Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paulo Roberto Pires

COBERTURA DA GUERRA

"O engajamento da literature", copyright Jornal do Brasil, 06/04/02

"Lugar de intelectual é na rua. Na semana passada, José Saramago, Wole Soynka e Russel Banks lembraram ao mundo essa velha máxima, metendo-se no olho do furacão do Oriente Médio. Ao visitar Yasser Arafat, representando o Parlamento Internacional dos Escritores {www.autodafe.org}, quebraram a neutralidade com que se tem noticiado a truculência do exército israelense. Saramago exagerou e comparou a política de Ariel Sharon com o extermínio organizado de Auschwitz, despertando indignação e detonando protestos não menos exagerados, típicos de um mundo viciado em consenso e refratário a dissonâncias. Antes de engrossar o coro da suposta imparcialidade e do pretenso equilíbrio que minimiza a visita a Ramalah como cacoete politicamente correto e demagogia, vale folhear Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Nele, o ensaísta francês Benoît Denis conta, de forma simples e direta, como entrou em cena este personagem hoje marginalizado, o escritor engajado.

Lançado na França em 2000, o livro ajuda a entender melhor por que, sobretudo em tempos de crise, fica difícil refugiar-se na linguagem e na forma ou fingir que o mundo não está na porta, pegando fogo. Na mesma semana em que Arafat recebia a delegação em seu QG, a revista Courrier International reunia num dossiê {www.courrierinternational.com/mag594/somEnLgn.htm} intervenções de 23 escritores que, por motivos diferentes em épocas diversas, se viram na mesma situação de Émile Zola em 1898, quando denunciou no panfleto Eu acuso o anti-semitismo embutido no processo por suposta espionagem movido contra o capitão Alfred Dreyfus. Hoje, a indiana Arundhati Roy enfrenta até cadeia no protesto contra a política nuclear de seu país, o italiano Claudio Magris pede que a esquerda mude para enfrentar Berlusconi, o japonês Kenzaburo Oe troca cartas com o palestino Edward W. Saïd para entender melhor as relações Oriente-Ocidente, Mempo Giardinelli destila uma revolta sangüínea com o sucateamento da Argentina onde nasceu e vive e o inglês Julian Barnes lembra o absurdo da Guerra das Malvinas.

Não é difícil entender porque, na virada do século 21, qualificar um escritor ou artista como ??engajado?? passou de elogio a ofensa. Em sua origem, a imagem do artista atuante na sociedade está intimamente ligada à idéia de insurgência e quebra de ordem. No século 20, nenhum evento simbolizou melhor este ideal do que a Revolução de 1917 e, também, nenhum outro foi tão sinônimo de desilusão e fracasso quanto o fim do regime por ela implantado. Por isso, no dicionário do mundo globalizado, ??engajamento?? é verbete do passado, eco de uma época em que conceitos e posicionamentos eram necessariamente repartidos pelos dois grandes blocos ideológicos, com o mínimo de sutileza possível.

Militância – Falar em ??literatura engajada?? não se confunde, no entanto, com a vulgata da militância socialista. A expressão diz mais das formas pelas quais arte e sociedade se relacionam através da História. Sem derrapar na platitude, sem dúvida confortável, de que ??toda literatura é engajada??, Benoît Denis procura mostrar como esta expressão vai ganhar, nas diversas configurações sociais, o valor que se deu a ela no mundo moderno. Tudo começa na França de meados do século 19, quando os escritores começam a adotar ??uma série de atitudes e de posturas destinadas a distingui-los do homem comum e a reagrupá-los no seio de uma aristocracia simbólica??. O mundo literário, observa o autor, se afirma como um universo à parte da sociedade, uma elite que, assim como a universidade, produz e distribui o conhecimento.

O ??caso Dreyfus?? vai impor um corte a esta lógica. Quando bota a boca no trombone, Zola deixa de ser simplesmente o criador de mundos ficcionais para, não sem grandes doses de idealismo, fazer das palavras uma arma. É a entrada de cena do personagem fundamental desta história, o ??intelectual??. Escritores e acadêmicos passam a ser assim chamados na medida em que usam ??a competência que lhe é reconhecida para emitir opiniões de caráter geral e intervir no debate sócio-político??, abrindo portas e passagens entre o conhecimento a sociedade. Sem cometer o anacronismo de considerar Pascal ou Voltaire como intelectuais avant la lettre, Denis analisa a atuação social dos dois, bem com as de Victor Hugo e Chateaubriand para mostrar que eles funcionaram como ??figuras tutelares?? para os rumos do debate público do século 20.

O terceiro e decisivo movimento que dá sentido ao engajamento moderno é o que Denis chama de ??tropismo revolucionário??, o elogio da transformação social inspirado pela Revolução de 1789 e, como se viu, logo projetado na tomada de poder na Rússia. A existência concreta, pelo menos em tese, de uma sociedade sem classes desestabiliza todas as outras e, é claro, torna incerto o lugar do escritor. A participação política torna-se uma exigência e vai ser interpretada de diversas formas, do panfletarismo mais esquemático, que acreditava transformar romances ou peças em didáticas doutrinações, às vanguardas organizadas que não acreditam em arte revolucionária sem forma revolucionária. Jean-Paul Sartre, observa Denis, vai ser a síntese das diversas exigências sociais do escritor, dominando, entre as década de 40 e 50, o figurino do autor engajado. Como poucos, o autor de As palavras vai transitar entre conhecimentos específicos (em seu caso a filosofia) e intervenções gerais na sociedade, passando por todos os gêneros de expressão possíveis e imagináveis, do teatro ao jornalismo, do romance ao ensaio ou o roteiro de cinema.

