Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Philip S. Golub

GUERRA NO GOLFO 2

“Da guerra fria à guerra preventiva”, copyright Le Monde Diplomatique, 10/03/03

“Faz mais de um quarto de século que a direita neoconservadora norte-americana tenta, com mais ou menos sucesso, estabelecer sua hegemonia ideológica e política nos Estados Unidos. Durante muito tempo contrariado pelo jogo democrático e as resistências da sociedade, esse projeto está prestes a dar certo devido, em primeiro lugar, à contestada vitória eleitoral de George W. Bush em 2000 e, depois, ao desastre de 11 de setembro de 2001, que transfigurou um presidente acidental em César norte-americano. Desde então, Bush tornou-se o vetor de uma política baseada no unilateralismo, a mobilização permanente e a guerra preventiva.

A guerra e a militarização não teriam sido possíveis sem os acontecimentos de 11 de setembro, pois estes fizeram com que o equilíbrio institucional se inclinasse a favor da ?nova direita?. Outras respostas, no entanto, menos desestabilizadoras para o sistema mundial, poderiam ser consideradas: por exemplo, um reforço efetivo da cooperação multilateral para conter a ameaça, conjugado a uma política de redução das tensões e resolução dos conflitos nas zonas de risco, sobretudo no Oriente Médio. Ou ainda, um esforço de desenvolvimento regional tendo como modelo o plano Marshall, que favoreceria as forças democráticas locais e cujos efeitos keynesianos sobre a economia norte-americana e mundial poderiam ser dinamizadores, diferentemente dos efeitos produzidos pela guerra.

Como se sabe, não foram estas as vias adotadas. Ao contrário, o governo Bush deixou que o conflito israelo-palestino se deteriorasse, lançou uma mobilização militar de muito grande amplitude e optou pela guerra preventiva como meio de ?governança? global. Para além das razões circunstanciais – aproveitar a oportunidade estratégica para ?reconfigurar? o Oriente Médio e o golfo Pérsico1 – essa opção reflete uma ambição imperial mais ampla. Como enfatiza Anatol Lieven, do Carnegie Endowment de Washington DC, ?produto do trabalho constante, desde o colapso da União Soviética no início da década de 90, de um grupo de intelectuais próximo de Richard Cheney e Richard Perle, o plano do governo Bush visa à dominação unilateral do mundo através da superioridade militar absoluta2?.

Tendo se tornado possível pela unipolaridade adquirida em 1991, esse projeto, de fato, data da década de 70. Pois nesse momento é que foi formada a coalizão dos extremos que atualmente dirige o país. Seu programa político é unificar a sociedade pela guerra e a mobilização permanente, e assegurar a supremacia estratégica global dos Estados Unidos. Hoje totalmente visível, esse projeto autoritário, que requer a definição incessante de um inimigo e a implantação de um Estado forte, independente da sociedade, já era evidente em meados da década de 70, quando a direita radical pôs a pique a política de distensão Leste-Oeste. Tornou-se explícito na década de 80, quando o mesmo grupo de atores empreendeu a mais vasta mobilização militar já conhecida pelos Estados Unidos em tempo de paz, e no início da década de 90, quando os neoconservadores elaboraram a chamada doutrina de prioridade3.

A demolição da política de distensão Leste-Oeste foi o momento em que surgiu. Em resposta à revolta da sociedade contra o Estado de segurança nacional, houve, por volta de meados da década de 70, uma convergência entre a direita radical do Partido Republicano, conduzida por Ronald Reagan, elementos revanchistas do aparelho de segurança nacional, abalados pela derrota no Vietnã, e os neoconservadores democratas oriundos da ala anticomunista radical do mesmo partido. Decidida a restabelecer a autoridade do Estado, o consenso nacional de guerra fria e a restaurar a supremacia estratégica de seu país, essa coalizão levou a uma ação política e ideológica metódica para enterrar a distensão.

