GUERRA & MÍDIA
“Uma mídia dócil”, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 7/09/02
“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. O secretário de Estado Colin Powell e o vice-presidente Dick Cheney estão de pleno acordo. E o governo Bush não irá privatizar a Previdência Social.
A insistência do porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, em que Powell e Cheney não têm divergências a respeito do Iraque parece ter levado alguns jornalistas a perceber, ainda que brevemente, o óbvio. O site The Note, da rede ABC, descreveu essa situação como ?chocolate é baunilha?, admitindo que ?a equipe de Bush sempre teve um problema de credibilidade com alguns jornalistas porque insiste em dizer que ‘para cima é para baixo’ e que ‘preto é branco’?.
Mas o governo não precisa de preocupar. Se a História serve para alguma coisa, muitos jornalistas logo retornarão ao habitual servilismo. Na próxima vez em que o governo insistir em que chocolate é baunilha, a maior parte da mídia – temendo ser acusada de assumir uma tendência liberal, e procurando dar a aparência de ?equilíbrio? – não informará que a coisa na verdade é marrom. No máximo dirá que alguns democratas afirmam que é marrom.
A propensão orwelliana da equipe de Bush há muito foi percebida por quem acompanha seus pronunciamentos sobre economia. Mesmo durante a campanha de 2000, tais pronunciamentos se apoiavam no ?duplipensar?, na capacidade de acreditar em duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. Por exemplo, o plano de George W. Bush de privatizar parcialmente a Previdência sempre dependeu da assertiva de que 2 menos 1 são 4, que nós podemos desviar o dinheiro das contribuições dos trabalhadores na folha de pagamento para contas pessoais de alto rendimento, e ainda assim usar esse mesmo dinheiro para pagar os benefícios aos aposentados.
As táticas orwellianas não se resumem a esse tipo de raciocínio. Também incluem uma nova linguagem, a redefinição de palavras para eliminar conceitos desfavoráveis. De novo, a Previdência Social é um exemplo perfeito. Os consultores políticos republicanos descobriram que, numa época de ações em baixa e escândalos corporativos, a palavra ?privatização? assumiu conotações negativas. A resposta? Negue que as contas individuais representem uma privatização, e pressione a imprensa para acreditar nisso.
Um memorando do Comitê de Campanha Nacional Republicano (RNCC, da sigla em inglês) define a nova estratégia: ?É muito importante não permitirmos que os jornalistas ajam em favor da demagogia democrata ao caracterizarem inadequadamente ‘contas individuais’ e ‘privatização’ como se fossem a mesma coisa.?
É errado dizer que as contas individuais equivalem à privatização?
Poderíamos discutir os méritos. Sob o plano de Bush, a conta pessoal de um trabalhador reflete todo ganho ou perda das ações que ela representar.
Quando os riscos e recompensas cabem inteiramente ao indivíduo, isso não é privatização?
Mas espere, podemos fazer melhor. O movimento para transformar a Previdência num sistema de contas pessoais foi liderado pelo Cato Institute. O plano de Bush saiu diretamente do projeto do Cato sobre o assunto, vários membros da comissão de Bush para a reforma da Previdência Social têm fortes vínculos com esse instituto, e a maior parte dos membros dessa comissão veio diretamente do Cato. Você pode ler tudo sobre o papel desse instituto no site por ele próprio criado, o socialsecurity.org.
E como se chama o projeto do Cato Institute para promover a idéia das contas individuais? Projeto de Privatização da Previdência Social, é claro.
O que nos traz de volta ao assunto da intimidação. O RNCC não acredita, realmente, que possa convencer as pessoas de que privatização não é privatização. Mas não é esse o objetivo. O memorando não trata da comunicação com o público. Trata-se de uma lista de exigências para ser imposta aos jornalistas. Como Joshua Marshall observou no site talkingpoitsmemo.com, o objetivo é de ?amedrontar os repórteres para que não usem a palavra ‘privatização’ neste contexto?.
E a intimidação provavelmente dará certo. De fato, já está dando certo. Como Joshua Marshall observou, numa recente entrevista com o líder democrata na Câmara dos Representantes, Richard Gephardt, a repórter Judy Woodruff, da CNN, empregou os termos recomendados pelo memorando do RNCC.
Infelizmente, esta não é apenas uma questão de política previdenciária. Já que o governo acredita que pode ir em frente insistindo em que preto é branco e que para cima é para baixo – e tudo na história deste governo sugere que ele acredita mesmo nisso -, é difícil saber como esse processo terminará. O hábito de ignorar a realidade inconveniente e presumir que uma mídia dócil concordará com tudo logo infetará todos os aspectos da política.
Sim, isso inclui assuntos de guerra e paz.
O problema é que, por acaso, a realidade tem uma maneira de se impor. E, caso você esteja em dúvida, saiba que ignorância não é força.”
