HACKERS
"De hackers e ética", copyright no. <www.no.com.br>, 14/8/01
"?A ética dos hackers? é talvez o primeiro bom livro publicado no Brasil sobre o assunto. Assinado por Pekka Himanen, filósofo da Universidade de Helsinque, com prefácio do super-programador Linus Torvalds e epílogo do sociólogo espanhol Manuel Castells, é um misto bem-humorado de auto-ajuda com teoria social e dá lá uma boa idéia de o que passa na cabeça de um hacker. Mas não vem sem uma certa ingenuidade típica das ciências humanas no afã de catar novos temas.
O princípio do qual parte Himanen é que vivemos, no mundo pós-industrial, o auge da Ética Protestante de Max Weber. O trabalho árduo é o grande valor social, sua sistematização uma meta a seguir e até quando o momento é de lazer fazemos conta, preparamos agenda, o objetivo sendo o aproveitamento máximo do tempo. O resultado é que a criatividade anda em baixa ? quantidade de trabalho vale mais que qualidade.
A ética que nos trazem os hackers teria outros objetivos. Se dinheiro é bem quisto mas não prioritário, é o valor que o público dá ao produto bem feito o maior prêmio. Portanto, é trabalho feito com paixão, meticuloso, detalhista, em longas horas sem planejamento. Dá-se a oposição que na Idade Média tinham o mosteiro e a cidade. No mosteiro, padres organizados, horas do dia bem definidas para atividades individuais selecionadas, nas cidades o bom caos, coisas feitas no tempo em que as pessoas tem vontade de fazê-las. Quer dizer, chope na quarta-feira de tarde tudo bem ? e trabalho domingo pela madrugada também, o que importa é o resultado.
?A ética hacker? fica por aí.
Quem primeiro defendeu, e bem, este método de trabalho caótico e coletivo foi Eric Raymond no excelente paper ?The cathedral and the bazaar? que qualquer um pode baixar pela Internet no original inglês ou em traduções várias, uma para a língua de Camões. Ao contrário do livro de Himanen, que se propõe analista do que se passa na sociedade, Raymond quer vender um peixe ? o seu é um texto ideológico. Trata-se do sujeito que inventou o movimento Open Source, do código aberto, que pretende encontrar um modelo econômico para o desenvolvimento de bons programas de computador que possam ser distribuídos gratuitamente e no qual os programadores ganham vendendo serviços de consultoria. Se o software é bom, mais gente vai usá-lo, mais clientes que querem adaptações específicas pagarão por isso. O inimigo, gente como a Microsoft, rainha capitalista. No barco do Open Source, o Linux desenvolvido por Torvalds e o bom e velho Netscape, que resiste ainda à concorrência do Microsoft Explorer. Himanen não nega o autor da idéia, está lá o crédito no texto e, posteriormente, na bibliografia.
Como o texto de Raymond é apaixonado e ideológico e sua formação absolutamente técnica, é fácil desculpar-lhe os exageros. Com Himanen, que deveria ser mais cético por dever à ciência, não dá. A verdade é que o mundo é um pouquinho mais complicado ? e se com um cado de miopia pode-se evitar enxergar criatividade no trabalho de executivos vários, simplesmente não dá para dizer que criatividade, horas não impostas e produção com base no brainstorm são monopólio hacker. Noves fora os artistas, o que se diz do trabalho de artesãos? Luthiers que entregam bons violões e treinam ajudantes, carpinteiros, designers, profissões várias que de arte tem pouco, mas que se valorizam justamente pelo apuro técnico, dedicação e capricho. Sempre foram assim ? e desde muito antes de hackers ou computadores existirem.
Hackers do bem e do mal
Outra pergunta que cabe é se há, de fato, uma ética hacker. E, em havendo, que hackers são esses ? não os que aparecem nas páginas noticiosas, por certo. Para Pekka Himanen há que se dividir os hackers bons dos maus. Os bons seriam gente como Torvalds, uma turma talentosa e exigente que escreve coisas em uns e zeros com esmero. Os maus não são hackers mas crackers, aqueles que põe a técnica a serviço de trocar homepages, roubar cartões de crédito online, produzir vírus etc. Aí o assunto ferve ? de um lado os bons hackers reivindicando para si o santo nome, do outro a língua que teima em não seguir sua vontade.
É bem verdade que rola na Internet um pesado movimento amparado pelas publicações especializadas como a ?Wired? que quer promover o termo cracker. Mas cracker ninguém sabe o que é e quem invade site é hacker, não tem jeito. Já têm esse nome desde que Mathew Broderick estourou no ?War Games?, cá no Brasil com o nome ?Jogos de Guerra?, aprontando nos computadores do governo norte-americano. E nisso já vão lá uns vinte anos.
Hackers, na verdade, são três tipos diferentes. Há os maus, mais conhecidos que quaisquer outros, há os bons, especialistas em segurança de rede, uma espécie de polícia privada para combater os desempregados que conhecem as mesmas coisas. E há os programadores como Torvalds, os originais. Os maus se lixam para o nome, os de segurança fogem do nome qual diabo da cruz para não ser confundidos e os programadores, que bem queriam o nome, na verdade são conhecidos mesmo é por programadores.
A ética, pois
Livros bons mesmo sobre hackers são dois, nenhum traduzido. ?Hackers, heroes of the computer revolution? do hoje editor de tecnologia da ?Newsweek? e então repórter da ?RollingStone? Steven Levy e ?The hacker crackdown?, do escritor cyberpunk Bruce Sterling, este disponível online na íntegra.
