NÚMERO-NOTÍCIA
(*)
Antonio Fernando Beraldo (**)
(*) Com o polegar virado – a forma como a audiência, nos jogos romanos, pedia a morte de um gladiador derrotado nos combates
Estamos em Jerusalém, nos anos 30 do primeiro milênio. Um sol tímido de começo de primavera ilumina a praça em frente ao palácio do Procurador Romano, onde uma multidão se acotovela para ver os dois mais famosos agitadores de então: Jesus Cristo e Barrabás.
Jesus andava pregando uma doutrina filosófica um tanto exótica, que hoje chamaríamos de proto-comunismo. Barrabás, muito mais prático, organizava atentados contra os romanos, alguns bem-sucedidos (do ponto de vista judeu), mas acabou preso e ia ser devidamente transformado em mártir. Pôncio Pilatos, o procurador, realiza então uma das primeiras pesquisas de opinião pública da história. Indaga à multidão "A quem quereis que eu solte: a Barrabás ou a Jesus, chamado o Messias?" [Evangelho segundo São Mateus, 27,16-26]
Nós estamos no meio da multidão, preocupados com a possibilidade de haver algum homem-bomba escondido perto da gente. Mesmo assim, com nosso aguçado senso crítico, notamos uma certa tendenciosidade na pergunta: ao nome de Jesus é pespegado (perdão) o epíteto de "Messias", um dos mitos mais caros ao povo judeu. Para nós, ficou claro que Pilatos estava querendo soltar Jesus e fazer picadinho de Barrabás, que o incomodava bastante. E ainda, no meio da plebe, circulava o boato que a mulher do procurador tivera um sonho e que pedira a Pilatos para não executar Cristo.
Pilatos refaz a pergunta: "Qual dos dois quereis que eu solte?" Alguém grita, lá do meio do povo: "Barrabás!". Logo em seguida mais um, depois mais outro, a massa inteira… Barrabás! Barrabás! Barrabás! Pilatos, visivelmente aborrecido, ainda tenta mais uma: "Mas que é que eu faço com Jesus, chamado o Messias?" "Seja crucificado!", replica a turbamalta enfurecida! Pela última vez, Pilatos tenta forçar a barra: "Que mal fez ele?" "Crucifiquem-no!" [Não sei como é isso em aramaico, mas deve ser algo parecido com "Tá dominado, tá tudo dominado!"], treplica a choldra. Daí, Pilatos lava as mãos do "sangue daquele justo", e sai da História para entrar no Credo [Consta que Pilatos, depois de servir na Judéia, voltou para Roma sob a acusação de extorsão e crueldade, enfrentou uma CPI do Senado (deles) e acabou destituído de suas funções. Como se vê, não há nada de novo sob o sol]. O resto do caso a gente conhece.
Dias depois, tomando uns goles de vinho na taberna em frente ao Templo, ficamos sabendo as seguintes fofocas:
1. Quem gritou primeiro contra Jesus foi um sujeito ligado ao "Conselho", uma comissão de altos sacerdotes que condenara Jesus por blasfêmia e O entregara ao procurador romano. O alto clero da época achava que se a seita "Jesus" progredisse, uma previsível reação do Império (o Romano) iria limitar ainda mais a pouca liberdade religiosa que havia. A ordem de prisão contra Cristo foi dada pela maioria do Sinédrio, depois do Sumo Sacerdote ter dito "…antes pereça um homem que todo um povo" [veja César e Cristo, de Will Durant];
2. Nos dias anteriores à "consulta", foi espalhado que Jesus iria destruir o Templo. Ninguém sabe de onde apareceu esse boato, mas uma vez o próprio Jesus entrou no Templo e distribuiu bordoadas nos "vendilhões", que não devem ter gostado nada deste cerceamento ao seu direito de livre comércio;
3. Jesus era uma espécie de "entreguista", traidor da causa judaica. Tinha dito até "Dai a César o que é de César…", o que foi, logicamente, descontextualizado, e tomado como uma submissão aos interesses do Império (o Romano, novamente);
4. Que havia muita gente de Barrabás dissimulada no meio da multidão, talvez na esperança de que a guarda bobeasse e pudessem resgatar seu líder. A luta tinha que continuar, companheiro, como continuou, até que o Império (sim, o Romano) perdeu a paciência e, em 70 DC, Tito expulsou os judeus do Oriente Médio;
5. O "povo" que estava no julgamento de Cristo não era o mesmo que compareceu ao seu enterro. Seja por compaixão, seja por curiosidade, uma "grande multidão", inclusive com "mulheres que batiam no peito, lamentando-se por ele" acompanhou o cortejo [Lucas 23, 27].