Tal coalizão denunciou a política ?realista? de Richard Nixon e Henry Kissinger que determinava, segundo eles, um perigoso enfraquecimento da vontade coletiva norte-americana, e propôs uma mobilização de grande amplitude e uma estratégia ofensiva destinada a subjugar o regime soviético. Tratava-se de passar da distensão e da coexistência a ?medidas ativas?. Como destaca o próprio Kissinger, ?enquanto os primeiros atores da guerra fria tinham se contentado com a distensão para obter mudanças [do sistema soviético], seus sucessores prometiam mudanças significativas em razão de uma pressão direta norte-americana4?. Richard Perle, um dos elementos conservadores mais influentes do atual governo, reconhece com franqueza: ?Era preciso mostrar que a distensão não poderia dar certo e restabelecer objetivos de vitória5.? Facilitada em sua tarefa pela queda ignominiosa de Richard Nixon e a ascensão de Gerald Ford, presidente fraco e sem envergadura, a direita radical conseguiu se impor em poucos anos.

Para reanimar a vontade de vencer dos norte-americanos e neutralizar os partidários da coexistência armada (é bom lembrar que não se tratava de ?pombas?), ela falsificou os dados, exagerou a ameaça e caluniou os indivíduos e as instituições que poderiam contrariá-la, em particular o Departamento de Estado e a CIA. Em 1974, Albert Wohlstetter, da Rand Corporation, pai espiritual da corrente neoconservadora e sogro de Perle, lançou a primeira fase da ofensiva ?acusando a CIA de subestimar sistematicamente as implantações de mísseis soviéticos?. Na seqüência, os ?conservadores lançaram um ataque orquestrado?, secundados pelo ministro da Defesa da época, Donald Rumsfeld, por seu protegido, Richard Cheney, então chefe do Estado-Maior do presidente Ford, e por um grupo consultivo de inteligência estratégica ligado à Casa Branca, o President’s Foreign Intelligence Advisory Board (PFIAB).

Essa campanha deveria conduzir à criação, em 26 de maio de 1976, do ?Team B6? (Equipe B),um organismo externo de ?especialistas? encarregados pelo novo diretor da CIA, George Bush, de fazer uma contra-avaliação da ameaça soviética. Essa competição estabelecida entre a CIA e seus detratores (de direita, pois ninguém de esquerda foi solicitado) foi ainda mais surpreendente na medida em que o predecessor de Bush na CIA, William Colby, recusara uma iniciativa similar em 1975, justificando que lhe era ?difícil imaginar como um grupo ad hoc ‘independente’ de analistas […] poderia preparar uma avaliação das capacidades estratégicas soviéticas mais exaustiva do que aquela elaborada pela comunidade de informação?.

Dirigido pelo especialista em União Soviética Richard Pipes, pai do publicitário neoconservador Daniel Pipes, o ?Team B?, que contava entre seus membros eminentes com o atual subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, iria produzir, como demonstrou Anne Hessing Cahn, uma série de relatórios catastróficos, puras construções ideológicas sem qualquer base empírica.

Criticando os analistas da CIA e visando, através deles, a política de distensão, o grupo de Pipes afirmava: ?As estimativas nacionais de inteligência [da CIA] estão cheias de conclusões sem fundamento nas intenções soviéticas. Essa prática é que é a causa das sub-estimativas recorrentes quanto à intensidade, a extensão e a ameaça implícita representada pela mobilização estratégica soviética.? O ?Team B? tinha a pretensão de conhecer as verdadeiras intenções soviéticas: ?As teorias políticas e militares russas e soviéticas são nitidamente ofensivas […]. Seu ideal, formulado por um comandante russo do século XVIII, o marechal A. V. Suvorov, é a ciência da conquista.? Em outras palavras, os soviéticos, armados com mísseis nucleares intercontinentais e com uma cultura estratégica inspirada por Clausewitz, que privilegia a ofensiva, não só eram capazes de lançar um ataque preventivo contra os Estados Unidos, mas ainda seriam culturalmente levados a fazê-lo.

Essas generalizações absurdas entrelaçadas por inverdades – as despesas militares soviéticas começaram a diminuir em 1975, com uma taxa de crescimento avaliada em 1,3% ao ano entre 1975 e 19857 – foram pura e simplesmente fabricadas a fim de desestabilizar o equilíbrio institucional norte-americano. De acordo com Howard Stoertz, na época responsável na CIA pelas análises sobre a União Soviética, a direção de George Bush ?foi um desastre absoluto para a CIA8?. Mas foi um sucesso significativo para a direita radical e desempenhou um papel decisivo no abandono da distensão em 1976, data em que o termo desapareceu do vocabulário oficial. Por ocasião da eleição presidencial de 1976, Ronald Reagan retomou, por sua vez, o discurso do ?Team B?: ?Esta nação passou a ser o número dois num mundo em que é perigoso, talvez até fatal, ser o segundo.?