Levy divulgou ao mundo o termo hacker no início dos anos 80 e, sem querer, inventou a tal ética. Hack tem origem no Instituto de Tecnologia do Massachussets, o MIT, onde desde a década de 50 serve de nome às brincadeiras que os estudantes aprontam no campus. Coisas divertidas para fazer depois duns chopes ou de um cigarro engraçado, como bolar um jeito de cobrir de espelhos a cúpula do prédio da reitoria. Um bom hack, por exemplo, foi quando deram à parte externa da cúpula a cara do R2D2, aquele robozinho de ?Guerra nas Estrelas?. Foi há uns cinco anos.
Nos laboratórios de computador do MIT, pois, virou hack também fazer coisas divertidas no incipiente mundo digital dos anos 60. O primeiro video game. Ou um que descobriu o que fazia os imensos carretéis de fita magnética fazerem um pio engraçado e arranjou um jeito para que o computador tocasse Beethoven, talvez o primeiro arremedo de música eletrônica. Hackers originais são estes ? os programadores que achavam divertido submergir naquele mundo.
Frutos dos anos 60, não eram alienados. Se ninguém nunca botou no papel antes quais os princípios que os norteavam, Levy o fez e chamou a meia dúzia de crenças de ?ética?, pelo exercício de texto, não com rigor filosófico:
Acesso a computadores ou qualquer outra coisa que ensine como o mundo funciona deve ser dado a todos.
Toda a informação deve ser livre.
Não confie em autoridade, promova a descentralização.
Hackers devem ser julgados por suas realizações, não por critérios tolos como notas, idade, raça ou posição.
Pode-se criar beleza e arte no computador.
Computadores podem mudar sua vida para melhor.
A Internet, como nos foi dada, não é um acidente, dado o espírito de quem a criou. E, pelo tamanho que ganhou, sua forma incomoda na raiz a estrutura dum mundo onde informação não é necessariamente livre e a estrutura é centralizada. O caso Napster versus Gravadoras éeacute; só um dos muitos exemplos. Himanen está certo ao reparar nesta oposição, apenas compra com um pouco de facilidade demais o discurso de quem quer se promover.
Em ?Hacker crackdown?, Sterling conta o outro lado, já no início dos anos 90, quando pela primeira vez o FBI promoveu uma ação de combate a terroristas digitais. Fez muita besteira, levou gente à falência por paranóia, tratou como criminosos de alta periculosidade garotos que, não soubessem os meandros do teclado, estariam apenas roubando placas de trânsito na rua. Só que, não se negue, conhecendo tais meandros suas ações de vandalismo têm resultados bem menos inocentes e levam também gente à falência custando o emprego de milhares ? quiçá podem provocar mortes ao mexer com satélites e coisas do tipo.
O valor dum hacker
No fundo, no fundo, quando gente como Eric Raymond põe-se no mundo a tecer elogios de auto-promoção e promover uma ética como sua quando ela mais pertence à Era da Informação, o que quer cobrar é mais valorização de seu trabalho. O trabalho de seus pares mudou no cerne a vida de muita gente, mas mesmo entre os usuários da rede são poucos os que sabem distinguir um bom programa dum ruim. Em grande parte, a culpa cabe à parca alfabetização digital e ao predomínio de uma plataforma como o Windows da Microsoft.
Está nos detalhes. Um programa que é intuitivo, que ao abrir pela primeira vez você entende na tela como ele opera e onde estarão os menus dos quais precisa. Um programa que não surpreende você fazendo algo que não queira automaticamente e que não dá pau, fazendo-o perder o que já tinha feito. Que consome pouca memória e funciona bem com quaisquer outros programas. São programas como o primeiro Aldus PageMaker, que lá em 1987 revolucionou a indústra gráfica no processo de editoração ou o Lotus 123, que deu ao mundo uma planilha que qualquer contador usava com um pé nas costas poupando-lhe o trabalho de dias. Que, enfim, resolve problemas e não cria novos.
Mas este, também, é um tanto o fardo do bom artesão. Qual o grande alfaiate que não reclama quando o cliente não vê a diferença entre o seu terno e o da Villa Romana? Ou o designer cujo cliente quer mais cores, mais letras diferentes, que o trabalho está simples demais? Bem sabe a Microsoft ? que bota mais comandos nos programas, qual o designer que abusa das fontes góticas.
Apesar de tudo, um bom livro
Pekka Himanen é ingênuo mas joga claro. Não esconde suas fontes e Raymond e Levy são creditados. (Bruce Sterling, não, claro, mas este não ajudaria no argumento, então ponha-se na conta da ingenuidade.) O livro vale porque todas as discussões levantadas pelo movimento dos hackers originais estão lá e também suas crenças. Se levou um pouco mais a sério o papo de ética do que o próprio autor da idéia, bem, paciência. Jogo jogado.
Vale porque a leitura em português sobre o tema é escassa e este serve como boa introdução para quem quer entender a cabeça de alguém que inventaria algo como a Internet. Desconte-se também a tradução ? talvez nem tanto por culpa do tradutor mas do revisor, o texto foi feito nas côxas. Erros de concordância, de ortografia, frases truncadas ao ponto de incompreensíveis.
Na Internet e nos diários brasileiros, o tema começa a pegar. Há alguns sites que cobrem o mundo hacker em português e gente que promove o jeito de ser hacker dum ponto de vista quase sociológico. São, cada vez mais, personagens recorrentes do dia-a-dia. Talvez o que falte é distanciamento histórico para analisá-los com mais isenção.
Ou então um Max Weber. Mas estes não dão em árvore."