NYT EM CRISE
“A imprensa sob a sombra do escândalo no NYT”, copyright O Globo, 8/06/03
“A dramática troca de comando da redação do ?New York Times?, na quinta-feira passada, tem poucos antecedentes conhecidos mas ajuda a entender por quê uma empresa de comunicação é diferente de uma fábrica de salsichas. Em 1980, o ?Washington Post? publicou uma reportagem sobre um menino de oito anos, negro, viciado em heroína. Tudo invenção de uma repórter: nem o menino existia, quanto mais a heroína. Janet Cooke, a autora da reportagem, perdeu o emprego. Os superiores diretos e indiretos se salvaram, inclusive Bob Woodward, a estrela do caso Watergate, recém-promovido.
Em 1983, a revista ?Newsweek? publicou uma reportagem de capa sobre os diários de Hitler, dando crédito à versão de que, na intimidade, o tirano responsável pelos horrores da Segunda Guerra era um homem preocupado com o sofrimento da Humanidade. Era uma obra de falsários. O editor que fechou o negócio e publicou a fraude manteve-se no cargo, apesar da vergonha.
Jornal vai promover revisão interna de funcionamento
Com tais antecedentes, as 36 mentiras, plágios e invencionices produzidas pelo repórter Jayson Blair em torno de cidadãos quase anônimos constituem um serviço vergonhoso e inaceitável de delinqüências contra o leitor, ainda que tenha conseqüências irrelevantes. Mesmo assim, Howell Raines, o diretor de redação do ?New York Times? que fizera vista grossa para críticas internas a Blair, permitindo que estrelasse uma carreira luminosa no jornal, perdeu o emprego após 25 anos de casa. Gerald Boyd, editor-executivo, também foi embora.
Com 152 anos de existência, ações em alta, uma receita anual de US$ 3 bilhões e um padrão de bom jornalismo que é patrimônio da civilização, hoje o ?Times? enfrenta uma tormenta histórica. No editorial em que explicava as mudanças o jornal anunciou que fará uma revisão interna em seus métodos de funcionamento, acrescentando que ?o bem-estar de uma instituição é mais importante do que a carreira das pessoas que a dirigem.? Entrevistado pelo ?Times?, um professor da Universidade de Chicago, Warren L. Batts, antigo executivo no setor privado, foi direto ao ponto em que se distingue salsichas de notícias: ?Toda empresa precisa de credibilidade para vender seus produtos mas as empresas de mídia não têm outra coisa para oferecer.?
Raines foi guilhotinado porque se temia que essa mercadoria sem forma e sem preço, que é a capacidade de um veículo ser levado a sério em todas as circunstâncias, mesmo quando divulga informações exclusivas, às vezes até assombrosas, fosse colocada em risco. Ele também foi alvo de uma conspiração de repórteres e editores que reclamavam de autoritarismo e falta de diálogo. Também era criticado porque só se interessava por um pequeno grupo de protegidos e aduladores. Mas Raines enrolou a corda no próprio pescoço quando desprezou advertências seguidas contra o jornalismo estelionatário de Blair.
Bastidores da imprensa olhados com igual interesse
Ignorou pequenos comentários, conversas de corredor e até manifestações claras e diretas – num e-mail que um dia estará num museu, um editor chegou a recomendar que Blair simplesmente fosse afastado do jornal. Quando o escândalo já era público, Raines tentou justificar-se atrás da bandeira dos direitos civis, alegando que mostrara uma tolerância maior diante dos erros de Blair – que é negro – porque, ?do fundo do coração?, tem uma simpatia maior pelas minorias raciais. Os arquivos do ?Times? estão recheados de belíssimos artigos de Raines sobre os direitos civis, mas o argumento era bonito demais para ser verdade.
– O problema de Blair não era ser negro ou branco, mas um mentiroso e um mau jornalista – observa Gene Robinson, editor no ?Washington Post?, ativista da causa negra.
Os inimigos mais ferozes dizem que Raines disfarçava a estatura de Napoleão Bonaparte dando passadas pela redação que lembravam John Wayne num faroeste – mas não há dúvida de que fez mudanças importantes. Durante sua gestão nas páginas de opinião, os editoriais perderam o tom banho-maria para se tornarem peças mais claras e diretas. Há menos de dois anos no comando da redação, liderou coberturas memoráveis e cravou uma safra recorde de seis Pulitzer na tragédia do 11 de Setembro. Duas décadas atrás Raines talvez pudesse manter-se no cargo. Não agora, quando os grandes jornais se tornaram atração de um mundo que, no passado, costumavam apenas cobrir.
Se décadas atrás os detalhes mais escabrosos das redações ficavam para os livros de memória, há novos costumes deste admirável século novo, onde os bastidores da imprensa são examinados com a mesma curiosidade e transparência que envolvem outras fontes de poder social. Ao longo de semanas as peripécias de Blair e as queixas contra Raines circulavam nas principais redações via internet, ajudando a criar um inferno renovado por informações confidenciais e toneladas de fofocas.
Diálogos agressivos eram motivo de risadas entre concorrentes e provocavam perplexidade nos escalões superiores da empresa. Vazamentos importantes alimentaram uma reportagem de capa da ?Newsweek?, a segunda maior revista semanal do país, dando ao episódio uma dimensão nunca vista.
Pesquisa mostra desconfiança sobre fraudes
Quando as pesquisas de opinião informaram que a credibilidade da imprensa estava em queda, ficou difícil deixar de pensar no jornal que Raines dirigia. Uma enquete da internet mostra que mais de 80% das pessoas ouvidas consideram que fraudes e plágios da imprensa são muito mais freqüentes do que se imagina.