Como se sabe, o inventor da expressão ?Império do mal? iria, alguns anos mais tarde, dar prosseguimento a esse movimento, integrando à sua equipe as figuras emblemáticas da época Ford, a começar por Perle e Wolfowitz, dando início a um vasto esforço de defesa e relançando operações clandestinas de grande envergadura, abandonadas desde a derrota do Vietnã, principalmente no Afeganistão e na América Central.

Em março de 1983, Ronald Reagan voltaria a questionar a estrutura de segurança nuclear global, instituída pelo governo Nixon e baseada no tratado antibalístico de 1971 (ABM). Lançou então a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI), programa de pesquisa e de desenvolvimento visando à criação de um escudo antibalístico terrestre e espacial. Ao mesmo tempo, a Casa Branca lançava operações ofensivas de informação em torno da União Soviética e, em seu espaço aéreo, ?provocações políticas maiores?, de acordo com os termos de um analista da CIA, destinadas a pôr em evidência as vulnerabilidades dos sistemas de defesa soviéticos9.

O final da guerra fria, em 1991, iria consagrar a supremacia estratégica norte-americana, outorgando aos Estados Unidos um monopólio real do recurso à violência nas relações entre Estados. Mas, simultaneamente, a queda da União Soviética fazia desaparecer a razão de ser do Estado de segurança nacional, dissolvendo o sentido que só um inimigo mortal propicia. Como dizem dois pesquisadores norte-americanos, ?poderia pensar-se que os neoconservadores se tivessem rejubilado com a morte de seu inimigo?. Não foi exatamente o caso. Assombrados pelo espectro da desmobilização nacional e ?preocupados, antes de tudo, com a legitimidade política e cultural do regime norte-americano?, procuraram um novo ?demônio […] capaz de unificar e de inspirar o povo […]. Um inimigo a ser combatido que lembrasse aos norte-americanos o sentido e a vulnerabilidade de sua cultura e de sua sociedade10?.

A guerra do Golfo de 1991 e a substituição da União Soviética pelos ?Estados delinqüentes? como adversário estratégico global autorizaram a nova mobilização nacional e permitiram a preservação e a extensão do arquipélago militar planetário dos Estados Unidos. Essa guerra, segundo Cheney, na época secretário da Defesa, representava a ?prefiguração do gênero de conflito que poderíamos enfrentar na nova era […]. Além do Sudoeste Asiático, temos interesses importantes na Europa, na Ásia, no Pacífico e na América Latina e Central. Devemos configurar nossas políticas e nossas forças de tal maneira que elas dissuadam ou permitam vencer rapidamente semelhantes ameaças regionais futuras11?.

Alguns meses mais tarde, Wolfowitz e I. Lewis Libby, respectivamente vice-ministro da Defesa e assessor de Cheney para as questões de segurança no atual governo, elaboravam o Defense Policy Guidance 1992-1994 (DPG), documento do Pentágono que preconizava ?impedir qualquer potência hostil de dominar regiões cujos recursos lhe permitissem aceder à situação de grande potência?, ?desestimular os países industrializados avançados a fazerem qualquer tentativa visando a desafiar nossa liderança ou subverter a ordem política e econômica estabelecida? e ?evitar a futura emergência de qualquer concorrente global12?.

Convertendo, após o 11 de setembro de 2001, a luta contra as redes terroristas multinacionais em guerra contra ?o eixo do mal?, o atual governo Bush nada mais fez do que dar prosseguimento a um projeto político e estratégico definido na década de 70 e depois readaptado, no início da década de 90, para o pós-guerra fria. A doutrina de guerra preventiva oficializada em setembro de 2002 marca, evidentemente, uma ruptura com a doutrina de distensão e de dissuasão constantemente adotada pelo Estado norte-americano. Mas se insere na continuidade dessa vontade persistente da direita radical, nacionalista e neoconservadora norte-americana, de estabelecer seu poder por meio da guerra. Como disse William Kristol, ideólogo neoconservador e fundador do Project for a New American Century (?Projeto para um novo século norte-americano?), ?é sempre um bom sinal quando o povo norte-americano está pronto para entrar em guerra13?. (Trad.: Regina Salgado Campos) * Professor da Universidade Paris VIII e jornalista.”

