Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pequenos assassinatos

Cláudio Weber Abramo

O "caso Pimenta" estimula algumas observações sobre o que vem acontecendo no meio profissional jornalístico brasileiro. Antes de prosseguir, contudo, um esclarecimento. Pimenta era amigo de meu pai e o conheço desde sempre, razões que seriam suficientes para me impor o silêncio, não fosse a circunstância predominante de que não pretendo comentar o caso em si, ou a cobertura a ele conferida pela imprensa, ou as atitudes de advogados, da polícia ou da Justiça, coisas todas essas que estão sendo objeto da atenção de pessoas muito mais habilitadas do que eu. Apenas observo, quanto à tragédia, que se inscreve no capítulo da insanidade, independentemente do que afirmem laudos psiquiátricos – afinal, a psiquiatria e seus aparentados está, na melhor das hipóteses, a centímetros do curandeirismo.

Pois bem, Alberto Dines observou neste espaço [veja remissão abaixo] que o ocorrido aponta para um determinado aspecto da vida das redações, a saber, a ausência de mecanismos que coíbam pessoas investidas de autoridade de promoverem suas mulheres/maridos, parentes, namorados(as) etc. A observação de Dines é, naturalmente, correta. Acredito, porém, que pode ser ampliada, e colocada contra um pano-de-fundo mais preocupante do que as relações amorosas.

(Considere o eventual leitor que, sem exceção, tudo o que se segue decorre de experiências particulares. Julgo importante explicitar semelhante obviedade porque jornalistas se acostumaram a imaginar que aquilo que escrevem estaria respaldado por alguma faculdade superior de objetividade neutra. Desse mal, ao menos, não sofro. Também esclareço desde logo que não alimento a meu próprio respeito imagens hipertrofiadas quanto à competência profissional como jornalista. Nunca fiz, na imprensa, nada que possa ser considerado memorável, ou mesmo relevante, de forma que não me considero investido de autoridades excelsas. Só falo, repito, a partir de minha experiência.)

O ofício e a empresa

O tempo decorrido desde meu primeiro emprego na imprensa é de aproximadamente trinta anos. Essa experiência foi bastante entrecortada por outras atividades. Tal circunstância me permitiu obter uma perspectiva da imprensa dotada de um certo benefício (é claro que também repleta de desvantagens, mas por ora deixemos isso andar): devido ao fato de não ter vivido uma evolução constante, a cada vez que retornava à imprensa o contraste com a situação anterior se me apresentava com uma agudeza que a vivência continuada, muito compreensivelmente, torna mais difícil.

O que observei ao longo desses anos foi uma involução constante nas práticas do métier. Meu primeiro emprego foi na revista Transporte Moderno, da Abril, então dirigida por Matias Molina. Lá permaneci apenas uma semana, tempo suficiente para evidenciar que, se algo não se interpusesse entre mim e a revista, os transportes brasileiros correriam risco. Mesmo nesse curto espaço de tempo, pude testemunhar o extraordinário talento formador de Molina, mais tarde exercido, durante anos, na Gazeta Mercantil (o que induziu algumas pessoas a imaginar que, simplesmente por terem trabalhado na Gazeta, estariam de alguma forma elevados ao Olimpo do jornalismo). Molina sentava-se com o repórter e lhe mostrava o que estava errado, o que queria, quem procurar, que ângulos descartar como improdutivos, quais filões perseguir. Sobretudo, ele usava a racionalidade.

Após uma semana de infrutíferas tentativas de produzir minha primeira matéria (chatíssima, sobre embalagens), a salvação para mim e para a revista apareceu na forma de uma transferência para outra área da empresa. A Abril Cultural começava a sua operação de fascículos, e, devido à minha formação, fui convocado para trabalhar como redator da Ciência Ilustrada. Naquela época, fascículos não eram feitos como hoje, simples traduções com casca e tudo (mais uma, de tantas outras involuções). Uma tradução inicial servia como base para artigos largamente reescritos, os quais eram submetidos duas vezes a consultores. Uma operação dessas exigia um processo de confecção complexo e muito disciplinado, envolvendo redações grandes. O responsável pela direção era Ary Coelho da Silva, ex-químico cassado, integrante da velha guarda comunista carioca. Cada fascículo ficava sob responsabilidade de um secretário de redação, no caso Alberto Gambirasio (irmão de Alexandre).

