Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Época

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

"O jornalista que mudou o Brasil", copyright Época, 11/08/03

"O jornalista Roberto Marinho construiu uma fascinante história de transformações pessoais em idades improváveis. Com apenas 26 anos, depois da morte do pai, Irineu, de quem também era secretário, assumiu o comando da redação do jornal O Globo. Aos 61, quando muitos já ensaiam a aposentadoria, criou a TV Globo. Aos 84, casou-se pela terceira vez, com Lily Monique de Carvalho, então viúva e com 67 anos. Ao longo de quase três quartos de século de ativa participação na vida política e social do Brasil, com reviravoltas numa existência que nunca foi monótona, ajudou a mudar o país. Como ele mesmo definiu numa autobiografia ainda inédita, foi ?uma vida condenada ao sucesso?. O sucesso, se não veio por acaso, foi abruptamente acelerado com o súbito desaparecimento do pai, que o forçou a mergulhar no cotidiano de O Globo.

Irineu começara a carreira como revisor no Diário de Notícias. Fundou O Globo em 1925. Vinte e três dias depois, morreria de ataque cardíaco durante um banho. Coube a Roberto, o mais velho dos cinco filhos de Irineu e Francisca, a dona Chica, entrar pela minúscula janela do aposento sanitário para encontrar o pai estendido no chão. Recusou-se a aceitar o posto de diretor de redação do vespertino recém-criado por não se considerar apto a tamanha responsabilidade com tão pouca idade. Chica percebeu a ansiedade do primogênito. ?Roberto, vamos vender o jornal que você é muito moço?, disse. ?Vender o jornal coisa nenhuma?, retrucou o filho. ?Quem vai tomar conta do jornal sou eu.? Era preciso antes, no entanto, aprender a tocá-lo, como patrão e jornalista – e Roberto Marinho colou nos passos do diretor de redação, o experiente Euclydes Mattos. Tinha especial admiração pelas máquinas de impressão, compradas nos Estados Unidos e que pertenceram ao Exército americano na guerra de 1917.

Depois da morte prematura do pai, resolveu aprender a ser jornalista, antes de ser patrão. Colocou Euclydes de Mattos na direção da redação e trabalhou duro em todas as áreas da nova empresa

Afeito ao aspecto industrial de confecção do jornal, produziu um episódio insólito. Já no comando do diário, Roberto Marinho tentava convencer Herbet Moses, o homem encarregado das finanças, a comprar uma máquina nova para O Globo. Moses insistia: tudo corria bem, o jornal saía da gráfica com qualidade e velocidade e, portanto, não havia motivo para adquirir novo equipamento. Roberto Marinho não se convenceu. Tomou emprestada uma sala no Liceu de Artes e Ofícios, em cujo edifício, no centro do Rio de Janeiro, funcionava a redação, e ali instalou outra máquina, comprada sem o conhecimento de Moses, que, a cada edição, desfilava elogios à qualidade de impressão – como se ela pudesse ser atribuída ao maquinário original. Fora a primeira grande vitória de Roberto, num lance de inventividade que o acompanharia por toda a vida e que já o levara, em 1930, um ano antes de assumir a redação, a produzir uma notícia exclusiva. Roberto Marinho, com máquina fotográfica a tiracolo, acompanhava a movimentação diante do Palácio Guanabara, na queda do presidente Washington Luís. Naquele tempo, estava prestando serviço militar. Sagaz, conseguiu uma imagem rara, do chefe de Estado deposto rumo ao exílio, ao lado do cardeal Leme. Dera seu primeiro furo. ?O doutor Roberto não é empresário, ele é jornalista?, disse Evandro Carlos da Andrade, diretor de redação de O Globo nos anos 70 e 80, já falecido, em depoimento ao Projeto Memória, da TV Globo. ?Era um homem de notícia, um jornalista voltado para a cobertura dos fatos, nunca foi afeiçoado à especulação política.?

