PAIXÃO & DESATINO
Wagner Carelli (*)
Texto da "orelha" de Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu, 352 pp., W11 Editores, São Paulo, 2003; R$ 39,00; título e intertítulo da redação do OI
Fazer cumprir a missão das "orelhas" de um livro e encetar uma síntese abreviada de seu conteúdo é, no caso deste Concerto para paixão e desatino, algo como resumir em poucas linhas A Ilíada. Primeiro, porque as sinopses se assemelham; depois, porque sintetizá-las em um escasso enunciado é tarefa de realização possível, mas de resultado equívoco. Qualquer redução aqui é, de fato, sumária: perde-se no propósito a única dimensão dessas obras, a infinita, que só se adverte ao concatenar-se, pela leitura de cada uma de suas milhares de palavras, o continente sem termo de seus significados.
Assim, dizemos quase sem nada dizer que A Ilíada narra a história da guerra de Tróia em redor da fúria de Aquiles, e que transporta em poema o heroísmo de homens e deuses a lidar com a intensidade das emoções e a bater-se em meio ao horror e à devastação. De Concerto Para Paixão e Desatino, em cenário que antecipa outra luta, a Revolução de 30 na Paraíba, dizemos que em torno da figura fictícia, socialmente minúscula e literariamente agigantada de Isaías do Padre reconstroem-se os conflitos, elabora-se a mitologia de suas figuras históricas ? João Pessoa, José Américo de Almeida, Juarez Távora, Agildo Barata soam como Heitores e Príamos na composição ? e delineia-se um enredo de espantos, a desdobrar-se em violência, paixões e mortes no campo mítico dos canaviais. Para seguir no plano comparativo de A Ilíada, o adequado ao Concerto, e dizer algo mais, pode-se reparar ainda que aquela está para a literatura universal como este para a brasileira: são primeiros épicos; um, o poema fundador ? o outro, o primeiro romance. Não vai aí hipérbole ou pretensão; o épico é um gênero de regras estritas ? o oxfordiano E. M. W. Tylliard passou uma existência acadêmica a codificá-las ? observadas aqui com integralidade sem precedentes entre os grandes romances brasileiros.
Mahler & Mozart
A mais evidente virtude épica, e a que fundamenta o gênero, está em tramar personagens de formidável dimensão humana numa geografia imagética e narrativa desmesurada, de tal forma que, embora desenhe determinadas circunstâncias sociais em limites naturais precisos, a combinação projete a ilimitação do homem e da natureza.
Concerto para paixão e desatino é um triunfo no desincumbir-se da proeza. Suas personagens circulam imensas, cômicas e trágicas em insana busca de sentido, no território desmedido de um fim-de-mundo em convulsão. Forja-se aí, na vastidão, a perfeita congruência do factual e do fabuloso, sem mínimo descuido da verossimilhança física e histórica do conjunto; núcleos de personagens e situações, como aqueles da narrativa homérica, são cosidos num cerzido invisível para, sem deixar de estar à parte, compor o todo num painel monumental, a sugerir questões além e acima da intensa relação, em cada um desses núcleos, entre personagens e circunstâncias. Um épico, de impecáveis costuras; o óbvio fio é a escrita, a retrabalhar pós-modernamente todas as formas da língua portuguesa num canto original, capaz de soar poderoso como uma sinfonia de Mahler ? mas que se lê rápida, clara e deliciosamente como uma partitura de Mozart.
(*) Jornalista e editor