“Críticos de Bush denunciam ?caça às bruxas?”, copyright Folha de S. Paulo, 9/03/03

“É a luta do ?bem? contra o ?mal? tal qual previu George W. Bush ao definir a política externa de seu governo, mas o problema é que está acontecendo dentro de seu próprio país. Na última semana, a comunidade artística se mobilizou contra o que a entidade que reúne atores disse à Folha tratar-se de ?neomacarthismo?.

O coro foi liderado por comunicado do site da Screen Actors Guild (SAG), em que o órgão lembra a chamada ?caça às bruxas? promovida pelo senador Joseph McCarthy (1908-57), que comandava a perseguição a pessoas suspeitas de serem comunistas, principalmente em Hollywood, que eram colocadas numa lista negra e impedidas de trabalhar.

?Deploramos a idéia de que pessoas públicas devam sofrer profissionalmente por ter a coragem de expressar sua opinião?, afirma o texto. ?Mesmo uma leve sugestão de lista negra não pode ser nunca mais tolerada neste país.? À Folha, Jae Je Simmons, diretora da SAG em Nova York, mandou dizer que o editorial se referia ao que chamou de neomacarthismo.

No papel que nos anos 40 e 50 foi do senador estariam os ultraconservadores apresentadores de ?talk shows? de rádio, que vêm urgindo seus ouvintes a mandarem cartas e e-mails às emissoras de TV e estúdios pedindo que demitam atores que se posicionarem contra uma intervenção militar dos Estados Unidos no Iraque.

Do outro lado, artistas liderados pelo ativista Martin Sheen, que goza de fama no país por seu papel como o presidente democrata do seriado televisivo ?The West Wing?. ?Nunca recebi tantos e-mails ameaçadores?, disse ele ao jornal ?Los Angeles Times?. Sean Penn, Susan Sarandon e a cantora Sheryl Crowe, entre outros, relataram casos semelhantes.

Sheen não deveria estranhar, já que seus opositores usam os mesmos métodos que ele. Há duas semanas, o ator liderou a ?Marcha Virtual sobre Washington?, que convocava uma avalanche de e-mails contra a provável guerra do Iraque enviados para os membros da Casa Branca e do Congresso.

?Terrorista internacional?

Esse é apenas o exemplo mais recente da divisão por que passa o país. O clima é de confronto entre os que apóiam a intervenção militar e os que se opõem a ela, com evidente vantagem para os primeiros, que se sentem amparados pelos ares conservadores emanados pela Casa Branca de Bush.

Há alguns dias, o estudante Bretton Barber, de Dearborn (Estado de Michigan), foi expulso da sala de aula de seu colégio por usar uma camiseta com a foto do presidente e os dizeres ?Terrorista internacional?. ?Os alunos têm direito de opinar, mas o momento é delicado, por conta do conflito iminente com o Iraque?, disse Dave Mustonen, da escola.

Na mesma época, a jogadora de basquete Toni Smith foi quase crucificada pelos tablóides conservadores de Nova York, liderados pelo ?Post?, do empresário Rupert Murdoch, por virar, em protesto contra a guerra, de costas à bandeira dos EUA durante a execução do hino nacional.

?Saddam Hussein deve estar se sentindo confortado pelos pacifistas nova-iorquinos?, bradou em texto de sua manchete o redivivo ?The New York Sun?, que se considera à direita de Bush e é mais afinado com o secretário da Justiça, o religioso John Ashcroft.

O bate-boca continua. No ?LA Times?, a seção de cartas estampava a cizânia no dia seguinte à entrevista de Martin Sheen. ?Minha neta está agora numa barraca militar no Kuwait passando frio para defender o ?direito? do sr. Sheen de falar o que acha?, disparou Sheila Erlanson.

?Graças a Deus por Martin Sheen?, escreveu George Bentley. ?Quanto aos e-mails ameaçadores, lembro a ?Bíblia’: ?Nenhum profeta é aceito em seu lar?.?”