A falta de interesse por esse tipo de especulação não impediu, porém, que o crescimento do jornal, e depois o nascimento e a explosão da TV Globo, fizessem Roberto Marinho se transformar em interlocutor contumaz de todos os principais políticos brasileiros do século 20. Getúlio Vargas foi o primeiro a fasciná-lo (e vice-versa). Com Vargas, Roberto Marinho aprendeu a caminhar em terreno complicado – o das relações entre a imprensa e o poder. Para o jornalista Cláudio Mello e Souza, amigo próximo, ?o jogo político era fundamental para a sobrevivência do jornal nos anos 30, quando Getúlio controlava os diários por meio de pressão de financiamento para esse ou para aquele?. A liberdade de imprensa dependia da simpatia e do bom humor de Vargas e de seu ministro da Fazenda, que variava sempre. A convivência com o caudilho gaúcho serviu de curso de pós-graduação numa seara repleta de armadilhas. Um a um, todos os presidentes brasileiros conviveram com Roberto Marinho (uma galeria de fotos de Roberto Marinho com vários presidentes brasileiros de seu tempo acompanha esta reportagem).

Dois personagens antagônicos da história do Brasil o entusiasmavam – nem sempre pela postura política, e sim pela coragem atávica em enfrentar desafios, como se fossem espelho de si mesmo. Seus nomes: Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes. Lacerda, ainda deputado, nos anos 40 e 50, aproximou-se de Roberto Marinho depois que este lhe abriu espaço no Sistema Globo de Rádio. Em entrevista ao editor de livros José Mário Pereira, da Topbooks, Roberto Marinho relembrou a tarde em que, numa visita ao jornal, Lacerda ficou preso no elevador, agitadíssimo com a situação. Foi preciso quebrar a parede para liberá-lo e acalmá-lo. Os dois eram, naquela época, muito amigos. O vaivém da política os instalaria em campos opostos. Lacerda, amante das diatribes, passou a atacar a Globo e Roberto Marinho. O jornalista, irritado e ofendido, resolveu agir. Quase nunca se exaltava, mas decidiu ir à casa de Lacerda, na Praia do Flamengo, para chegar às vias de fato. Cumprimentou os seguranças, entrou no elevador e, lá em cima, foi recebido pela empregada, que o convidou a entrar. Felizmente, Lacerda tinha saído.

Ele só o conheceria pessoalmente em 1989, durante a eleição que opôs Lula e Collor no segundo turno. Embora o jornal tivesse apoiado a legendária Coluna Prestes, de 1924 a 1927, o jornalista nunca se encontrara com o líder comunista. Quando ele morreu, Roberto Marinho não só assinou um editorial simpático em O Globo como escreveu de próprio punho uma carta à viúva, dona Maria.

Na era Vargas, o jogo político foi fundamental para a sobrevivência do jornal e a garantia da liberdade de imprensa. A convivência com o caudilho gaúcho acabou representando sua pós-graduação nessa seara cheia de armadilhas

O relacionamento de Roberto Marinho com os comunistas foi sempre leal. No início dos anos 70, durante o regime militar inaugurado em 1964, os generais de plantão pediram uma lista de comunistas que trabalhavam em O Globo. Roberto Marinho disse a um de seus interlocutores de farda verde-oliva: ?Olha, vem aqui que eu vou te dar a lista?. E deu. No mesmo dia, um comandante do Exército, indignado, telefonou para o jornalista e esbravejou: ?O senhor me mandou a folha de pagamentos?. A resposta foi rápida: ?Ué, mas quem tem de descobrir os comunistas são vocês, estão aí todos os funcionários do jornal?. Em outro episódio semelhante, em 1965, durante o governo do general Castello Branco, o ministro da Justiça, Juracy Magalhães, chamou os donos dos jornais para dizer como queria que a imprensa se comportasse e entregou à direção de O Globo uma lista com 64 nomes de profissionais que deveriam ser afastados do copidesque do jornal, o departamento em que os textos recebiam tratamento final. As autoridades acreditavam que os militantes de esquerda se infiltravam preferencialmente nesse momento da linha de montagem do jornalismo e, por mais ridícula que fosse essa informação, tinham-na como verdadeira. Na reunião com o ministro, quase todos ficaram calados ou disseram ?sim?. Roberto Marinho preferiu o ?não?. Recusou-se a entregar as cabeças e soltou uma frase, hoje antológica: ?Ministro, o senhor faz uma coisa, vocês cuidam dos seus comunistas, que eu cuido dos nossos lá do Globo?.