Ou seja: distorções, tendenciosidades e manipulações à vontade, numa amostra completamente viciada para que se cumprissem as profecias. Pasmos, e descrentes de tudo (nós e São Tomé), pagamos a conta (sete sestércios, um roubo!) e voltamos ao século 21.
De volta ao futuro
Atualmente, não há tantas profecias assim, mas a bagunça com a tal "voz do povo" continua causando surpresa. Você sabia que:
i) Em 1939, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) queria porque queria um terceiro mandato. Propôs a re-re-eleição, sendo rejeitado por 63% dos americanos. Em 1940, menos de um ano depois, era de novo presidente dos EUA, pelo placar de 449 a 82 (os placares anteriores foram 472 a 59, e 523 a 8!) [dados da página do Instituto Gallup na Internet, e do Information Please Almanac (Simon & Schuster) de 1968].
Explicação: a queda da Europa Ocidental diante dos nazistas, ameaçando a Inglaterra e o chamado "mundo livre", no qual os EUA se encaixavam. FDR (pronuncia-se "éf-di-ár") envergou o papel de guardião da civilização ocidental, e a coisa "colou". Até a orquestra do Glenn Miller tinha uma música com o nome de FDR no repertório…
ii) Em 1955, ainda nos EUA, foi iniciada uma reforma no ensino público visando combater a segregação racial. Segundo as pesquisas feitas na época, no Leste, Centro-Oeste e Oeste do país, os percentuais de aprovação da reforma variavam de 61% a 77%. No Sul, a aprovação era de 20%! Pergunta, valendo 5 pontos: "Qual região nos EUA perdeu a Guerra Civil?"
iii) Em 1965, 75% dos americanos eram a favor de mandar tropas para o Vietnam. Em 1971, 62% eram contra. Essa é óbvia: em 1965, a intervenção americana era de "apoio" e de guerra aérea. Em 1971, boa parte dos 46 mil mortos e dos 300 mil feridos já tinham assustado os americanos. Já tinha havido Woodstock, Bob Dylan, Simon & Garfunkel… mesmo a derrota vergonhosa era preferível à visão dos corpos ensacados dos marines chegando nos EUA.
iv) Em 1968, um pouco antes do candidato Robert Kennedy ser assassinado, apenas 25% dos votos dos Democratas eram para ele. Depois de morto, foi aquela comoção, e quase elegem um cadáver para a presidência. Talvez fosse melhor…
v) Em 1973, quando a Suprema Corte dos EUA legalizou o aborto (até os 3 meses de gravidez), 46% dos americanos eram a favor, 45% contra. Isto é que opinião dividida, e continua rachada. Faça uma busca na Internet com a palavra abortion, e veja a polêmica…
vi) No ano seguinte, depois de se enfiar até o pescoço no caso Watergate, Nixon renuncia. Pensas que todos os americanos queriam sua cabeça? Fique besta: 43% dos "nossos irmãos do norte" (era como se chamava o Império, o Americano, nos idos de 64, 65…) achavam que não havia necessidade deste extremado gesto…
vii) Taxas de aprovação do presidente Bush I: 89% após a Guerra do Golfo (1991), 50% em dezembro deste ano, 29% em 1992. Lembrar que os EUA estavam estagnados economicamente, e que a viagem de Bush I a Tóquio foi um desastre, além do episódio Rodney King. Abriu-se uma avenida para Bill Clinton, que venceu com 43% dos votos populares e 370 votos eleitorais.
viii) Clinton: uma semana após estourar o escândalo com a estagiária, o ex-presidente recebia 67% de aprovação dos americanos. Nas vésperas da votação do impeachment, apenas 36% dos americanos achavam que ele tinha alguma culpa grave no caso. Explica-se: em 1999, 74% dos americanos achavam a economia do país "boa" ou "ótima". Em 1993, quando Clinton começava, eram só 10%.