A Ary Coelho devo tudo o que aprendi na profissão. Sobretudo, aprendi que as melhores relações profissionais, e portanto os melhores produtos, acontecem como decorrência de mecanismos baseados no convencimento racional. Ary lia tudo, depois chamava as pessoas envolvidas e explicava, uma a uma, todas as emendas que fazia. Quase todos os que trabalhavam com ele eram muito jovens e relativamente inexperientes, o que facilitava as coisas. Se o tradutor se equivocava, se o redator escrevia alguma impropriedade, se o copy-desk deixava passar, se o secretário de redação não percebia, Ary chamava a todos e a todos explicava o que precisaria ser mudado e por quê. Dessa forma, todos aprendiam; não só aprendiam, mas sobretudo sabiam o que e como estavam aprendendo. Nunca mais encontrei alguém que atingisse os padrões de correção profissional que ele praticava. Com ele aprendi que o chefe é não apenas representante da empresa e do ofício perante o funcionário mas, também, representante do funcionário perante o ofício e a empresa. Aprendi que a ascendência hierárquica de nada vale na ausência do respeito conquistado pelo exercício cotidiano da competência. Aprendi que há coisas que não se faz, mesmo se não proibidas, e que há obrigações incontornáveis, ainda que não impostas.

As relações funcionais com a empresa eram, também, revestidas da mesma racionalidade. O importante a observar quanto a isso é que a racionalidade impõe uma grande dose de moralidade – se alguém era promovido ou demitido, todos sabiam por quê. Podia-se discordar das avaliações, mas avaliações havia, unanimemente compreendidas.

Praga de redações

Semelhante modo de funcionamento só podia existir na presença de dinheiro e de uma orientação geral esclarecida. Este segundo requisito era proporcionado por Pedro Paulo Poppovic, excepcional dirigente de editora com o qual me desentendi anos depois, por motivos políticos.

É claro que também havia gente ignorante, incompetente, mau caráter etc. (bem como namoradas e namorados, embora não cônjuges, se não me engano proibidos), mas a existência de mecanismos de decisão e controle explícitos e interpessoais minimizava tanto seu número quanto seus malefícios.

Depois que saí da Abril, passei por uma porção de empregos e atividades, que incluíram de novo a Abril, a IstoÉ em seus primórdios, a Folha (duas vezes), a Gazeta Mercantil, a versão eletrônica do Valor Econômico e outros menos visíveis.

Ao longo desse período, o que verifiquei crescentemente foi a vulnerabilidade da imprensa à arbitrariedade no interior das redações. É comum não existirem regras de conduta profissional, as quais são substituídas pelo comportamento de seu dirigente máximo. Quando este é uma pessoa razoável, isso se reflete na imposição de condutas profissionais melhores. Quando não, instaura-se um caos de desrespeitos pessoais, profissionais e hierárquicos, tudo em meio a ordens esquisitas, decisões injustificáveis tomadas in pectore e, não raro, agressões à própria inteligência.

Mesmo quando o dirigente é mais civilizado, o fato de seu ordenamento precisar ser imposto a uma redação formada por indivíduos acostumados à arbitrariedade retira muito de sua capacidade de cooptação. Nessas condições, o ordenamento não é entendido pelas pessoas, mas obedecido irracionalmente. É, por exemplo, o que acontece com a Folha.

(Diga-se, aliás, que esse jornal, como precursor, no Brasil, da introdução de mecanismos estruturados e formalizados na redação, procurou inaugurar uma racionalidade prática que a profissão desconhecia. Por isso, foi sempre muito mal compreendido.)

Há redações, por outro lado, que funcionam com base no princípio do chefe em sua formulação mais brutal. Dirigentes desse tipo tomam decisões sem discuti-las, ofendem-se quando questionados e agem como crianças mimadas. Tipicamente, carregam atrás de si grupos de apaniguados: quando há uma mudança na direção, sai toda uma turma e entra outra. Mas que profissionalismo é esse, em que só se consegue trabalhar com amigos, com aqueles que são alvo de favorecimentos extraprofissionais e que, portanto, aprendem que a blandícia, e não o mérito ou a capacidade, é o fator relevante para o progresso na profissão?

Apesar de toda uma discurseira auto-referenciada, tais dirigentes são incapazes de trabalhar com a diferença, não por simples falta de disponibilidade, mas porque isso se situa fora de sua vivência. São, portanto, cercados de puxa-sacos, uma praga de redações que, se não coibida com o máximo rigor, infecta todo o ambiente. E são, por seu turno, cultores do poder, qualquer poder. O antijornalismo, que se reflete diretamente no noticiário.