Durante os governos militares, segundo depoimento de profissionais que trabalhavam no jornal e na TV, Roberto Marinho aos poucos percebeu que a Globo estava exageradamente vinculada ao regime. Disse Evandro Carlos de Andrade no depoimento ao Projeto Memória: ?Ele foi se decepcionando progressivamente, mas havia o engajamento do jornal e essas coisas não se mudam da água para o vinho?. A mudança de postura de O Globo, comandada por Evandro, teve grande incentivo de Roberto Marinho. Ele sabia que era preciso mudar, e mudava nos detalhes. Em 1974, no dia em que Ernesto Geisel tomou posse como presidente da República, Roberto Marinho telefonou para a redação. Queria conversar com o chefe de plantão, responsável pelo fechamento da edição. A manchete que ele mesmo sugeria não cabia no espaço abaixo das fotos de Geisel, empossado, e de Médici, em seu derradeiro ato no governo. Roberto Marinho não vacilou, e com uma única frase definiu os novos caminhos: ?Bota o Médici pequenininho?.

Por apegar-se a pessoas, e não às transitórias conjunturas políticas, contratava profissionais sem pensar em suas preferências ideológicas

Rápido nas decisões, tomava as iniciativas quase no faro. Para um de seus filhos, José Roberto Marinho, sua grande qualidade sempre foi a de entender as pessoas, de radiografá-las com velocidade rara. ?Ele percebe as pessoas nas suas qualidades, nos seus defeitos, no seu temperamento, numa rapidez impressionante?, disse José Roberto. Por apegar-se a pessoas, e não a conjunturas políticas que podiam – e costumavam – ser transitórias, Roberto Marinho contratava profissionais independentemente do lado em que estivessem em outros momentos. Inimigos notórios trabalharam em O Globo com a anuência, e muitas vezes com a palavra final, do próprio jornalista. O caso mais emblemático é o de Franklin de Oliveira, que se notabilizou como secretário particular de Leonel Brizola. No início dos anos 60, como voltaria a ser nos 80, o então governador do Rio Grande do Sul era o mais empedernido dos adversários políticos de O Globo – e Franklin é quem escrevia alguns dos textos mais virulentos contra Roberto Marinho.

?O doutor Roberto tinha erisipela quando pensava nele?, conta o publicitário Mauro Salles. ?Houve o golpe de 64 e Franklin de Oliveira ficou desempregado, veio do Rio Grande do Sul para o Rio, e em três ou quatro meses estava sem dinheiro, não sabia o que fazer.? Por sugestão de Antonio Olyntho, hoje na Academia Brasileira de Letras, o nome de Franklin de Oliveira foi sugerido como editorialista a Mauro Salles, então um dos chefes do jornal. Com boas referências a respeito do caráter de Franklin, e de sua ferina inteligência, Roberto Marinho mandou contratá-lo no mesmo dia. Conquistara um inimigo. Ganhara um imenso problema com o governo. Durante uma das inúmeras Comissões de Inquérito Militares que assolavam o país na segunda metade dos anos 60, os donos de jornal foram convocados a comparecer ao Ministério da Guerra. Uma vez mais as autoridades mostravam-se preocupadas com uma suposta infiltração de esquerda na imprensa. Um dos generais iniciou uma catilinária: ?A revolução não pode admitir que entrem nos jornais figuras infiltradas que são da revanche?. Referia-se a Franklin de Oliveira. Olhava para Roberto Marinho, que se levantou para dizer: ?General, eu não vim aqui para ouvir isto e quero lhe esclarecer que O Globo contratou gente que serviu ao regime anterior, de João Goulart, e vai continuar contratando, e eu não tenho nenhuma satisfação a lhe dar, e boa tarde?. Levantou-se, foi embora e assim terminou a reunião. ?As pessoas que não passaram pelo processo do regime militar não imaginam o que isso representava de coragem, hombridade e dignidade humana?, lembrou Mauro Salles, em depoimento gravado pelo Projeto Memória.