Pode-se ver que esse negócio de "opinião pública" não é bem assim, não. Na verdade existem "opiniões públicas", que variam ao sabor do instante, do local, da conveniência, do momento "psicológico" e de interesses de segmentos, seja de classe, de sexo, de idade etc. E, principalmente, de uma coisa que pode-se chamar de nível de informação – informação que é fornecida, em sua maior parte, pela mídia, que pode, se for de seu agrado, modificar mesmo as bases culturais dos "opinantes" (ou delas se aproveitar) . Olhe só:
a) Segundo o Ibope, em dezembro de 1973, dos jovens do Rio de Janeiro 96% não tinham experimentado drogas, 52% assistiam mais de 3 horas de TV/dia [grifo meu; todos os meios de comunicação eram censurados], 70% não conheciam o significado da palavra "ditadura", 64% não sabiam o que era "comunismo", 70% ignoravam o que fosse "democracia", e 95% não tinham idéia do que fosse o AI-5. A pesquisa foi feita com uma amostra de 300 pessoas, entre 13 e 17 anos [Consulte o excelente livro de Silvana Gontijo, A Voz do Povo – O Ibope do Brasil, Editora Objetiva, 1996]. Sem comentários.
b) Em 1947, muito mais gente sabia o que era comunismo. E 37% dos homens, em São Paulo, era contra o Partidão (42% das mulheres). No Rio, em 51,33% achavam que não havia essa coisa chamada "imperialismo americano", mas 43% acreditavam que existia um "imperialismo soviético". Dois anos antes, quando ocorreu uma das redemocratizações do país, o PCB tinha sido colocado na legalidade. Mas já era disseminado o terror de que os comunistas, Prestes à frente, se tomassem o poder iriam expropriar as riquezas das classes mais altas, suas casas e seus automóveis, fazendo uma reforma agrária que nivelaria o país "por baixo", além de comer as criancinhas [só nos dois primeiros meses do governo governo Dutra ocorreram 60 greves; provocadas por quem?]. Com tal "ambiente", Dutra não teve maiores problemas em colocar o PCB de novo na ilegalidade.
c) Talvez o caso mais impressionante de refluxo de opinião pública tenha sido o do segundo governo de Getúlio Vargas. Saído do Estado Novo, senador por vários estados (mas prudentemente auto-exilado em São Borja), com seu prestígio pessoal numa espécie de estufa, foi "lançado" (este é o termo) novamente na vida política nacional por uma entrevista concedida ao jornalista Samuel Wainer, então nos Diários Associados [veja Chatô, o Rei do Brasil, de Fernando Morais, Companhia das Letras, 1994]. Carregado nos braços do "queremismo", Gegê obtém 49% dos votos (!). Depois de eleito, seu governo mergulhou numa espiral descendente em termos de aprovação, com quase toda mídia atacando sistematicamente, diariamente, sua figura, seus aliados e suas medidas. Carlos Lacerda flamejava sua violência, paladino da UDN. Às vésperas do 24 de agosto, o atentado da rua Toneleros e a "república do Galeão" eram os assuntos únicos de toda a imprensa, consumidos pela população (descontente com inflação, que se não era galopante, já trotava direitinho). No dia do suicídio, a tal opinião pública apareceu, descontrolada, num dos maiores quebra-quebras que o Rio já viu. (continua)
(**) Professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora
Jornal de Debates – próximo texto