DO JORNALISMO À FICÇÃO
Luiz Adolfo Pinheiro (*)
A santa do cabaré, Moacir Japiassu, Editora Globo, São Paulo, 2002, 251 pp. Preço: R$ 28. Apresentação de Fábio Lucas
O romance do Nordeste está vivo e goza de boa saúde. Quem atesta é Moacir Japiassu, jornalista de alto coturno, de texto suave e profundo, de olhar atento e complacente, que acaba de nos oferecer A santa do cabaré, uma ficção primorosa, capaz de nos renovar a fé a esperança nas letras nacionais.
O livro é, ao mesmo tempo, muitos livros e muitas vidas em um só volume. Ali estão o cangaceiro Ladislau e seu vingador Eleutério ? o pistoleiro Luquinha do Moxotó (ex-instrutor de tiro do regimento de infantaria) ?, o beato Cassiano (místico dos sertões castigados pela natureza e domados pelos homens), o vigário Everardo ? uma "usina de intolerância", obcecado em eliminar daquelas terras o Anticristo ateu e materialista ?, o farmacêntico Luiz, "flamenguista e corno", o tenente Delecródio, terror do cangaço, o barbeiro fofoqueiro, o prefeito que ficou louco, a "Odete de Crécy", dona do rendez-vous, o magistrado "conhecido aqui, ali e alhures nem tanto pela reputação ilibada, mas pelo notório saber jurídico". E ela, Vanda/Isaura, a frágil prostituta ingênua e má, a pecadora tornada em santa do cabaré.
Lado a lado desfilam os fugitivos da seca, os coronéis mandonistas, as beatas de pau oco, os bem-pensantes da província, os puxa-sacos dos poderosos, os maledicentes, os cangaceiros de um bando perdido, os poetas e os cantadores ? todos sujeitos às mesmas leis da sobrevivência no Brasil esquecido e abandonado no Nordeste dos anos 30, que acompanhava pelas ondas curtas do rádio a Segunda Guerra na Europa, os decretos do ditador Vargas e as espertezas políticas do interventor Agamenon Magalhães…
Moacir Japiassu, já admirado como jornalista de texto singular, que alia observação sutil à ironia mais saborosa, supera-se nesse romance de amplitude cinematográfica. Impossível deixar de ver em sua pena o brilho da peixeira literária com a qual Graciliano Ramos punha a nu as vidas secas dos retirantes. Japiassu resume a sina de outros retirantes e personagens da mesma seca, os cangaceiros:
"Dali a minutos o bando começaria a desmontar tudo para a viagem. Para onde iriam? Vanda não sabia, os cangaceiros também não, o próprio Ladislau não tinha idéia. Todos tinham apenas uma certeza: estavam fugindo, pois atacar, roubar, matar e depois fugir, fugir, fugir eram as atribuições dos que erram pela caatinga." (p. 78).
Fatias da condição humana
Impossível também não encontrar nesse romance denso e envolvente o traço expressionista de Guimarães Rosa, quando a paisagem da terra mescla-se com a paisagem do habitante dos sertões brasileiros:
"O sertão é cheio de prosopopéia. Tem pau que não gosta daqui ou dali, mato que de repente cresce como árvore no meio das pedras e um igualzinho, porém napeva, estruge mais adiante sua indignação. Postado bem atrás do tapejara e do ruzagá, o cangaceiro recordava os cenários da infância vivida no Salobro, onde a mãe ainda resistia, sozinha, a martelar a almofada de bilros. Não era velha mas desiludida, o que é a mesma coisa." (p. 148).
A santa do cabaré, como toda santa popular, excitou a imaginação dos romeiros possuídos pela religiosidade singela e forte, própria dos necessitados. Com olhar de santidade, também o autor do romance, paraibano de nascença, mostra o pecado, mas não condena o pecador; exibe a face dura da realidade popular, porém não incita o povo a rebelar-se. Com sóbria majestade, apresenta-nos fatias de vida, de amor, de ódio e de esperança ? como desfila todos os dias a nossos olhos a própria condição humana.
(*) Jornalista residente em Brasília, autor de Bastidores da imprensa, com Carmo Chagas e José Maria Mayrink, A república dos golpes (de Jânio a Sarney) e Tocata & fuga, novela, Prêmio José de Alencar, da Academia Brasileira de Letras