Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paulo Roberto Pires

MEMÓRIA / PIERRE BOURDIEU

"O homem que não foi Sartre", copyright no. (www.no.com.br), 24/01/02

"Pierre Bourdieu morre como o sociólogo mais citado em trabalhos acadêmicos de todo o mundo. O que diz, sem dúvida, do êxito fulgurante de sua carreira e, também, da diversidade impressionante de temas que abordou: literatura, economia, fotografia, arte, filosofia, política. Quis, como lembrou Jacques Derrida em depoimento ao ?Le Monde?, construir uma hipercrítica, que abraçasse o mundo para entendê-lo melhor. Se não conseguiu isso em seus 71 anos, deixa ao morrer, vítima de um câncer jamais anunciado, uma imagem no mínimo ambígua, do crítico impiedoso dos meios universitários que ocupava os mais altos postos na competitiva academia francesa, do indignado analista dos meios de comunicação que viveu seus últimos anos como estrela absoluta da mídia.

Bourdieu, assim como Derrida (1930), Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995 ), iniciou sua carreira acadêmica na década de 50 e, assim como eles, cresceu à sombra de Jean-Paul Sartre, imagem mais bem acabada da instituição francesa que é o intelectual politizado e militante das grandes causas. Os ventos libertários de 1968 empurraram esta geração brilhante das salas de aula para as ruas e, ao longo da década de 70, o que se viu foi uma lenta troca de guarda, com Foucault cada vez mais no centro das atenções a partir da morte de Sartre, em 1980. Foi um ciclo curto e a morte do próprio Foucault, em 1984, foi o início de um deserto de homens e idéias – e não só na França.

É a partir do final dos anos 80 que o militante Pierre Bourdieu – desde 1982 titular a cadeira de Sociologia do Collège de France, o topo do topo da carreira de um intelectual francês – ganha terreno sobre o influente sociólogo, que já havia publicado obras importantes com ?A profissão do sociólogo? (1968), ?A reprodução?(1970) e ?A distinção? (1979) e fundado a ?Actes de la recherche en sciences sociales?, revista que se tornou vitrine e referência na área. Seus pronunciamentos públicos são cada vez mais constantes e o impressionante ?A miséria do mundo? – um apanhado de entrevistas que são um mapeamento de como a miséria se produz no mundo de hoje – sela seu inequívoco comprometimento com causas sociais. E, assim como Sartre foi a voz de defesa da liberdade ao longo das grandes crises políticas e sociais do século XX, Pierre Bourdieu se fez progressivamente a voz que organizou o movimento de protesto contra a nebulosa de idéias, regimes e políticas que ele denominou ?a invasão neoliberal?.

Na onda de greves de 1995, motivadas por alterações no sistema de securidade social e aposentadorias, Pierre Bourdieu se tornou uma das vozes mais poderosas, discursando em manifestações indo à televisão e aos jornais em defesa dos trabalhadores. Era o início da última e provocadora fase de sua carreira. Tempo de uma atuação estratégica a frente da Raisons d?Agir, selo editorial que, beneficiando-se da distribuição da poderosa Seuil, espalhou pelo mundo livrinhos baratos (em torno de 5 dólares) fundados na participação política direta. A coleção foi inaugurada por polêmico ?Sobre a televisão?, que saiu aqui pela Zahar, também editora dos dois volumes de ?Contrafogos?, coletâneas de textos de ocasião, entrevistas e discursos desta militância anti-neoliberal.

Mesmo sem admitir ou preferindo mesmo ignorar, Pierre Bourdieu mediatizou-se tanto quanto muitos dos nomes que criticava na cultura francesa. Se seu pensamento tinha peso efetivo e não se confundia de forma alguma com as reflexões ?fast-thinking? (a expressão é dele) de um Bernard Henri-Lévy, a vasta obra panfletária também não prezava pela complexidade, satisfazendo plenamente uma indignação humanista de qualquer profundidade e avançando pouco, muito pouco, além do óbvio que pulula nas críticas mais ligeiras à ordem econômica globalizada.

