita. Infelizmente, o PT-Federal resolveu se tornar parte dela. Pena, porque algum dia vai herdar a própria maldição.?

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Errei, sim!

?ENFIA O DEDO – Título de Hora do Povo, de São Paulo, que, politicamente, sabe onde enfia o dedo: A profundidade das feridas na Chechênia.? (junho de 1995)”