Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pauladas no glorioso maestro

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ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

CRÍTICA

É consenso nacional e internacional: Tom Jobim é uma figura solar em nossa música, tendo consolidado seu nome e prestígio com uma obra amplamente reconhecida. Mas quem abriu a Folha de S.Paulo de 25 de maio levou um susto. Sob o título "O maior dos plágios?", a "Ilustrada" daquele dia, à pág.E8, fazia de tudo para desilustrar uma das maiores glórias de nosso cancioneiro, o célebre Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, mais conhecido como Tom Jobim, nascido no Rio, em 1927, dia 25 de janeiro, e falecido em Nova York, no dia 8 de dezembro de 1994 ? ele que predissera ser difícil morrer em inglês, dada a dificuldade de explicar ao médico uma dor no peito que respondesse na costela.

Pois levou diversas sarrafadas, quase lhe quebraram as costelas. Ossos do ofício. Tom estava na casa dos trinta anos ? um balzaqueano? ? quando recebeu projeção nacional, ao lado de Vinicius de Morais, em 1957, fazendo a música da peça Orfeu da Conceição, montada com cenários de Oscar Niemeyer, no Teatro Municipal, no Rio. Uma das músicas daquela peça, Se todos fossem iguais a você, teve grande sucesso e ficou indelével na memória popular.

É, mas não são todos iguais a você, meu caro Tom, autor também de frases antológicas, como "no Brasil, o sucesso é proibido" e "o Brasil não é para principiantes". Parece que a bossa-nova e a Garota de Ipanema ainda purgam as penas perpétuas que lhes foram impostas por seus pecados mortais, sendo o principal deles o de conciliar sucesso de crítica e de público, no Brasil raramente combinados.

Para avacalhar nosso melhor compositor vale tudo? O mote da matéria? Repercussão da própria "Ilustrada", no estilo já usual de a Folha de S.Paulo ser notícia de si mesma. O caderno fez uma enquete e Águas de Março foi eleita a maior de nossas canções. Depois, 2.244 internautas votaram e deram 577 votos a Tom Jobim, "número que corresponde a 26% do total dos votantes". Epa! Será que quem finge ser exato no pouco (a quantidade) e erra as contas, será fiel no muito (a qualidade)? Numa sintaxe arrevesada, destoando (ai!, foi sem querer; desculpem, leitores!) das boas normas que regem a estética da linguagem jornalística, vinha a outra mancada: "a segunda música mais bem votada pelos internautas também repetiu a enquete da Ilustrada: deu ?Construção?, de Chico Buarque, com 535 votos (24%)". Vinte e quatro por cento de de 2.244 "dá" mais do que "deu", viram, meninos? Seriam 538,56 votos. E 26% são 583,44. Mistérios dos números. Por isso, é melhor desprezá-los quando se examina qualidade. Ou precisamos lembrar a célebre história dos 35 camelos com que Malba Tahan nos vem entretendo ao longo dos anos, incluindo um inexistente 36? camelo para que a vontade testamentária do pai seja acolhida? Quem dos votantes gostaria de ser excluído na porcentagem? No primeiro caso, foram mais de seis; no segundo, mais de três. E agora?

Noves fora, duas pauladas doeram mais. A primeira é a necessidade que certa crítica tem de satanizar as glórias nacionais, mostrando que ninguém ? literalmente ninguém ? merece respeito, consideração, reconhecimento. Tom Jobim plagiário? Vamos às origens para não fazer feio. Plagiarius entre os romanos era quem roubava os escravos alheios. Passou depois a designar também quem acolhia escravos roubados ou fugitivos. O vocábulo apóia-se num verbo latino que significar espancar, desancar. É historicamente recente o significado de apropriar-se de autoria de outrem. Mas qual foi o autor a quem Tom Jobim prejudicou ou roubou, meus deuses?

Não estou aqui como Catão dos críticos, mas por que no Brasil os macacos não olham o rabo? Por que os críticos, com as exceções de praxe, querem sempre aparecer realizando funerais ou exumando cadáveres para enxovalhar? Por que são raros os berçários em nossas letras e artes? Quais são os críticos que ajudam seus leitores a descobrir alguém, alguma obra?