Como os grande mestres franceses, viu desenvolver-se em torno de si uma legião de seguidores que ao longo dos anos vêm cuidando de defendê-lo de todo tipo de crítica – e foram muitas contundentes como os livros de Jeannine Verdès-Leroux (?Le Savant et la Politique – Essai sur le terrorisme sociologique de Pierre Boudieu?) e Daniel Schneidermann (?Le journalisme après Bourdieu?). Não deixou de perpetuar também, o sistema de vassalagem acadêmica que os meios universitários brasileiros absorveram tão bem da matriz francesa.

Entrevistei-o duas vezes, uma em longa troca de faxes, outra pessoalmente. Em abril de 1998, Pierre Bourdieu me recebeu no anexo do Collège de France da Cardinal Lemoine, mesmo prédio onde trabalhou Georges Duby e funciona até hoje o laboratório de antropologia de Claude Lévi-Strauss. Ao encontrá-lo foi impossível não lembrar do azedo comentário de E. M. Cioran sobre Sartre: parecia um ?empresário das idéias?. Distante, duro, de uma sobriedade estudada, falava sobre ?A miséria do mundo?, que a Vozes lançava por aqui, como se emendasse verdades indiscutíveis. No único momento informal, quis saber mais sobre o Programa do Ratinho, que ganhara uma matéria no ?Le Monde?.

No Brasil, teve influência decisiva sobre parte do excelente trabalho sociológico de Sérgio Miceli, um amigo e interlocutor constante. Foi um convidado sempre esperado e nunca presente ao Fórum Social de Porto Alegre, talvez o melhor exemplo de como sua militância recente encontrava ramificações e adeptos de toda espécie. Seu último livro teórico foi ?As estruturas sociais da economia?, de 2000, e acaba de sair na França a coletânea ?Intervenções políticas (1960-2000)?, organizada por Franck Poupeau.

Como tantos outros de seus contemporâneos, Pierre Bourdieu quis ser Sartre. Conseguiu prestígio e difusão mas faltou-lhe o libertarismo radical do filósofo que esticou ao limite a inquietação existencial do homem contemporâneo. Uma radicalidade que também esteve no discurso de Michel Foucault, desestabilizador de certezas e idéias, da sexualidade à justiça. Talvez em tempos neoliberais o grande intelectual seja precisamente isso, um voz que ecoe na mídia globalizada lembrando que o humanismo não pode ser de tal forma sobrepujado pela assepsia dos mercados e planejamentos. Mas revolução e revolta são uma outra história."

 

"O sociólogo militante", copyright Jornal do Brasil, 25/01/02

"Considerado o maior nome da Sociologia na França, responsável por uma renovação das Ciências Sociais que alcançou universidades de todo o mundo, Pierre Bourdieu morreu de câncer, aos 71 anos, na noite de quarta-feira no Hospital de Saint-Antoine, em Paris. Titular desde 1982 da cadeira de Sociologia do Collège de France, Bourdieu seguiu, a partir dos anos 90, uma tradição da vida cultural francesa – que vai de Émile Zola a Jean-Paul Sartre – ao projetar-se cada vez mais como um intelectual público, protagonista de polêmicas na imprensa e engajado em causas políticas. ?Não há democracia efetiva sem um verdadeiro contra-poder crítico. O intelectual é um deles – e de primeira grandeza?, disse certa vez. Apesar das críticas ferinas de Bourdieu à classe política, o primeiro-ministro da França Lionel Jospin, numa mensagem de condolências, afirmou que o país perdeu ?uma grande figura de sua vida intelectual?.

Embora tenha firmado sua reputação nos meios acadêmicos entre os anos 60 e 80, foi só na última década que Bourdieu tornou-se conhecido de um público mais amplo, ao assumir o papel de ideólogo do movimento antiglobalização. A imagem do militante acabou se fundindo ou se sobrepondo à figura do professor e pesquisador. Ao comentar essa dicotomia – para ele falsa -, Bourdieu escreveu num de seus últimos livros, Contra-fogos 2 (Editora Jorge Zahar): ?Pela lógica do meu trabalho, fui levado a ultrapassar os limites em que me tinha fixado em nome de uma idéia de objetividade, que passei a ver como uma forma de censura.?

