Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pedofilia na pauta da mídia portuguesa

CASO CASA PIA

Joaquim Vieira (*)

Há mais de meio ano que a mídia portuguesa traz o país sobressaltado pelo chamado escândalo da pedofilia. O verdadeiro significado desta palavra tem sido conscientemente adulterado pelos jornalistas para amplificação do caráter sensacionalista do assunto. De uma perversão sexual que tem como alvo as crianças pré-adolescentes, a pedofilia passou a englobar tudo o que constitui relações carnais de adultos com jovens menores de 17 anos, ou seja, o que neste campo a letra da lei portuguesa não permite.

Só a guerra no Iraque permitiu aliviar um pouco a pressão midiática sobre o assunto, mas assim que Bagdá foi ocupada pelas tropas da coligação regressaram com força as manchetes e as aberturas dos jornais televisivos sobre um tema que se transformou em verdadeira obsessão nacional.

Diga-se, porém, que existe um autêntico caso de pedofilia em Portugal ? e se as autoridades judiciais o estão a investigar isso é mérito único e exclusivo da mídia.

Em novembro último, o semanário Expresso e a emissora de televisão SIC denunciaram a existência de centenas de violações de menores do sexo masculino, ao longo dos últimos 30 anos, na Casa Pia de Lisboa, uma instituição do Estado destinada a acolher e educar crianças órfãs ou de famílias pobres.

O assunto já andara nos anos 1980 pelos corredores da polícia e dos tribunais, mas, apesar da existência de provas concretas, nunca chegara a julgamento, tendo os processos sido abafados e destruídos. Nada indica que não voltaria a acontecer o mesmo se não tivesse havido desta vez (ao contrário da anterior) a pressão pública da mídia, tornando o tema presente no espaço coletivo e obrigando a Justiça a aprofundar investigações e a fazer detenções.

Métodos comuns

Mas logo o tema se revelou demasiado suculento para que os jornalistas prescindissem de o abocanhar todos os dias ? e mesmo assim está longe de ter perdido o sabor. A análise do que de bom e mau tem feito a mídia acerca do assunto daria um excelente curso para formação profissional em jornalismo. Sobretudo para alertar sobre o que não fazer:

** exibir na íntegra (durante cerca de 15 minutos), no noticiário do jantar, um filme erótico com crianças, feito por um médico pedófilo, obtendo-se assim o efeito contrário do que se diz denunciar;

** abusar do depoimento de testemunhas não identificadas, cujas afirmações não podem ser confirmadas por fontes delas independentes;

** não tentar ouvir os visados pelas denúncias, omitindo-se o contraditório, que é (ou devia ser) regra deontológica do jornalismo;

** ignorar a presunção da inocência de qualquer cidadão, até trânsito em julgado de uma sentença que o condene.

A detenção ou mera inculpação de celebridades públicas, acusadas de envolvimento numa possível rede pedófila montada a partir da Casa Pia, têm sido saboreadas como momentos de triunfo pela mídia, que se sente assim remunerada pela Justiça, no seguimento das suas categóricas denúncias.

É o que sucedeu com o mais popular dos apresentadores televisivos, com o mais talentoso dos humoristas, com um embaixador aposentado e com um dos mais promissores políticos da oposição. Mas nas redações diz-se (e espera-se) que a procissão ainda vai no adro, razão para muita gente se sentir desassossegada e se manter a expectativa sobre que formação política será atingida a seguir.

O Partido Socialista tem estado no centro do furacão, com a detenção do seu jovem dirigente Paulo Pedroso, deputado e ex-ministro que tutelou a Casa Pia, porta-voz e número dois na hierarquia dos socialistas. A liderança do PS, que defende veementemente a inocência do seu camarada aprisionado, reagiu de forma destemperada, com acusações veladas à Justiça e a denúncia de uma suposta cabala política que estaria na origem desta detenção. Mas da parte dos partidos do governo, visados com essa acusação, a atitude é mais de esperar para ver, pois não se sabe se as suas fileiras não virão também a ser atingidas.

Para gáudio dos jornalistas, a pedofilia colocou-se assim no coração da política portuguesa. Tão crítica noutras circunstâncias, a mídia nem sequer reparou (ou não quis reparar) na deficiente notificação enviada pelo juiz de instrução à Assembléia da República pedindo o levantamento da imunidade parlamentar de Pedroso, de modo a que ele pudesse ser processado.

Para convencer os deputados da culpa de Pedroso, o juiz incluía excertos de escutas telefônicas feitas ao dirigente socialista, que supostamente provariam o seu envolvimento. Mas eram conversas absolutamente banais, onde só uma mente paranóica poderia detectar sinais de conspiração ou de suspeita. Será que os métodos de investigação da mídia já contaminaram a Justiça portuguesa? E será por isso que a mídia preferiu não comentar estas escutas?

Maior independência, maior isenção, maior espírito crítico e maior abertura é o que falta à mídia portuguesa na cobertura do escândalo da pedofilia.

(*) Jornalista, presidente do Conselho Diretor do Observatório da Imprensa de Portugal

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