“Ofensiva na TV”, copyright O Globo, 9/09/02
“Os Estados Unidos intensificaram ontem sua ofensiva diplomática, em busca do apoio da opinião pública a uma ação militar contra o Iraque. O vice-presidente Dick Cheney e os principais assessores do presidente George W. Bush foram à TV dizer que há novas provas de que o presidente iraquiano, Saddam Hussein, está tentando desenvolver armas nucleares e que os EUA estão dispostos a atacar sozinhos, caso não haja apoio de outros países.
Em entrevista à rede NBC, o vice-presidente revelou que os Estados Unidos interceptaram um carregamento para o Iraque contendo equipamentos que poderiam ser usados para produzir uma bomba nuclear.
– Sabemos de um carregamento em particular. Não sabemos o que mais, que outras direções ele (Saddam) pode estar tomando – disse Cheney.
A declaração do vice-presidente foi endossada por outros membros do governo, como a conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, o secretário de Estado, Colin Powell, e o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, num discurso afinado nos programas de entrevistas de domingo. Nenhum deles pôde garantir que Saddam já tenha tais armas, mas deixaram claro que não pretendem esperar pela certeza.
– Não creio que devemos nos sentar e esperar para ver o que ele fará ou não – disse Colin Powell, em entrevista ao ?Fox News Sunday?.
A preocupação foi reforçada por Condoleezza Rice, na CNN, que advertiu que os EUA estão dispostos a atacar sozinhos se não tiverem apoio de outros países.
– O presidente conservará toda sua autoridade e suas opções para atuar de maneira apropriada e unilateral a fim de defender-nos. Não queremos que a arma fumegante seja o cogumelo atômico – disse a conselheira, referindo-se a uma prova incontestável de que o Iraque tem armas nucleares.
Próximas semanas serão decisivas
As entrevistas ocorreram um dia depois do encontro de Bush com o premier britânico, Tony Blair, em Camp David. Eles citaram o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica, em que fotos de satélite revelaram novas construções em locais antes destinados a produção de armas nucleares. Para eles, este seria um indício de que Saddam retomou o programa de armas atômicas. A agência, no entanto, desmentiu ontem que tenha provas de que o país esteja desenvolvendo armas nucleares. Ela ressaltou que as fotos de satélite não permitem saber a natureza do trabalho realizado das novas instalações.
No programa ?Meet the press?, da NBC, Cheney disse que ainda não há uma decisão final sobre uma ação para depor à força o presidente iraquiano, mas admitiu que a opção militar é uma possibilidade e que as próximas semanas serão decisivas. Em caso de guerra, o vice-presidente revelou que as tropas americanas teriam de ficar no Iraque por um longo período a fim de garantir a transição pacífica para um novo governo.
– Gostaríamos de fazê-lo com o apoio da comunidade internacional – disse Cheney, que espera que o Congresso americano analise a possibilidade de um ataque preventivo antes de entrar em recesso. – Mas temos que lidar com esse problema de um jeito ou de outro.
Para Colin Powell, os EUA não têm outra alternativa a não ser considerar um ataque preventivo.
– Isso é sempre uma opção para os EUA, e nesse caso uma opção para as Nações Unidas – disse.
Segundo Powell, mesmo que Saddam permita o retorno dos inspetores, isso seria inútil a menos que estes tivessem acesso irrestrito, em busca de armas de destruição em massa.
Para Rumsfeld, apoio virá em breve
O secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, disse no programa ?Face the Nation?, da CBS, que o governo americano espera obter em breve amplo apoio para um ataque:
– O fato de não haver unanimidade hoje não é surpresa. O caso ainda não está completo, mas estará nas próximas semanas. Se você está certo e mostra liderança, as pessoas encontrarão o caminho para apoiar o líder – disse.
Em Londres, o primeiro-ministro Tony Blair disse que está ?totalmente determinado? a lidar com o Iraque, mas que gostaria de ter apoio internacional amplo. Disse ainda que EUA e Grã-Bretanha não agiriam sem consultar os aliados. Bush irá à ONU na quinta-feira em busca desse apoio, caso Bagdá não permita a volta dos inspetores de armas da ONU.
Os EUA vêm enfrentando dificuldades em conseguir apoio a uma ofensiva militar. Membros do Conselho de Segurança da ONU, como França e Rússia, já demonstraram reservas a uma ação militar. Internamente, uma pesquisa publicada ontem pelo jornal ?The New York Times? indicou que 64% dos americanos entrevistados acham que Bush ainda não deu razões convincentes para atacar o Iraque, embora a maioria apóie a ação militar. Dois terços acreditam que ele deve obter apoio dos aliados dos EUA e 62%, que necessita de aprovação do Congresso para iniciar uma guerra.
O Iraque, por sua vez, voltou a dizer que permitiria o retorno dos inspetores de armas, mas somente com a suspensão dos 12 anos de embargo econômico.”