A guinada de Bourdieu, marcada pelo lançamento em 1993 do livro A miséria do mundo (Editora Vozes), aproximou o intelectual dos movimentos sociais e lhe trouxe a amizade de personagens como José Bové, o agricultor francês que ficou famoso ao depredar uma loja de McDonalds em seu país. ?Para ele, a própria vida já representava um engajamento?, disse Bové, diante da notícia da morte do amigo.

Crítica – Para alguns colegas do mundo universitário, no entanto, a militância de Bourdieu teria roubado parte do rigor acadêmico de sua obra. Ao comentar a morte do sociólogo para o jornal Le Monde, Luc Boltanski, diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, preferiu distinguir entre ?uma obra importante e discutível, no bom sentido do termo, e a propaganda dos últimos anos, promovida por um grupo de seguidores dogmáticos?. Segundo Boltanski, ?como ocorreu com o lacanismo, ele tinha à sua volta, uma espécie de pequeno grupo de seguidores autoproclamados. A parte de sua obra que considero mais interessante é a que se refere à Antropologia. O mais discutível é o endurecimento do seu sistema a partir da metade dos anos 70, com uma forte tendência positivista.?

O francês Louis Pinto, discípulo de Bourdieu que publicou há dois anos um livro sobre o sociólogo, Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social (Editora FGV), explica que a originalidade de sua obra trouxe ?uma nova maneira de ver o mundo social? pela qual ganham maior relevância ?as estruturas simbólicas?. Mas, se numa primeira fase Bourdieu priorizava, entre estas estruturas, a educação, a cultura, a literatura e a arte, nos últimos anos procurou dissecar a mídia, a política e a economia.

Para o filósofo francês Jacques Derrida, o mundo perdeu ?uma grande e original figura?, cuja maior contribuição foi ter tentado criar ?uma sociologia da Sociologia?."

 

"O amigo brasileiro do mestre", copyright Jornal do Brasil, 25/01/02

"O artigo é praticamente inédito – só foi publicado numa pequena revista acadêmica francesa – e vai constar do derradeiro legado de Pierre Bourdieu. Na terça-feira passada, o professor Daniel Lins, da Universidade Federal do Ceará, recebeu uma carta do mestre tratando dos detalhes da edição do texto Dois imperialismos do universal, escrito há cinco anos, no qual o sociólogo antecipa com impressionante precisão as conseqüências da hegemonia norte-americana. O trabalho fará parte da coletânea Repensar a América, que será em breve lançada pela editora Papirus.

Na carta o francês contou ao amigo, pela primeira vez, sobre a doença que o consumia. ?Estou profundamente doente e minha situação é grave?, disse, justificando a demora em escrever sobre a publicação do artigo. Lins, de 52 anos, e Bourdieu se conheceram em Paris, há 15 anos, e o cearense logo entrou para a órbita dos acadêmicos que gravitavam em torno do fascinante professor. Quando voltou ao Brasil, há nove anos, manteve estreito contato com Bourdieu, que passou a colaborar com os livros organizados por ele.

Em 1999, foi um dos autores presentes em Cultura e subjetividade: saberes nômades e, no ano 2000, em A dominação masculina revisitada. No ano passado, sempre pela Papirus, Lins publicou uma longa entrevista com Bourdieu, O poder simbólico econômico. Para este novo livro, Bourdieu sugeriu a reedição do texto que havia passado em brancas nuvens. Em sua análise, o sociólogo francês aponta que, num trágico fait-divers, a América se impôs como verdade única – tendo como símbolo o homem branco, alto e ocidental. ?Ele deu à Sociologia, que antes fazia apenas constatar, o pensamento típico da Filosofia?, define Lins. Que, porém, guarda uma lembrança mais singela do professor: o dia em que, num café em Paris, Bourdieu dissertava sobre a complexidade social enquanto, fazendo as vezes de garçom, servia croissants ao discípulo."