Na capa, as fotos de Geisel, empossado, e de Médici, em seu último ato de governo. Numa única frase, ele definiu os novos caminhos: ?Bota o Médici pequenininho?

Episódios como o da contratação de Franklin de Oliveira, de campo ideológico oposto ao de Roberto Marinho, contratado por suas qualidades profissionais e pessoais, foram comuns na vida do criador da TV Globo. Quando circulou a notícia de que o colunista Paulo Francis estava negociando sua ida para O Globo, uma secretária apressou-se a lembrá-lo das duras referências a ele e a suas empresas no Pasquim. Roberto Marinho não se incomodou e autorizou a contratação. Francis faleceu em 4 de fevereiro de 1997. No dia 7, segundo relato do editor José Mário Pereira, ao saber que o corpo já estava no Rio, Roberto Marinho chegou ao Cemitério São João Batista antes da família. Numa sala reservada, onde se preparam os corpos, ficou diante do caixão, calado. De volta ao carro, evitou conversar com a imprensa, mas comentou com um secretário que o acompanhava: ?Que pena, era um rapaz ainda muito novo?. Paulo Francis tinha 65 anos.

Com o passar dos anos, é evidente, a longevidade de Roberto Marinho tornou-se lenda. Por ter atravessado o século XX e invadido o XXI, ele mesmo gostava de se vangloriar da força física e da capacidade intelectual. Não se furtava a cultivar histórias que soavam como anedotas, mas de alguma forma ajudavam a definir sua personalidade. Uma das histórias mais conhecidas, e nunca comprovadas, algumas vezes narrada pelo próprio jornalista, com sorriso nos lábios, refere-se a uma tartaruga que quiseram lhe dar de presente. Ao receber o animal, o acariciou e perguntou quanto tempo um bicho daqueles vive, em média. A resposta: ?Uns 200, doutor Roberto?. Ele então teria replicado: ?Não quero, não. A gente se afeiçoa ao bichinho, e é uma tristeza quando morre?. Os 98 anos de Roberto Marinho contaram uma parcela da história brasileira."

 

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"O Começo De Tudo", copyright Época, 11/08/03

"Irineu Marinho Coelho de Barros iniciou aquele que seria o maior império de comunicação do Brasil com 25 contos de réis. O dinheiro nem era dele, mas tomado emprestado para criar com amigos o primeiro vespertino carioca, A Noite, em 1911. As bobinas de papel foram compradas com dinheiro arrecadado, mas em menos de um ano a empresa já tinha equipamentos novos e era um sucesso editorial. Catorze anos depois, Irineu botava a primeira edição de O Globo nas ruas, na tarde ensolarada de 29 de julho de 1925. Estampava reportagens sobre a exploração da borracha e o aumento do número de carros no Rio de Janeiro. Não viveu o suficiente para assistir ao triunfo do jornal. Nem acompanhou o avanço da Coluna Prestes e a fuga do presidente Washington Luís do Palácio Guanabara. Menos de um mês depois do lançamento do diário carioca, Irineu tombou vítima de um infarto na banheira de sua casa. Tinha 49 anos. O suficiente para dar ao país um jornalismo mais arrojado na diagramação das páginas e na valorização das histórias do cotidiano. E para legar ao filho mais velho, Roberto, não só a coragem de sonhar, mas a ousadia de fazer.

De família modesta, o primeiro Marinho a fazer história no país nasceu em Niterói, em 19 de junho de 1876. A vocação para a imprensa surgiu ainda na adolescência, ao editar com um colega o jornal manuscrito da escola. Em 1891, iniciou a carreira jornalística como revisor do jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. Mais tarde transferiu-se para A Notícia, uma das publicações mais importantes naquele período. Trabalhou com os nomes mais ilustres de seu tempo, como Olavo Bilac, Arthur Azevedo, Emílio de Menezes e Pedro Rabelo. Passou pela Gazeta da Tarde, por A Tribuna, no qual se revelou um grande repórter, e pela Gazeta de Notícias.