– Ficou claro que Raines perdera o controle da situação e não podia administrar a crise – afirmou ao GLOBO uma fonte familiarizada com o caso.
Três semanas depois de dizer que não aceitaria a saída de Raines mesmo que ele a pedisse, Arthur Sulzberger Jr., que representa a família dona do jornal há 102 anos, reuniu a redação para anunciar a mudança. Trouxe um antigo diretor para ficar provisoriamente no cargo e disse que estava de coração partido. Ouviram-se comentários de alívio, soluços e alguns palavrões – e assim o ?New York Times? enfrenta uma hora grave em sua história.”
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“A farsa do pequeno Jimmy”, copyright O Globo, 8/06/03
“Existem jornalistas que erram e aqueles que mentem. O primeiro caso é de gravidade relativa como falhas e deslizes que acompanham todas as profissões. As mentiras dos jornalistas revelam outros traços de comportamento. Jayson Blair ficou conhecido pela conversa cativante e postura envolvente em jantares sociais. Janet Cooke, a repórter do ?Washington Post? que criou um personagem de ficção – um menino de 8 anos, negro, viciado em heroína -, era tão convincente que foi aprovada pela maioria dos editores do jornal encarregados de sabatiná-la antes de lhe dar um emprego.
Ninguém achou que deveria conferir os dados biográficos. Uma lástima, pois ela gabava-se de títulos acadêmicos que não possuía. Também se dizia versada em diversas línguas, inclusive português.
Tema dramático do livro de memórias de Ben Bradley, que dirigia
o ?Post? na época, Janet é descrita como profissional ?boa demais
para ser de verdade?. Para dar verossimilhança ao pequeno Jimmy, foi
capaz de descrevê-lo com ?olhares aveludados? e uma ?expressão
de querubim na face?. Um colega desconfiou da história mas seus receios
foram considerados ciúme profissional. Uma investigação
interna mostrou que um desastre desses só ocorre quando os controles
internos falham. Teria sido fácil evitar a publicação a
partir de cuidados banais, como cobrar de Janet o endereço do menino.
O ombusdman do jornal concluiu que havia erro maior: os editores abandonaram
o celebrado ceticismo da profissão.”
“?Uma credibilidade abalada desde a guerra do Iraque?”, copyright O Globo, 8/06/03
“Professora doutora do Departamento de Jornalismo da USP, Mayra Rodrigues Gomes é uma das maiores teóricas de ética no jornalismo do país. Para ela, a reação do ?Times? ao caso Jayson Blair retrata o contexto do jornalismo americano depois da guerra no Iraque.
Qual a importância do caso Jayson Blair para o ?New York Times? e, mais amplamente, para a imprensa americana?
MAYRA GOMES: Estenderia a importância a toda a imprensa internacional. Veja a repercussão que isto está tendo. O ?Times?, primeiramente, fez uma autocrítica pública. Depois, houve as demissões. Tudo isso tem uma grande importância mostrando o tipo de atitude que seria desejável no jornalismo sério de maneira geral. Como transparência, pois se espera que a criação de uma notícia jamais aconteça. E é exemplar, porque se espera que, caso isso ocorra, a empresa assuma as devidas atitudes para sanar o problema.
A transparência das atitudes tomadas pelo jornal foram exemplares?
MAYRA: Acho que sim. O ?Times? agiu segundo o que é desejável, mas associo a proporção que o caso assumiu à questão da credibilidade da mídia em geral que foi levantada com o que chamamos de guerra da informação durante a guerra do Iraque. Ao tornar o caso uma matéria de primeira página, o ?Times? estava, mais do que exercendo uma atitude disciplinar, precavendo-se quanto à questão da credibilidade da imprensa americana, já abalada. Havia o lado disciplinar, fazer um mea-culpa, mas também um medo de uma credibilidade já um pouco ameaçada desde a guerra. Não coloco o ?Times? como exemplo, mas a imprensa americana como um todo, principalmente a mídia televisiva.
As medidas tomadas são suficientes para restaurar a credibilidade do jornal?
MAYRA: Para um jornal do tamanho do ?Times?, em princípio, sim. Isso demonstraria que este é um gesto em prol da transparência e da credibilidade que são esperadas dele. Mas há uma coisa neste caso que me incomodou. A atuação de Blair durou quatro anos, muito tempo. Não se notou ou por negligência ou porque interessava à linha editorial do jornal aquele tipo de matéria que ele estava construindo.
O fato de Jayson Blair ser negro e haver uma discussão na imprensa americana sobre a diversificação racial pode ter sido um agente complicador?
MAYRA: Diria que, na atual situação, é mais fácil demitir um branco do que um negro. Segundo o que li, e vou confiar nas palavras dos jornais, Blair falou da (cita reportagem de um jornal) ?pressão por ser jovem e negro?. Ou seja, se isto que estou lendo for verdade, está usando o fator ?ser um jovem e negro? pressionado a produzir e daí ter recorrido à invenção das notícias. O que é um fantástico argumento.
A senhora usou expressões como ?vou confiar nas palavras dos jornais? e ?se o jornal foi verdadeiro?. Para uma teórica do jornalismo, isso pode ser normal, mas estas questões podem passar a ser feitas mais freqüentemente pelo público em geral depois do caso Blair?
MAYRA: Eu, professora de ética no jornalismo, tenho de ser cautelosa. Mas o resultado desta história é que nós, leitores, não temos uma garantia. A única garantia é a credibilidade de que o jornal goza. Se isso fica abalado, o que aconteceria com o leitor? Ia ser o tempo todo ?se, se…? Se esta fórmula for adotada por um leitor, temos um problema seriíssimo. Mas não acho que esta é a prática do leitor comum nem que se tornará mais comum depois disso.”