Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pedro Doria


"Uma mineira em Londres", copyright no. (www.no.com.br), 26/9/00

Andrea Kauffmann-Zeh é bióloga formada pela UFRJ. Mineira, morena, 35 anos, poderia ser mais uma das vítimas das mazelas da política científica brasileira. Quando estava para terminar o mestrado no Instituto de Biofísica da universidade, foi à luta e conseguiu uma bolsa de doutorado no renomado Instituto Ludwig britânico. Não parou aí. Fez pós-doutorado no Fundo Imperial de Pesquisa do Câncer.

O currículo em pesquisa, que seria de sonho para qualquer cientista brasileiro, foi interrompido por uma nova guinada em sua vida. Em 1997, Andrea passou por uma seleção rigorosa que a alçou ao cargo de editora-assistente da mais importante revista científica do mundo: a ?Nature?. No início do ano passado, com 33 anos, Andrea tornava-se editora-sênior ? o cargo hierárquico mais alto da revista. É também a mais jovem da equipe.

Ser editora-sênior na área de biologia na ?Nature? é um pouco como ser editor de política num grande jornal ? só que em escala mundial. Foi na revista semanal britânica que Dolly foi anunciada ou que os resultados do programa do genoma humano digeridos.

Vivendo há dez anos na Inglaterra e casada com inglês, Andrea não esqueceu o Brasil. Nesta entrevista, concedida ao no. por telefone da redação da ?Nature?, fala muito do país. Defende o ensino público com veemência ? ela própria nunca estudou em colégio particular ?, mas aponta anomalias que precisam de correção nas universidades tupiniquins. Ela critica a política do primeiro mundo de importar cérebros do terceiro por um lado, mas bate na falta de valorização destes mesmos em casa. Para o futuro, uma boa notícia, outra má. Podemos esperar uma vacina para a malária. Mas a cura para Aids, essa não está tão próxima. ?Essas previsões são sempre relativas?, ela adverte. Seja com for, as novidades estarão publicadas, em cima do laço, por seu semanário.

Como você foi parar na ?Nature??

Andrea Kauffmann-Zeh Bem, acho que começa com minha viagem do Brasil para cá. Terminando a faculdade comecei um mestrado no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ), estudando os mecanismos de transmissão de sinais da membrana celular. Descobri que o diretor do Instituto Ludwig, em Londres, tinha trabalhos nessa área. Escrevi para ele e vim para cá, para o doutorado. Meu pós-doutorado foi em genética de câncer. Sempre procurei estudar uma gama de assuntos muito variada na área biológica. Sempre tive muita curiosidade.

Terminando o pós-doutorado teria que decidir uma linha específica para montar meu próprio grupo de pesquisa, quando vi o anúncio da ?Nature?, que precisava de um editor. Senti que seria uma oportunidade para continuar trabalhando com várias áreas. Foram entre 300 e 350 candidatos para a análise de currículos e, numa segunda fase, a entrevista. A ?Nature? procura pessoas que tenham vivido uma carreira científica. Aí recebi uma carta dizendo que eu seria editora. (Ri.)

Como é o trabalho?

AKZ São catorze editores, entre assistentes, associados e sêniores, na área de biologia. Somos três sêniores. O trabalho como editor-sênior, além de selecionar os artigos que vão ser publicados, envolve participar de congressos, escrever editoriais, identificar notícias que interessem. É responsável por um time, elabora a estratégia de cobertura.

Como se vê, aí, a produção científica da América Latina e do Brasil?

AKZ Em geral a ciência na América Latina é muito diferenciada. Brasil, México, Argentina e Chile têm produção mais avançada. Países como Costa Rica e Cuba se sobressaem em algumas áreas. Não é uniforme. Mesmo no Brasil a produção varia. São Paulo, por exemplo, é muito ativo, enquanto outros estados ficam bastante atrás.

Ciência é uma atividade que amadurece com o tempo. A Academia de Ciência aqui na Inglaterra, por exemplo, é do século XVII, a dos Estados Unidos é do século XVIII. A brasileira é do século XX. Ciência precisa de massa crítica. Quanto mais gente se interessa por ciência, quanto maior o volume de pessoas envolvidas, maior e melhor será a produção. Não é uma coisa que acontece do dia para a noite.