Em 1903 casou-se com dona Francisca Pisani, uma descendente de italianos. Tiveram seis filhos: Roberto, Heloísa, Ricardo, Hilda, Helena (falecida com 1 ano de idade) e Rogério. Irineu mostrou aos herdeiros o valor do trabalho – ele só deixava a redação depois de 15 horas de batente. Também os ensinou a levar a vida com elegância. Costumava dizer a eles que uma das melhores formas de recuperar o humor era ler trechos de Pickwick Papers, de Charles Dickens."

"Página da História", Editorial, copyright Jornal do Brasil, 8/08/03

"Com a morte de Roberto Marinho, o ano em curso acaba de virar a página da história essencial da imprensa brasileira no século 20. O primogênito de Irineu Marinho foi um gigante não só dos meios de comunicação mas da vida empresarial, cultural e política do país. Ainda muito jovem, em 1925, assumiu a dupla responsabilidade de arrimo de família e dono do recém-lançado jornal O Globo. Passou a participar do dia-a-dia da redação, inspirou-se nos melhores profissionais e, em pouco tempo, dominou os segredos da imprensa. Aos 26 anos, após a morte do secretário de redação, Euricles de Mattos, assumiu a direção do Globo. Desde então, criatura e criador se confundiram e não pararam mais de crescer, construindo o maior império de comunicação de que se tem notícia no Brasil.

Muito se ouvirá falar a respeito de Roberto Marinho nestes dias de pesar e luto, e ganhará ênfase, com toda a razão, uma de suas principais características: a perseverança. Ao longo de toda sua vida, o jornalista e empresário Roberto Marinho jamais se deixou abater por obstáculos e dificuldades.

Assim foi desde a perda prematura do pai. Quando parecia ausentar-se da briga, estava na verdade empenhado na acumulação de forças para a conquista da vitória. Com paciência oriental, sabia esperar a hora exata, sempre demonstrando enorme senso de oportunidade nas investidas empresariais.

Roberto Marinho deixa notável exemplo de tolerância. Nos negócios e na administração das Organizações Globo, agiu permanentemente com grande equilíbrio. Foi fiel às escolhas em qualquer campo e tratou inimigos com consideração e respeito. Com ele, o profissionalismo esteve acima das questões pessoais ou ideológicas, sem dogmas nem preconceitos.

Roberto Marinho viveu plenamente o século. Morreu aos 98 anos e deixa a imagem do homem que, ao preservar a saúde e a mente, preparou suas empresas e as futuras gerações para uma vida longa e produtiva. Com alegria, realizações, e sem medo de adversidades."

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"Enredo carregado de tintas vitoriosas", copyright Jornal do Brasil, 8/08/03

"Roberto Marinho na bancada do ?Jornal Nacional?: com sua morte, encerra-se a era dos grandes homens da mídia impressa

É incontestável: na construção do jornalismo contemporâneo brasileiro, Roberto Marinho exerceu papel fundamental. Em meio a petardos, sem qualquer comprovação documental, de desafetos do segmento político, análises de teóricos da comunicação impressas em dúzias de livros sobre o império das Organizações Globo e discussões em rodas de economistas voltadas para o impacto dos investimentos de Dr. Roberto na economia nacional, ?o magnata da mídia?, como foi descrito ontem pelo site da rede britânica BBC, foi de fato um dos mais importantes empresários das comunicações em atuação no país nas últimas oito décadas. Vítima de um edema pulmonar provocado por uma trombose que o levou à morte aos 98 anos, na noite de quarta-feira, Roberto Marinho personificou a história da evolução da imprensa no Brasil. E encerrou a era dos grandes homens da mídia impressa brasileira, que teve seu auge na década de 80 com Manuel Francisco do Nascimento Brito (Jornal do Brasil), Ary Carvalho (O Dia) e Julio de Mesquita Neto (O Estado de S. Paulo).

