Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pequenas notícias, grandes negócios

MÍDIA & RISCO BRASIL

Gilson Caroni Filho (*)

É interessante constatar como reage o senso comum jornalístico às considerações sobre o produto final de seu trabalho. Regidos por normas de redação que apregoam o mito da objetividade, tomam as auto-representações do campo como sua segunda natureza. Qualquer olhar marcado por distanciamento crítico é visto como "pura viagem", delírio de quem não é do meio. Apreciações sobre o significado de uma manchete ou de notícias escondidas no pé de uma página par são refutadas como sintomas de paranóia. Esquecem que as normatividades são produtos de um modo dominante de pensar o ofício e informam como melhor exercê-lo na conjunção dos interesses econômicos e editoriais. Nada mais eivado de ideologia do que a suposta neutralidade da técnica. A pauta é ou não um leque político de amplo espectro? Uma escala de prioridades definida pela inserção do veículo na realidade a ser editada? Evidente que não desconsideramos as exigências mercadológicas, mas a apreensão do campo jornalístico solicita um salto além das evidências de um balancete.

Deixemos claro que não estamos a discorrer sobre corporativismo ou má-fé. Trata-se de ideologia internalizada. Convicção da infalibilidade de preceitos ditados em manuais de redação. Ingenuidade mesmo de profissionais eficientes que transitam com bom humor e irreverência pelas redações. Estão numa faixa intermediária entre os articulistas críticos e os plantonistas do poder. Sem o saber, a ausência de uma postura mais reflexiva transforma-os em peças docilmente funcionais dos interesses em jogo. Não preconizamos a "conscientização" desses quadros (seríamos tão tolos como pretensiosos), mas uma redefinição ético-política que os leve a reler criteriosamente o que vivem como ordem dada, realidade inconteste. Algo que talvez merecesse uma assertiva do tipo "existe vida inteligente além do aquário".

Os últimos dias têm sido ricos em pequenos expedientes de ocultamento não percebidos por alguns desses profissionais e os leitores das publicações em que trabalham. No início da semana, o dólar disparou e a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) encerrou as negociações com queda. Desta vez não era o "risco Lula" apenas. O presidente do Banco Central, Armínio Fraga, afirmou que os fundamentos da economia não eram bons e pediu coerência aos candidatos à presidência da República, além de cobrar urgência do Congresso na aprovação da CPMF. Antecipou qual será a tática do governo para combater a candidatura Lula: "Ainda estamos longe de sermos uma Argentina. Mas sempre existe o risco". Foi dada a senha para a satanização do líder petista. Uma reedição, manca e tosca, do pânico semeado em 1998.

O risco é a imprensa

Qual seria o norte dos bancos estrangeiros que, 15 dias após terem recomendado a seus clientes que se desfizessem de títulos brasileiros, passaram a sinalizar a compra dos mesmos papéis como excelente negócio? Muito se escreveu nas editorias especializadas. Da fragilidade dos outrora sólidos fundamentos a análises supostamente minuciosas de crise de curto prazo de uma economia já em franco processo de desaceleração. Poucos (Janio de Freitas e Elio Gaspari, na Folha de S.Paulo de 15/5) se deram conta de registrar o fenômeno na sua natureza efetiva. Como movimento puramente especulativo. De quem compra na baixa para revender na alta. O jornalista César Costa, professor da Facha e ex-repórter do Jornal do Commercio, estranhava o fato de nenhum veículo se propor a fazer o que o jornalismo investigativo solicita em momentos como esse: apurar quem estava "vendido" e "comprado" antes das avaliações das instituições financeiras. O fato é que houve especulação. Financeira e editorial. Conforme assegura Janio de Freitas em seu artigo "A reviravolta" [disponível para assinantes do contéudo do UOL em <http://www.uol.com.br/fsp/brasil/fc1505200207.htm>], a imprensa reproduziu uma leitura peculiar dos relatórios dos bancos. Criou uma autonomia especulativa.

E o interessante foi observar que, no mesmo dia em que o texto de Janio foi publicado, dois institutos de pesquisa anunciaram o resultado de suas últimas sondagens. Em ambas o candidato do PT ultrapassa os 40% de intenções de voto. Segundo uma delas a rejeição a Lula caiu para 27% desde 9 de abril, enquanto a de todos os outros candidatos subiu. O índice de voto espontâneo no petista subiu de 18% para 27%. Ante o cenário temido por toda a mídia chapa-branca, como reagiu o mercado? O dólar comercial voltou a cair, os C-Bonds, títulos da dívida mais negociados no mercado internacional, fecharam em alta e a "Taxa de Risco Brasil", calculada pelo JP Morgan, recuou 29 pontos.

No dia seguinte não houve manchete associando a reação do mercado à ascensão de Lula. Segundo o jornal O Globo, "o argumento dos analistas para explicar a melhora no humor do mercado foi a manutenção do pré-candidato do PSDB à presidência, José Serra, em segundo lugar nas pesquisas eleitorais".

O risco Brasil, sem dúvida alguma, é a imprensa que ele tem.

O detalhe do papel-jornal

O que permite tamanha desenvoltura na desfaçatez é a conjunção dos bem-intencionados que nada percebem com a esperteza dos bem selecionados peixinhos do "aquário". É interessante a cadeia alimentar do campo jornalístico. Da labuta dos peixes de mercado, os ornados e pomposos extraem os nutrientes para os interesses dos peixões associados em empreendimentos políticos e econômicos. Qualquer advertência crítica à perfeição desse "ecossistema" soará como grito paranóico. Mas a leitura atenta não pode ceder aos reclamos do senso comum das redações. Sempre tão repletas de profissionais brincalhões e "espertos"

Como não demonstrar estranheza quando lemos que o deputado Antônio Kandir diz que "até há dois dias o que eu mais recebia de banqueiros e empresários eram pedidos de informação sobre Aécio e a respeito da hipótese de um novo mandato para Fernando Henrique". ("Coisas da Política", Jornal do Brasil, 16/5). Essa informação aparece como algo absolutamente irrelevante na coluna oficialista da jornalista Dora Kramer. Com naturalidade são vistas ações que propõem alteração no quadro institucional, utilizando-se de expedientes que violam o ordenamento democrático. Banqueiros e empresários fazendo conjecturas sobre um terceiro mandato para o atual presidente é algo a ser investigado a fundo e divulgado com destaque. Ou é assim ou adotamos de vez a bananeira como símbolo do simulacro de república.

Na mesma coluna, Dora Kramer registra um "despertar tucano" e uma ofensiva contra Lula. Tereza Cruvinel, em sua coluna no jornal O Globo, dá conta de um iminente ataque do PSDB. Para tal, não nos iludamos, a imprensa oferecerá seu habitual apoio logístico e receberá a recompensa patrimonialista de sempre. Em pequena nota o jornal da família Marinho, em sua edição de 16/5, informa que o governo anunciou um conjunto de medidas para estimular a fabricação de papel-jornal no Brasil. Os fabricantes que quiserem importar máquinas e equipamentos para a ampliação e a modernização de suas empresas estarão isentos do Imposto de Importação e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Se dissermos que isso deveria ser mais bem apurado estaríamos adentrando o terreno das associações absurdas? Ou, quem sabe, seja mais prudente aguardar o próximo ataque especulativo da grande imprensa?

(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso