REBELIÃO NOS PRESÍDIOS
Luiz Egypto
Surpresa. Espanto. Temor. O domingão, 18 de fevereiro, foi sacudido por uma rebelião dotada de requintes de violência e de apuro logístico, que tomou conta de 29 presídios em 19 cidades paulistas, fez cerca de 10 mil reféns, ofereceu imagens espetaculares às emissoras de TV e provocou 19 mortes.
Planejada para explodir no dia tradicional de visita aos presos, a rebelião sacudiu a pasmaceira dos plantões das redações paulistas, mobilizou helicópteros a granel e mudou a pauta dos indefectíveis gugus e faustões das tardes de domingo na TV. Flashes ao vivo, imagens de sangue, entrevistas ao telefone celular com presos rebelados, expressões de surpresa, espanto e temor – teve de tudo, até a manhã do dia seguinte, quando a situação foi finalmente controlada. E de toda essa imprevisibilidade (uma das características essenciais da notícia) emergiu uma sigla: PCC, iniciais de Primeiro Comando da Capital, organização criminosa gerada e amadurecida no ambiente dantesco das prisões paulistas – inferno, de resto, nada dessemelhante ao dos outros estabelecimentos penais do país.
"Muito comentado"
Com o avanço da noite domingueira, lá pelo meio do Fantástico, a platéia estupefata e inoculada com doses maciças de surpresa, espanto e temor já havia elegido um novo foco de preocupações para subsidiar seus piores sonhos – o PCC. Mas por que só ali, naquele momento? Por que nunca tinha ouvido falar da capacidade dessa organização em alinhavar conexões tão amplas e com tamanho poder de articulação?
A mídia comia mosca e não sabia? Sim e não. Apenas, e mais uma vez, deu-se a exposição sem retoques de uma faceta nada edificante da tríplice deformação que toma conta do jornalismo pátrio: o desleixo com a investigação, a opção pelo jornalismo declaratório e a adoção da fórmula (barata, muito barata) de entrevistar pessoas e apurar informações pelo telefone.
A partir de 18 de fevereiro, entretanto, começou a desabalada correria atrás do prejuízo. O PCC virou pauta obrigatória na cobertura e a sigla passou a marcar presença nas primeiras páginas, nos principais títulos internos, nas chamadas dos telejornais e nas perorações radiofônicas.
Embora criado em 1993 – de acordo com documento "oficial" da organização, o "Estatuto do PCC", reproduzido pelos jornais –, foi preciso uma rebelião com aquele grau de violência para que a imprensa descobrisse a existência do agrupamento cujo lema é "liberdade, justiça e paz" e que pretende ser conhecido como "sindicato" representativo de pelo menos 93 mil encarcerados no estado de São Paulo. De sua parte, o aparelho de Estado também foi surpreendido de calças curtas. "O governo tem algum mapeamento das facções [criminosas organizadas nos presídios]?", perguntou a Folha de S.Paulo [25/2/01] à secretária nacional de Justiça Elizabeth Sussekind. "Não. Queremos fazer isso agora, com os Estados", respondeu a autoridade. Já não era sem tempo. A aplicação plena da Lei de Execuções Penais, promulgada em 1984, talvez fosse um bom começo, malgrado os 17 anos de atraso.
"A dimensão [da rebelião] foi acima de todas as expectativas", admitiu à Veja (edição 1689, 28/2/01) o secretário paulista da Segurança Pública, Marco Vinício Petrelluzzi. Seu colega de gabinete, o titular da Administração Penitenciária Nagashi Furukawa, disse em entrevista à Folha (24/2/01) que "o PCC era muito comentado, muito antes de eu ser secretário. Tanto que o secretário que me antecedeu também removeu vários presos para o Estado do Paraná".
Se muitos comentários houve, só a imprensa não ouviu – porque não perguntou. E se não ouviu antes, agora só fala nisso. Com atenção tão desmedida, hoje é capaz de identificar a presença do PCC em qualquer canto, ação ou personagem que tenham a ver com presos e presídios. Se os repórteres não trazem as histórias da rua, os editores encarregam-se de construí-las na redação. Fiquemos em dois exemplos, ambos da Folha, maior jornal do país e sediado no epicentro da grande rebelião.