O fato de Benoît Denis centrar a pesquisa na história francesa não limita seu trabalho, pois esta pequena história do engajamento traça na verdade as matrizes universais do intelectual clássico. Por opção, a narrativa termina em Sartre e em considerações mais breves do que se poderia esperar sobre o ??refluxo?? do engajamento. O que deixa uma lacuna considerável diante das infinitas formas possíveis da participação política dos escritores nos anos 90. Da retomada de um modelo sartriano por Pierre Bourdieu à fragmentação das ficções de minorias ou etnias, os contratos entre literatura e sociedade ainda estão longe de chegarem ao esgotamento sugerido no menosprezo da visão de mundo hoje dominante, que promete ceticismo e imparcialidade mas só consegue produzir clichês tão surrados quanto os que pretende criticar."

 

"O que ainda é sagrado?", copyright Jornal do Brasill / The Independent, 04/04/02

"Corpos apodrecendo nas ruas de Belém, soldados israelenses cercando milicianos palestinos e civis no local onde Jesus nasceu. A guerra mais recente de Israel se transforma numa tragédia política e humana enquanto os últimos símbolos físicos da paz de Oslo são destruídos. Por dois dias, os homens-bomba foram silenciados. Mas as semanas que virão decidirão o futuro da Terra Santa.

Se a Basílica da Natividade é agora um campo de batalha, com homens armados e civis sob cerco, o que ainda é sagrado? Recebi um telefonema de Sami Abda no meio da tarde de quarta-feira. Na véspera, contou, soldados vieram à sua casa no centro de Belém e, a despeito do aviso dos vizinhos de que ali moravam também mulheres e crianças, os militares disseram que caçavam ??terroristas?? no prédio e abriram fogo.

Sami Abda chorava. Essas foram suas exatas palavras. ??Eles fizeram 18 buracos de balas na porta da frente. Atingiram minha mãe, Sumaya, e meu irmão Jacoub. Minha mãe tinha 64 anos, meu irmão 37. Os dois caíram. Chamei ajuda para tentar levá-los ao hospital. Mas não havia ninguém. Eles estavam morrendo. Quando a ambulância chegou, um oficial israelense impediu que entrasse na nossa rua. Então, estamos há 30 horas vivendo ao lado dos corpos de minha mãe e meu irmão. Trancamos as crianças no banheiro para que não os vissem. Por favor, nos ajude??.

A pergunta insistente – o que é sagrado? – poderia ser feita novamente por qualquer um que tivesse lido o Jerusalem Post esta semana: uma página inteira de pequenas fotos de dúzias de civis israelenses feitos em pedaços pelos terroristas-suicidas palestinos em apenas um mês. Uma adolescente nas fotos tinha a mesma idade da garota palestina que destruiu sua vida. Uma página de horror e miséria.

A guerra é um componente da tragédia humana. Mesmo enquanto Sami Abda tentava proteger suas crianças do sangue da avó e do tio, uma jovem médica era baleada na cabeça e morta dentro de sua casa em Jenin quando 30 tanques invadiram a cidade do nordeste da Cisjordânia e enfrentaram a resistência palestina. Eles invadiram ainda Salfat e a antiga Nablus.

Em Ramala, palestinos exigem uma investigação – evidentemente não haverá nenhuma – para apurar a morte de cinco policiais, executados por soldados em um pequeno quarto. Foi uma batalha, dizem os israelenses. Mas as balas que os mataram aparentemente foram disparadas a curta distância.

Mais de mil prisioneiros foram feitos até agora e, salvo uma dúzia mais ou menos, ninguém sabe onde estão ou se estão vivos. Um grupo de várias dúzias de homens foi transportado para um assentamento dentro dos territórios ocupados antes de ser levado.

Então o Estado de Israel esmaga qualquer esperança de um Estado da Palestina? Uma frágil flor de esperança surgiu ontem no frio e chuvoso posto de controle de Kalandia, nas cercanias de Ramala. Judeus e árabes israelenses, acompanhados por um grupo de manifestantes ocidentais, cuja coragem tem sido tristemente reconhecida nos últimos dias, decidiram pedir paz e um fim à ocupação. Existe vida depois da guerra. Mas existirá uma Palestina? Será que o mundo, com essa reocupação, verá a Palestina como viu a Bósnia, o Kosovo ou o Timor Leste?

Hanan Ashrawi, uma das poucas figuras palestinas com credibilidade, também é uma das poucas vozes sãs nessa guerra. Exausta, bolsas sob os olhos, mantendo-se acordada com canecas de café, ela me falou com voz de resignação em Jerusalém. ??O acordo de Oslo está sendo desconstruído, deliberadamente. Sharon tem sido obsessivamente consistente. Ele sempre disse que queria o fim desse acordo. E essa reocupação estava planejada há muitos meses. Mas não teve habilidade para perceber as ramificações dessas ações. Sua tentativa de destruir Arafat falhou e deu a ele mais legitimidade entre os palestinos. Todo mundo, a esquerda, a direita, o centro, os radicais, os islâmicos, estão todos ao lado dele agora. Assim não se espera que alguém proponha que haja outro líder??. Poderia ser verdade, que as fraquezas de Arafat tivessem se transformado em força, que o poder militar de Sharon esteja virando a fonte de sua fraqueza? Por mais que o exército israelense comemore o sucesso retumbante que proclama, porque não deseja jornalistas como testemunhas dessa grande vitória?

Enquanto a União Européia, o Conselho de Segurança da ONU e a Liga Árabe se reunia nesse ponto crucial da história do Oriente Médio, a última guerra colonial do mundo entre uma nação que multiplica assentamentos e um povo sob ocupação entrou em sua mais grave fase.