Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pesquisas não mentem, mas enganam

NÚMERO-NOTÍCIA

Guilherme Canela de Souza Godoi (*)


Há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas. Benjamin Disraeli (1804-1881), estadista inglês


Os números não mentem. A hipotenusa é sempre igual a soma dos quadrados dos catetos. Infalível! Com isto você pode construir pontes, casas, carros e pode até passar no vestibular. A matemática, juntamente com a lógica, é uma ciência formal. Em poucas palavras (os filósofos da ciência que me perdoem): você pode dizer, com certeza, se um enunciado matemático (ou lógico) é verdadeiro ou falso. Nas outras ciências (e, aí, provavelmente estou assumindo as teses de Hume) só podemos falar em probabilidades. Com a matemática, não! Dois mais dois são quatro, e este é um enunciado verdadeiro. Ponto final. No mundo não formal, o natural e o humano ? talvez mais neste do que naquele ? reina a incerteza. Na matemática reina a tranqüilidade (sei que os filósofos, especialmente os teóricos do caos, vão me apedrejar por isso).

Devido a esta tranqüilidade não é de espantar que os números tenham tanto crédito junto à sociedade. Para o senso comum eles realmente não mentem. Se mostrar um número ou exibir uma tabela, você reina soberano numa discussão. Não há mais o que argumentar: está comprovado numericamente, foi tirada a prova dos noves.

O jornalismo, atividade que busca incessantemente dar crédito aos seus produtos ? notícias e informações ? descobriu o poder dos números. E com o passar do tempo intensificou o uso dessa poderosa mágica. Os argumentos são cada vez mais embasados em estatísticas. Aqui e acolá, elas residem nas matérias jornalísticas. Corroboram os conteúdos, conferem status aos títulos. O objetivo final é alcançado: o leitor fica convencido e jornalista emplaca a sua tese. Convencer pessoas é um grande poder.

Porém, para parafrasear Tio Ben Parker, em Homem Aranha, um "grande poder deve vir acompanhado de grande responsabilidade". E aqui está o nosso problema: se as estatísticas sempre são verdadeiras, o seu uso pelos jornalistas pode ser desprovido de rigor e atenção? Evidentemente, não.

E daí?

Números estão inseridos em contextos específicos, por isso o seu mau uso, aliado à percepção de senso comum segundo a qual eles sempre dizem a verdade, pode induzir leitores e telespectadores a acreditarem em teses falsas. Dois comportamentos recentes do jornal Folha de S.Paulo podem exemplificar esta constatação.

Em 21 de maio, terça-feira, as três primeiras notas da coluna Painel (pág. A4) procuraram derrubar os números exibidos pelo governo federal, que apontavam grande declínio da mortalidade infantil nos anos FHC ? queda calculada em 38,3%. Segundo a nota, na década de 80-90 a taxa de mortalidade caiu ainda mais ? 41,6%. Diante da contra-argumentação do governo (que o Painel chama de "argumento oficial", mas que poderia ser elaborada por qualquer cidadão com segundo grau completo), segundo a qual quanto mais você derruba a mortalidade, mais difícil fica derrubá-la nos períodos subseqüentes, o jornal tira da cartola o número mágico da queda da mortalidade infantil no período 70-80, de 28%, época em que a taxa de mortalidade era bem maior e que, portanto, no entender dos jornalistas, deveria contar com uma queda superior à apresentada no período FHC.

A última nota conclui que o argumento apresentado pelo governo não se sustentava diante dos dados obtidos pela Folha. Xeque-mate! Os números não mentem! Será? [Assinantes do provedor UOL podem ver as notas em <http://www.uol.com.br/fsp/brasil/fc2105200201.htm>]

Realmente a queda da mortalidade infantil no período 70-80 foi de 28%. Número inferior à queda no período FHC, durante o qual a taxa de mortalidade era menor do que no período citado pelo Folha. Mas, e daí? A taxa poderia ser zero no período e o governo continuar tendo razão. Será que os jornalistas responsáveis pelo Painel não pensaram que os governos militares (ainda vigentes no período 70-80) podem não ter movido uma palha para derrubar os índices de mortalidade?

Não há um teorema que diga que a queda na taxa de mortalidade será sempre menor à medida que os anos passem. É preciso que se tenha feito alguma coisa nos anos anteriores para que ela tenha sido reduzida. Em 24 de maio, a responsável do Ministério da Saúde pela área de saúde da criança respondeu aos números da Folha com um raciocínio semelhante ao acima traçado.

Conseqüências desastrosas

Mas os exemplos de malabarismo numérico não param por aí. Em 29 de maio, de posse de dados da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, a jornalista Cláudia Rolli assina matéria com um título catastrófico ? "Brasil é o segundo do mundo em desemprego". Utilizando dados absolutos (ou seja, o número total de desempregados), afirma-se que, nesse quesito, o Brasil só perde para a Índia. Não é à toa que países continentais com grandes populações encabeçam a lista elaborada pela Prefeitura de São Paulo. A jornalista só se esqueceu de mencionar que países com enormes populações estão invariavelmente fadados a "conquistar" os primeiros lugares. Por outro lado, quando olhamos para os números porcentuais, o Brasil se encontra em 23? lugar (o que já é horrível, mas não estamos aqui entrando no mérito da questão do desemprego).

Jornalistas da própria casa perceberam o escorregão da Folha. Clóvis Rossi, em sua coluna diária, criticou logo no dia seguinte a tal matéria (30/5, pág. A2). Que tipo de enquadramento uma notícia como esta pretende passar? Lançando mão de estatísticas quer transformar o problema do desemprego em algo ainda mais tenebroso? Com que propósito? As estatísticas não mentem. Mas escondem. Um dito anônimo sustenta que "as estatísticas são como um biquíni: o que mostram é sugestivo, mas o que escondem é vital". Escondem, por exemplo, que números absolutos não são a mesma coisa que números relativos. É preciso ter cuidado, é preciso ter responsabilidade. [Veja, abaixo, remissão para o comentário do ombudsman da Folha sobre o assunto.]

A Folha de S.Paulo não é, infelizmente, a única a tropeçar, intencionalmente ou não, no uso das estatísticas. No ano passado, importante pesquisa da Agência de Notícias dos Direitos da Infância ["Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência", Brasília: ANDI, AMENCAR e DCA-MJ, s/d.] mostrou que a mídia passa uma imagem extremamente violenta do jovem infrator, induzindo a compreensão de que se trata em geral de um jovem que comete crimes contra a vida e contra as pessoas. Não obstante, os dados estatísticos da realidade (e não da realidade vista através da mídia) salientam que os crimes cometidos por adolescentes não alcançam 10% do total de delitos; e que a maioria deles é composta por furtos, sem, portanto, haver agressão à pessoa [leia comentário do ombusman Folha sobre a pesquisa da ANDI, remissão abaixo].

Que tipo de agenda o enquadramento da mídia coloca? Uma agenda que pode levar a uma redução da maioridade penal? Esta agenda resistiria a uma análise mais atenta dos dados?

Estas são algumas caricaturas acerca de como o uso dos números pode distorcer mais do que elucidar. Pode pautar uma agenda com conseqüências desastrosas para a sociedade. Pode embasar teses que não se sustentariam se os dados fossem tratados com maior responsabilidade.

Os números não falam por si, nós falamos por intermédio deles. Eles não mentem. Eles não erram. Mas, e nós?

(*) Mestrando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Núcleo de Estudos Sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília; e-mail gcanela@uol.com.br

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