Pauta sem rumo
"PCC negocia e ‘controla’ a revista feita no presídio de Araraquara", informa título no pé da capa do caderno Folha Vale [27/1/01]. Ao ler a matéria, descobre-se que, de acordo com o comandante da PM local, tenente-coronel Nicolau Waldemar Lambort, o diretor da penitenciária de Araraquara, Jorge Bento de Camargo, negociou com os presos o abrandamento das revistas – "que visavam encontrar armas, drogas e telefones celulares" – e, com isso, teve a garantia de não haver mais rebeliões. "Não sei se o pessoal com quem ele conversou é do PCC. Só sei que houve acordo", afirmou o policial militar à Folha.
Ele não sabia? Por que, então, o título crava que o "PCC negocia e ‘controla’" com base numa informação de segunda-mão? Mas o jornal, diligentemente, foi atrás da corroboração da tese que instruía a pauta: "A Folha falou com cinco agentes penitenciários e eles confirmaram que o acordo foi com o PCC". Pronto! Está fechado o círculo. Por que a "reportagem" não falou com seis agentes? Ou com quatro? Daria na mesma e, de todo modo, a "apuração" garantiria a "integridade" do título.
Segundo exemplo: "Presas ligadas ao PCC cortam os pulsos na Custódia" (segunda manchete, acima da dobra, da capa do caderno Folha Vale, 26/2/01). No lead da matéria está dito: "Duas detentas da Casa de Custódia de Taubaté – supostamente ligadas ao PCC – cortaram o pulso ontem à tarde…" etc etc. Supostamente? Ah, sim. Diz o texto, a linhas tantas: "Segundo agentes penitenciários ouvidos pela Folha, ela [uma das presas] teria participado, a mando do PCC, da rebelião ocorrida na Penitenciária Feminina do Tatuapé, em São Paulo, em dezembro passado". Teria participado? Mais adiante, a informação preciosa: "Patrícia e Andréia estavam na Casa de Custódia de Taubaté no dia 17 de dezembro do ano passado, quando foi iniciada uma rebelião liderada pelo PCC, que durou 33 horas e terminou com a morte de nove presos e a destruição da unidade". Tudo isso para sustentar, no título, que as presas eram "ligadas" ao PCC.
Ou o reportariado está investigando pouco ou definitivamente conformou-se com o ramerrão das edições preconcebidas.
O curioso é que na cobertura da mesma Folha para a mesma e referida rebelião de 17 de dezembro do ano passado, está lá escrito, com todos os efes e erres [Cotidiano, pág. C 3, edição nacional, 18/12/00], sob o título "Início da negociação demorou dez horas":
Segundo a PM, entre os cinco mortos na rebelião também estaria um detento, identificado apenas como Antonio Carlos, que seria um dos comandantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) no Vale do Paraíba. O PCC é uma organização criminosa que tem ramificações em vários presídios do Estado.
Isto quer dizer o seguinte: tanto quanto o secretário Furukawa, há tempos a imprensa sabia da existência do PCC. Mas contentou-se apenas com isso: "saber da existência". Dessa forma perdeu o rumo da pauta contínua, da suíte necessária. Não investigou porque perdeu a embocadura da investigação (com as solitárias exceções de praxe que apenas confirmam a regra). Por isso foi colhida de surpresa nos acontecimentos de 18 de fevereiro, em São Paulo, naquilo que todos os veículos já qualificam como "megarrebelião". E também por isso a mídia agora corre errática, encontrando PCC até debaixo da cama, produzindo matérias que vão do bombástico ao irrelevante, com o burocratismo de sempre. Dane-se o leitor e tome espetáculo.
"O crescimento da influência das facções criminosas como o PCC (…), experiências que sempre existiram no sistema penitenciário paulista (…) está diretamente ligado a dois fatores que o governo Covas/Alckmin busca negligenciar", anotou o deputado estadual Renato Simões (PT/SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo. "De um lado, a leniência dos órgãos de inteligência policial em tomar como objeto de estudo e investigação sérios a existência e o alastramento destes agrupamentos; e, de outro, a sedução das esperanças suscitadas na população prisional por esses grupos que vendem como mercadorias a proteção e a assistência que o Estado é incapaz de fornecer como direitos."
A crítica do parlamentar, dirigida ao governo paulista, cabe como uma luva na cobertura dedicada pela mídia à crise penitenciária do país.
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