O Brasil é visto como um país emergente. Tem muita coisa boa saindo. Veja o projeto Xylella, por exemplo. A Xylella fastidiosa é uma bactéria, uma praga que ataca as plantações de laranja. Todo seu genoma foi seqüenciado por cientistas do estado de São Paulo, financiados pela Fapesp ? ou seja, com dinheiro do estado de São Paulo. Esses projetos de mapeamento de genoma em geral são feitos em conjunto por vários países. Ninguém esperava que algo assim viesse do Brasil, então foi um susto. Um susto positivo.

Quando uma coisa destas acontece, serve de alavanca para empurrar pesquisadores e laboratórios para a ciência do século XXI. Foi mais que o seqüenciamento, foi algo que trouxe competência.

[A estimativa da Fapesp é de que a Xylella fastidiosa cause um prejuízo de 180 milhões de reais por ano só em São Paulo. O trabalho foi publicado na ?Nature? e elogiado em editorial.]

A senhora está na Inglaterra há dez anos. Quando viajou, ainda não existia Internet aqui ? ou no mundo ? como existe hoje. Qual a influência que esse tipo de tecnologia faz para o trabalho científico brasileiro?

AKZ É positiva, claro. Antes de a Internet ser largamente usada, para um cientista ter acesso a uma publicação como a ?Nature? demorava até um mês. Naquela época já existia muita competição na área. Ler um artigo com uma semana de atraso já faz diferença, imagine um mês. Hoje os brasileiros têm acesso a serviços como o MedLine, que apresenta os prefácios dos principais trabalhos publicados de graça.

Não é só isso. O poder de consultar colegas de área em outras partes do mundo por email é imenso. Você tem bancos de dados em que pode depositar sua produção; uma proteína, por exemplo, que você tenha identificado. Em dez minutos pode saber se alguém na China está trabalhando com algo semelhante.

As grandes empresas americanas de tecnologia estão forçando seu governo a liberar vistos para cientistas estrangeiros, em geral do terceiro mundo. Existe mais gente se formando em ciência em países como Índia ou Brasil do que Estados Unidos ou Inglaterra? Existe resistência à ciência?

AKZ É muito mais fácil comprar um indiano do que formar alguém. Toda a educação de uma pessoa custa muito dinheiro. Estamos numa economia globalizada, então é natural ir ao exterior e pagar para que alguém venha. O que acho muito danoso é que os países que estão promovendo fugas de cérebros querem acolher os qualificados, mas não os outros. Para os países do terceiro mundo vai ser um desastre. Tem que haver cooperação política entre os governos. Mesmo aqui na Inglaterra eles têm discutido a possibilidade de instalar um sistema parecido com o green card americano. O primeiro ministro do Paquistão reclamou. Ele disse, ?nós precisamos de gente assim também?. Não é justo.

Mas tem um lado positivo nisso tudo: talvez assim países como Brasil ou Índia comecem a dar valor a esse pessoal que estão perdendo.

E o que deve ser feito? Como criar cientistas e mantê-los aqui? Como não perder gente como você?

AKZ É um trabalho de jardinagem. Você tem sempre que estar aguando a planta. A economia está ancorando cada vez mais no conhecimento. Quem detiver esse conhecimento, detém poder e dinheiro. Tem que investir. Investir grana, educação e promoção. Mas não adianta promover a ciência se quando o estudante chega no vestibular descobre que quando terminar seu curso não vai ter trabalho. Ele vai querer ser advogado, não é?

Esse não é um problema só brasileiro. Alguém com um doutorado pode ser mais qualificado que um médico ou um advogado mas ganha menos. Na Inglaterra não é diferente. Ninguém quer estudar ciência porque será mal pago. O que estão fazendo aqui é promover muito. Desde que cheguei, nunca vi nada como isso. São festivais de ciência, é ciência na televisão, ciência na rua. Eles notaram que tinham que fazer alguma coisa para reverter o processo porque sabem que vão precisar.

Pelo que sei, a gente no Brasil tem muito menos cientistas do que precisa. É promover e investir em carreiras. Não sei se existe consciência política de que isso é um problema. Agora, vontade política é o início. Sem ela, não acontece, mas também precisa de vontade da sociedade e vontade da comunidade científica.

O governo deve investir em ciência?

AKZ É fundamental. Só acho que a iniciativa privada tem que colaborar, isso tem que ser feito. Ela é bem-vinda.

O Brasil precisa também curar certas anomalias. Dez anos para fazer um doutorado, não dá. Quatro no máximo. Os gastos são absurdos. Algumas universidades brasileiras são elefantes brancos. A quantidade de funcionários por aluno é enorme e a produção, pouca.

