Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pena de repetição rápida

HARRY POTTER

Daniela Lepinsk (*)

A garotada que hoje se encanta com o bruxinho Harry Potter ? içado de sucesso estrondoso nas livrarias para fenômeno dos cinemas ? terá razões de sobra para nutrir sentimentos nada agradáveis em relação aos praticantes do jornalismo. A escritora Joanne Rowling parece ter se espelhado na imprensa britânica para criar a personagem Rita Skeeter, a jornalista-bruxa (redundância?) que inferniza a vida dos heróis da história no quarto livro da série, "Harry Potter e o cálice de fogo". Escrevendo para o jornal Profeta Diário e para a revista Semanário dos Bruxos, Rita Skeeter é um arquétipo bem-humorado de tudo o que mais se odeia nos jornalistas ? com especial destaque para o hábito de deturpar informações.

Rita possui um instrumento que é o sonho de consumo de qualquer repórter: uma pena-de-repetição-rápida, que escreve sozinha. Muito mais avançado que nossos pobres gravadores, que requerem transcrições posteriores… O mais interessante é que a pena de Rita Skeeter não se limita ao que ela fala, mas expressa principalmente o que ela pensa. Um dos trechos mais ilustrativos é quando a repórter, ao iniciar uma entrevista, posiciona a pena sobre um pergaminho e diz: "Teste… meu nome é Rita Skeeter, repórter do Profeta Diário". Muito obediente, a pena escreve: "A atraente Rita Skeeter, cuja pena infrene já esvaziou muitas reputações infladas…". E olha que esse é só o teste.

Alerta aos sonhadores

Rita é a personificação daquele cara chato, que insiste em perguntar milhares de vezes a mesma coisa para ver se consegue algum detalhe "quente" da vida pessoal de alguém e, se não consegue, dá jeito de inventar um. Não há ação possível em contrário: até mesmo o silêncio do entrevistado é "interpretado" como "carregado de emoção", "saudoso", "entristecido" ou, no mínimo, "enigmático". Até lágrimas nos olhos do entrevistado Rita Skeeter inventa.

A leitura das matérias escritas por Rita ? veiculadas no livro ? para o público bruxo é um exagerado exercício de autocrítica. Ouvir o outro lado, bem… ela até ouve, mas só o que lhe interessa. Opiniões, pré-julgamentos, afirmações preconceituosas, interpretações dúbias, invasão da intimidade, sensacionalismo, tudo isso está presente em suas matérias. Como nos tablóides britânicos e em diversas publicações de qualquer país do mundo, incluindo nosso oásis de democracia e liberdade de expressão…

Em tempo: Rita Skeeter não aparece no filme, cujo roteiro é voltado para o primeiro livro sobre Potter. Mesmo assim, seu papel na versão escrita será, com certeza, suficiente para fazer pensar melhor as crianças e adolescentes que já sonharam em ser jornalistas. E, talvez, seja uma pequena alavanca no processo de torná-los cidadãos mais críticos em relação ao jornalismo que se pratica mundo afora, ajudando-os a escapar das "penas-de-repetição-rápida" dos sórdidos seguidores de Rita Skeeter.

(*) Jornalista em Cuiabá, é coordenadora do boletim semanal Imprensa Ética; e-mail: <danilepinsk@bol.com.br>