Caso pensado

A ausência da consciência de que existe um dever profissional em justificar decisões perante a estrutura dissolve a organicidade que está na base de uma organização hierárquica. Hierarquias não existem para favorecer pessoas, mas para tornar o trabalho mais eficiente. Se, à diferença disso, a hierarquia serve para estabelecer primordialmente quem ganha mais e quem ganha menos, seu objetivo material deixa de existir: impera o arbítrio pessoal. O diretor dá ordens diretas ao repórter e o editor é desautorizado, perdendo qualquer possibilidade de ganhar o respeito de seus subordinados. Não é incomum que o editor tenha medo de orientar o repórter ou o subeditor, porque este pode ser amigo de alguém situado mais acima. Contratações, promoções e demissões obedecem não ao propósito extrapessoal de fazer um produto melhor, mas à finalidade mafiosa de fortalecer posições de grupo. A solidariedade profissional transforma-se em desvio em relação à norma, um crime tornado mais grave porque expõe, pelo contraste, a esqualidez circundante. O cinismo, secular moléstia profissional do meio, se transforma em instrumento explícito de gestão. Pequenos assassinatos são cometidos diariamente nesse tipo de redação.

Instruir um repórter que fará uma matéria é algo que só acontece no plano convencional. A instrução é ministrada com consciência de que para nada servirá, e recebida com enfado. Imagina-se que, de moto próprio, o repórter irá se preparar, escrever sem agressões excessivas aos fatos, à gramática ou ao bom senso. Por que isso se imagina é um mistério, pois para preparar-se o repórter precisaria saber que isso é importante, algo que só acontece no discurso, raramente na prática. Como, várias vezes na vida, já estive do outro lado da mesa, fui em muitas ocasiões entrevistado por repórteres (de grandes jornais, de canais de TV globais, de revistas) que iniciavam o diálogo pela frase "Diga tudo sobre esse negócio aí". Como o proverbial cachorro que cai do caminhão de mudança, esses valentes profissionais sequer sabiam que raio estavam cobrindo.

Fontes que ignoram o despreparo da imprensa recaem na indignação no dia seguinte, ante as barbaridades publicadas. Fontes que sabem disso, e que são capazes de se aparelhar, armam-se. Como têm consciência de que o preparo médio da reportagem é nenhum, ganham todas as condições de passar o que querem, coisa que fazem todos os dias. Conforme Mino Carta diz há décadas, repórter brasileiro nunca faz a segunda pergunta. Não é à toa que o jornalismo diário brasileiro é quase todo ele declaratório. Os efeitos são notórios no noticiário econômico, por exemplo, permanentemente vulnerável ao chapa-branquismo (há também colunistas conscientemente chapa-branca, é claro).

Como conseqüência da falta de racionalidade interpessoal na produção, em quase todos os jornais (em revistas o problema é bem menor, devido ao tempo de edição muito mais dilatado) a esmagadora maioria das matérias sai diretamente do terminal do repórter para a chapa de impressão. Ninguém lê o que será publicado, e ninguém lê no dia seguinte. Isso chegou a tal ponto que a crítica da edição, quando exercida, é encarada como ofensa (não me refiro ao trabalho de uma equipe de controle extra-redação, a qual há quem descarte, preconceituosa e antiprofissionalmente, como "polícia"). O repórter acredita ser uma espécie de Hemingway, no que é estimulado pela ausência de controles profissionais exercidos pela chefia.

Sem dúvida, a predominância de uma ideologia de vida alimentada pela "livre-iniciativa" estimula cada vez mais a perseguição de objetivos pessoais acima de qualquer outra consideração. É um fenômeno mais amplo, que afeta todas as atividades. O enfraquecimento dos condicionantes sociais que limitavam o escopo da ação individual dissolve os padrões profissionais e substitui a ética do ofício pelo vale-tudo do caçador de renda. As redações não estão livres disso. Em tais condições, pode-se considerar como certo um recrudescimento do mercantilismo pessoal, traduzido na venda de matérias (algo que a profissão esconde cuidadosamente, mas cuja potencialidade é bem presente) e na montagem de esquemas de negócios paralelos, alavancados com dinheiro do patrão.

É evidente que jornais feitos dessa maneira são mal planejados, mal pautados, mal apurados, mal escritos, mal acabados. Informam mal, portanto.

Mas como é que fica o fato de o público aceitar esses jornais? Não seria isso uma demonstração empírica da falsidade do que se afirmou até aqui? Não é a aceitação por parte do consumidor a medida da qualidade de qualquer produto, jornais incluídos?

A resposta é que a avaliação da qualidade pela popularidade se baseia numa alteração do significado da expressão "qualidade", alteração essa que, por sua vez, desconsidera de caso pensado o poder manipulador da propaganda e do marketing. O assunto tem certa complexidade, que a já alentada extensão do presente artigo impede seja explorada. Fica para outra vez.

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Dois tiros das redações – Alberto Dines

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