Apesar da enorme responsabilidade profissional que desde os 26 anos consumiu-lhe a maior parte das horas do dia, sobretudo quando assumiu o comando do jornal O Globo, em 1931, seis anos após a morte do pai, Irineu Marinho Coelho de Barros, o jornalista jamais deixou de se dedicar às paixões que mantinha fora dos limites da redação. Na juventude, adorava velocidade e era um exímio praticante de esportes. Das modalidades esportivas que encabeçavam sua lista preferencial, destacava-se o mergulho. ?Não sei se vou causar incredulidade dizendo que mergulho, sem aparelho e sem oxigênio?, declarou certa vez. Dos mergulhos no fundo do mar às pistas hípicas foi um salto. Admirador do hipismo, o empresário também exercitou a atividade por um longo período.

Com uma postura extremamente simples, o que sempre foi enaltecido por seus funcionários, Roberto Marinho, apesar da elegância, surpreendia pela cotidiano sem grandes requintes. Por isso mesmo, intrigava os amigos quando dissecava histórias como a que viveu durante a queda do então presidente Washignton Luiz. Para furar os os concorrentes, ele – já diretor de O Globo – rumou para o Palácio. E lá teve a ?brilhante?idéia de espalhar galhos de árvore pelo caminho do automóvel presidencial para obter o flagrante com o qual ilustraria a primeira página do jornal no dia seguinte.

Dono de uma fortuna estimada em US$ 6,4 bilhões em 2000, o empresário foi, por inúmeras vezes, alvo da esquerda política nacional. Na década de 30, em período pré-revolucionário, abraçou a campanha de Getúlio Vargas à presidência em oposição a Julio Prestes. Os comunistas ficaram revoltados. Em 1964, com o argumento de que queria preservar as instituições democráticas, apoiou o golpe militar que deporia do cargo o presidente João Goulart. Mas foi um combatente expressivo da era de repressão e censura, ratificada em 68 e 69, que sufocaria o país até o início dos anos 80."

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"História de sucesso de um empreendedor", copyright Jornal do Brasil, 8/08/03

"De um pequeno jornal recém-fundado ao maior conglomerado de mídia do Brasil, a trajetória do empresário Roberto Marinho foi marcada pelo sucesso. Jornais, rádios, televisão, TV paga, internet, as Organizações Globo estão nos principais segmentos do setor no país. Sua morte foi noticiada ontem na primeira página de ontem do The Wall Street Journal, um dos mais prestigiosos jornais econômicos do mundo.

Roberto Marinho iniciou a carreira em 1925, ao assumir o jornal O Globo após a morte do pai, Irineu Marinho. A partir de 1944 deu início também aos negócios de radiodifusão do grupo. Mas a grande jogada foi a fundação da TV Globo, em 1965. Com cinco emissoras próprias e 110 afiliadas, a Rede Globo cobre 99,9% do território nacional, atingindo 41 milhões de lares.

Os anos 90 foram de altos investimentos para entrada nos mercados de TV paga e internet. A Net, líder no segmento, tem 1,3 milhão de assinantes e registrou no segundo trimestre seu primeiro lucro: R$ 31,5 milhões. O resultado levou à disparada das ações, que só ontem subiram 14,28%, para R$ 0,32.

O portal Globo.com foi lançado em 2000. No mesmo ano o grupo vendeu 30% de participação à Telecom Italia por US$ 810 milhões, no maior negócio da internet brasileira. Em 2002 a Telecom repassou a participação, por US$ 15 milhões, à subsidiária TIM Brasil, que depois a vendeu de volta à Globo.

Os altos investimentos aumentaram o endividamento do grupo. A Globopar, holding que controla várias empresas das Organizações Globo, fechou 2002 com prejuízo de R$ 5 bilhões, após ter perdido R$ 1,5 bilhão em 2001. A dívida total ficou em R$ 4,59 bilhões. Carro-chefe do grupo, a TV Globo, por sua vez, terminou 2002 com lucro de R$ 220 milhões. As receitas totais das Organizações Globo estão na faixa de R$ 5 bilhões ao ano.

Roberto Marinho afastou-se da direção das Organizações no início dos anos 90, delegando aos filhos a condução do dia-a-dia e se concentrando nas decisões estratégicas. A divisão deverá permanecer com Roberto Irineu à frente das TVs aberta e paga e Globo.com, João Roberto no comando de publicações jornalísticas e da editora e José Roberto com rádios e Fundação Roberto Marinho. João Roberto é o representante institucional do grupo."