FARDA & FARDÃO
Deonísio da Silva (*)
Se o jabuti está no galho de uma árvore, a pergunta é: quem o colocou lá? Paulo Coelho entrou para a Academia Brasileira de Letras. Quem são os responsáveis por sua eleição? Naturalmente, aqueles que votaram nele. Os quinze do Forte da ABL foram derrotados. Mas por quem? Obviamente, pelos colegas que elegeram a quem os quinze não queriam! Mas por que votaram desse modo? Qual a escolha que lhes foi dada?
Perguntas mal formuladas trazem respostas repletas de equívocos. O próprio candidato, tão logo eleito, disse à imprensa que sua entrada para a Academia era uma pergunta aos críticos. Faz tempo que não apenas ele, mas diversos intelectuais que t&ececirc;m a pretensão de fazer avaliações literárias, opõem crítica e público. Lembram verso de conhecida canção: "Você não gosta de mim, mas sua filha gosta".
A dileta filha é o mercado, não apenas o brasileiro, mas o mercado global. E como a tríade que constitui a literatura compõe-se de obra, público e autor, Paulo Coelho, navegando no dorso das poderosas ondas do mercado, entrou também para a ABL. Ainda bem que a universidade tem vestibular! Muitos candidatos que escrevem melhor do que ele, utilizando-se na avaliação apenas o quesito "domínio da língua portuguesa" numa redação, foram impedidos de fazer o curso superior.
Não apenas a ABL, mas outras academias também não gostavam de Paulo Coelho. Algumas daquelas que o detestavam continuam desprezando seus livros, às vezes antes de os ler. Entre essas academias, despontam aquelas instâncias avaliadoras vinculadas às universidades, especializadas em exclusões.
Exclusão. Esta é a palavra-chave para entender a eleição de Paulo Coelho. Aparentemente, foi excluído apenas o candidato derrotado, Hélio Jaguaribe. Mas não é bem assim que a ABL funciona. Em cada eleição, outras exclusões são processadas. Mário Quintana buscou o convívio e não o deixaram entrar. Erico Verissimo e Carlos Drummond de Andrade não nos permitiram avaliar se seriam recusados, porque jamais se candidataram. Vale para a ABL a famosa inscrição dos hospícios: "Nem todos os que são, estão; nem todos os que estão, são". Tais referências solares de modo nenhum desmerecem a quem entrou. Referências? Na ABL ou não, romancistas como Lygia Fagundes Telles e Rachel de Queiroz, poetas como Carlos Nejar e Alberto da Costa e Silva, ensaístas como Eduardo Portela e Alberto Venâncio Filho, seriam sempre reconhecidos como escritores.
Os problemas da ABL são outros. E começam pelo das vagas. Considere-se o seguinte. Há exatos cem anos, Rodrigues Alves foi eleito presidente da República com 592.039 votos. Naquele ano, o que acontecia com nossas letras? Eram publicados dois livros fundamentais para se entender o Brasil: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha. Dois anos depois, Graça Aranha romperia com a ABL em sessão memorável e sairia dali carregado nos ombros pelos jovens, enquanto os conservadores faziam o mesmo com Coelho Neto. A Semana da Arte Moderna, de que este era desafeto, e aquele adepto, realizada dois anos antes em São Paulo, manifestava seus conflitos no Rio de Janeiro.
Em 2002, o candidato que não angariar por dia os votos de Rodrigues Alves nesses meses finais de campanha para a presidência da República corre o risco de ficar fora do segundo turno. O Brasil tem mais de cem milhões de eleitores. E a ABL continua com o mesmo número de vagas! E quem se candidata para integrar o clube dos 40? Poucos escritores de verdade.
Com efeito, não há critério que sustente que nossas letras se resumem aos candidatos que entraram ou foram derrotados recentemente. O general Aurélio Lyra Tavares assinou o Ato Institucional n? 5 ? peça-chave em exclusões ainda mais graves, porque levaram muitos brasileiros à perda da liberdade, aos cárceres, às perseguições e à morte sob tortura ? e foi eleito para a ABL por seus pares. Não foi a ditadura que o entronizou. E ele não entrou por ser poeta. Zélia Gattai não entrou para a ABL por ser romancista. No Brasil há outras dinastias que vão para além dos laços de sangue. É importante ser esposa de Fulano, protegido de Beltrano, marido de Sicrana. O Brasil tem mais e melhores escritores do que muitos eleitos ou derrotados. O cânone de nossas letras, de onde alguns precisam ser expulsos, e outros entronizados, felizmente é bem mais amplo. Ivo Pitanguy e Oscar Dias Correia, entre outros, não representam nada em nossas letras. Mas estão na ABL.
Mercado onipotente
O Brasil tinha cerca de 10% da população de hoje quando a ABL foi fundada com 40 vagas! Naquela época, 40 escritores, com poucas discrepâncias, representavam nossas letras. Quando Rodrigues Alves foi eleito, há cem anos, a população do Brasil era de 17.318.556 habitantes, 64% dos quais não viviam nas cidades. O Brasil estava lendo Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado dois anos antes? Não. Quem lia Machado? Aquela entidade cheia de sutis complexidades chamada público leitor, que não vive de um autor apenas, e que num século pode contar com apenas mil leitores, noutro com milhares, mas para quem o critério de qualidade jamais será o de exemplares vendidos. O Brasil estava lendo Por que me ufano de meu país, do Conde Afonso Celso de Assis Figueiredo, que vendera cerca de 300 mil exemplares. Os dois escritores estavam na Academia.
Hoje, o Brasil conta com mais de 170 milhões de habitantes, a maioria dos quais amontoados em pouco mais de 13 cidades. E o Brasil está lendo Paulo Coelho! À falta de outros indicadores, Brasil não iria bem se estivesse lendo apenas a obra dele, um sarampo em nossas letras. Mas, mesmo em termos de mercado, somos o segundo das Américas, segundo a Câmara Brasileira do Livro. E muitos outros escritores, que não querem nem saber da ABL, estão escrevendo todos os dias. Eles fazem as nossas letras. Os motivos de não estarem na ABL são muitos, evidentemente, mas a maioria não freqüenta nem clubes. Escritor é bicho solitário em seu hábitat, porque a solidão é essencial a quem quer criar. Nenhuma grande idéia da Humanidade nasceu em reuniões.
Quando o escritor entra para a ABL, já enumera com mais facilidade marcas de bebidas, pratos saborosos e dores que anda sentindo. Se perguntarem aos imortais quem são os outros escritores, aqueles que não integram os 40, a maioria deles saberá citar poucos para além do pequeno círculo que freqüentam.
Dublê de escritor e professor universitário, desafeto de qualquer exclusão que não seja por mérito, aferido com isenção diante de qualquer poder, havendo dificuldade de discernimento nos tempos confusos em que vivemos, entre escolher um escritor segundo o perfil que meus antigos professores me delinearam e aquele imposto pelo mercado, ainda assim celebro a entrada de Paulo Coelho. Pelo menos, ele escreve! Não é um censor, jamais perseguiu ou excluiu colegas que muitas vezes o excluíram. De todo modo, que nos seja permitido um mundo novo, no qual, em vez de escolher sempre a menos pior entre as alternativas que nos são postas, possamos ser mais livres e escolher o melhor sem as imposições deste deus horrendo, o onipotente mercado, fora do qual a salvação é obra cada dia mais difícil.
(*) Escritor e professor universitário; seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Os guerreiros do campo