Arrisco uma hipótese. É falta de café no bule. Plágio é outra coisa. Plágio é roubo. O plagiário prejudica o verdadeiro autor, pondo-se no lugar dele, assumindo autoria do que é não seu. Tom Jobim fez isso? Claro que não. Ou, segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello, "é delírio puro". E acrescentou: "Há várias canções de Tom Jobim às quais são atribuídas a palavra plágio. É homenagem, não é plágio". Não seria intertexto? Se os mesmos críticos tomam o Gênesis, o próprio Deus será acusado de plagiar a si mesmo. "Na Bíblia, assim que começa a ler o Gênesis, o leitor atento percebe grande contradição. Com efeito, no primeiro capítulo Deus cria o homem e a mulher, à sua imagem e semelhança, no sexto dia, depois que tudo estava criado. No segundo capítulo, vêm a surpresa e a contradição: Deus cria primeiramente o homem e depois todos os animais". Aqui fiz plágio de mim. São palavras do verbete "revisor" no livro De Onde Vêm as Palavras (Editora Mandarim).

São surpreendentes na matéria algumas palavrinhas operacionais, como "prova", "vilão", "plágio". O vilão antigo era vilão porque tinha o pecado de vir da vila, privado que estava da convivência dos justos no burgo, onde estavam justamente os burgueses. Provas? As provas podem ser constituídas, dependendo da atuação do crítico. Quer ser promotor ou advogado de defesa? Escolha as provas de acordo com a opção escolhida. O julgamento, a sentença, é a História quem dá, consolidando a relação, cheia de sutis complexidades, entre autor, obra e público.

A segunda paulada doeu mais. Foi de Luís Antônio Giron: "A elite cultural brasileira não está preparada para emitir muitas opiniões de cátedra". É? Quantas podemos emitir? Ou o crítico não pertence ao estamento que diz existir? Até José Ramos Tinhorão ? tu quoque, Brute? ? que, na linguagem bagual da ? como direi? ? reportagem, "vocifera", deixou-se enredar, ele que é sério pesquisador: "As pessoas simples desconhecem a fonte". E seus argumentos ? "vocês promovem essas enquetes entre pessoas da classe média (…) acho isso safado. Digam então que é o gosto dessa classe, que é dentro desses critérios. Não venham com essa chantagem".

Pois suas palavras foram transformadas em águas para o monjolinho da tradicional cooperativa "Danem-se todos os que criam". Talvez não haja talento entre os criadores brasileiros. Só mesmo entre tais críticos. Eu já andava desconcertado com o ar fúnebre da maioria deles. Pois deram um passo à frente e agora fazem exumações que têm o fim de bater nos mortos. E a luz com que nos iluminam pode secar até mesmo as Águas de Março. O que é a natureza da crítica brasileira, hein!

Por uma dessas curiosidades mórbidas que levaram os senadores Arruda e ACM olharem a lista do painel eletrônico, dei uma olhada no horóscopo de Tom Jobim na mesma "Ilustrada": "Bom, não há nada a fazer por hoje a não ser continuar na mesma batida de outros dias. O desenho celeste não anuncia nada de novo ou espetacular para você". Tom era de Aquário. Barbara Abramo, que tal um horóscopo também para os mortos, vez que no Brasil é constante a infração ao preceito latino De mortuis nihil nisi bene? Não vige mais sequer a variante brasileira, "quem quiser ser bom, morra primeiro". O atestado de óbito não é mais suficiente para não baterem nos criadores. Eu escrevi "bater". Criticar é bem diferente de tudo isso. Criticar não é satanizar ou lisonjear. Requer, talvez, menos superficialidade. E para isso o primeiro requisito é qualificar melhor a mão-de-obra e aumentar o espaço de sua atuação. Cinco linhas sumárias para vituperar ou endeusar, não!

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente nas revistas Época e Caras, e também em <www.eptv.com.br>. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras.

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