 

"Bourdieu fez crítica à TV", copyright Jornal do Brasil, 25/01/02

"Nascido em 1930 numa família de origem camponesa, Pierre Bourdieu ensinou em Moulins, em Argel, em 1958, quando crescia o movimento pela independência da Argélia, e em Lille, no Norte da França. Em 1964 o sociólogo havia chamado atenção ao publicar, com Jean-Claude Passeron, o livro Les héritiers – Les étudiants et la culture{/H1} (Os herdeiros – Os estudantes e a cultura), no qual, antes dos protestos de maio de 68, já fazia uma ácida crítica ao sistema universitário francês. Os dois desenvolveram na época o conceito de ?capital cultural?, segundo o qual a expressão simbólica teria um ?valor de troca?, semelhante ao do dinheiro e da propriedade.

Com suas intervenções marcadas pelo bom humor, a figura de Bourdieu tornou-se familiar a um público mais amplo, para além dos limites da universidade. Em 1980, ele deu seu apoio à ?anticandidatura? do humorista Coluche à presidência da França.

Idealista – Depois de começar a ter publicados nos jornais artigos e entrevistas, Bourdieu passou a ser ouvido também pelas emissoras de TV, na qual os espectadores se habituaram a ouvir suas posições. Os temas poderiam ir da relação entre os sexos – ele é autor de A dominação masculina, publicado pela Editora Bertrand – até os males do neoliberalismo.

Num de seus mais de 40 livros, Sobre a televisão (Editora Jorge Zahar), o sociólogo pinçou este veículo como o exemplo mais gritante da ?lógica comercial? que domina toda a mídia. Para José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, atual consultor da TV Globo, o livro de Bourdieu revela ?um acadêmico brilhante, mas bastante distante da realidade. Na prática, o que ele dizia não tinha aplicação?. Segundo Boni, Bourdieu achava que a TV tinha que ir além de entretenimento: ?Ele tinha horror à produção – incluindo edição, maquiagem, gráficos – e ao mercado. Para ele, era preciso eliminar isto para conseguir o maior grau de pureza do veículo. Só que não dá para bancar esta TV. Por isso, não o considero um crítico, mas sim um idealista, já que ele não oferecia um caminho viável. Mesmo assim, foi um acadêmico importante. Para quem sabe ler o que ele estava querendo dizer, é uma grande contribuição.?

Entre 1964 e 1980, Bourdieu assumiu a direção da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. À frente da instituição, ele e sua obra nortearam a formação de gerações de intelectuais franceses e de outros países, inclusive do Brasil.

Intelectuais públicos – Carlos Benedeto Martins, professor do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, depois de assistir, em 1982, à aula inaugural de Bourdieu no Collège de France, participou também de vários seminários fechados com o sociólogo: ?Ele não falava mais do que dez minutos. Ouvia muito, escutava o que os alunos tinham a dizer de seus próprios trabalhos, fazia algumas observações e se retirava. Mas era muito claro, muito inteligente. No começo deste ano, estive em Paris e estava sendo exibido em um pequeno cinema o documentário sobre ele, La sociologie est un sport de combat (A sociologia é um esporte de combate) e estava lotado. E não de intelectuais, mas de jovens estudantes. E eles se divertiam, riam com o filme.?

Na opinião de Michel Misse, sociólogo, professor do Instituto de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ?até os anos 70, entre os acadêmicos franceses havia a tradição dos intelectuais públicos, que, além da carreira universitária, tinham também forte presença na sociedade. Mas essa tradição se desfez. Os últimos grandes intelectuais públicos foram Sartre e Merleau-Ponty. Hoje, voltaram a existir uns poucos e Bourdieu foi quem resgatou isso?.

O sociólogo exerceu influência marcante no pensamento universitário brasileiro, afirma Luís Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj): ?É o autor estrangeiro mais citado na bibliografia brasileira. Um orientando meu, Manuel Palácios da Cunha e Mello, em sua tese Quem explica o Brasil, mostra essa presença. É o pensador mais influente nas Ciências Sociais daqui.?"