A comunidade científica tem que colaborar para que esse tipo de anomalia seja consertada. Tem aqueles que recebem dinheiro todo ano e não produzem. Tem que prestar contas do seu progresso, de sua produtividade. Bolsa não é emprego, é um recurso para o estudante. Mas a classe política tem que produzir empregos. Que eu saiba, a profissão de pesquisador não é regulamentada. Isso atrapalha, dá insegurança. É um problema na Inglaterra também.

Outras coisas atrapalham. Quando trabalhei na FioCruz, por exemplo, lembro que para conseguir uma enzima era preciso preencher formulários que não acabavam mais e ela demorava seis meses para chegar.

A senhora defende o ensino público?

AKZ O ensino público é maravilhoso. É direito do cidadão e dever do Estado. Eu nunca estudei numa escola particular em minha vida!

Decidi que queria trabalhar com ciência no segundo grau, quando estudava no Colégio Técnico ligado à UFMG, em Belo Horizonte. Minhas aulas eram baseadas no método científico, não em decoreba. Me encantei. (Ri) Nós não fomos preparados para o vestibular, não tínhamos aula de macete, no entanto, naquele ano, todos os primeiros lugares eram do Colégio Técnico. E aprendemos de verdade. Esse tipo de independência em relação a coisas como o vestibular, só a escola pública tem. A gente aprende a pensar.

Mudando um pouco de assunto, Andrea. Uma das frases mais ouvidas em 2.000 é que o século XXI será o século das ciências biológicas, como o século XX foi das exatas. É sua área…

AKZ (Ri.) Acho que as duas ciências, exatas e bios, vão aprender a interagir. A quantidade de dados desses projetos genoma, desses circuitos de sistemas biológicos que interagem… Para termos a capacidade de analisar isso tudo, de compreender, nós biólogos vamos ter que cooperar com matemáticos, com gente das exatas. E acho que eles vão encontrar desafios interessantes conosco. Vamos ter que conversar muito mais de pertinho. Vai ser bom.

O que aconteceu, sim, foi um renascimento das áreas bio. Mas o futuro, mesmo, é dessa multidisciplinaridade. Vão começar a aparecer instituições para agregar pessoas de áreas distintas que vão trabalhar juntas.

E o que podemos esperar de novo para o futuro próximo?

AKZ Tenho fé que a gente vai ter um conhecimento maior em terapia genética. É uma promessa que tem mais de vinte anos, mas acho que está próximo.

Remédios tendem a mudar. Acho que vão ser um pouquinho mais feitos para cada indivíduo. Vamos poder determinar a medicação, um pouquinho sempre, pelo padrão genético da pessoa. Tem um custo envolvido nisso aí, mas pode vir a ser amortizado. Vai ser muito importante para doenças crônicas como o câncer.

Vamos começar a aprender muito mais sobre o patrimônio genético que temos em lugares como a Amazônia. A gente vai descobrir certos segredinhos que vão ser usados para terapias.

Eu tinha a esperança de ouvir algo sobre a cura da Aids, do câncer, paz mundial…

AKZ (Ri.) O que espero que surja é a vacina para a malária. Tenho visto muita coisa nisso. É uma doença que afeta três milhões de pessoas por ano.

Infelizmente, Aids ser curada, não sei, não. Tem muito trabalho sendo feito, mas acho que está muito longe de acontecer.

Para terminar. Transgenia anda na moda. Ovelhas, alimentos, até coelhos fluorescentes. Devemos nos preocupar?

AKZ As pessoas estão certas em questionar. Têm o direito de saber sobre alimentos geneticamente modificados. Mas fechar a porta para a tecnologia não é muito sensato. Nós não sabemos muito sobre isso ainda. O que devemos é questionar não a tecnologia mas o produto. Será que esse uso é satisfatório, seguro? Como afeta a ecologia? Qual o efeito no animal ou na planta? No consumidor? Qual o impacto social? É o caso por exemplo do gene terminador, que faz com que sementes transgênicas não brotem depois de uma ou duas gerações. Os fazendeiros reservam parte de sua colheita para o plantio, como ficam? Questionar é importante.

Agora, questionar é importante mas também não pode ser extremo. O jornalista científico faria um trabalho melhor se realmente conhecesse a ciência por trás daquilo que está cobrindo. Existe um tom acusatório na mídia que atrapalha. É uma tecnologia importante que pode nos livrar de pesticidas, por exemplo."

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