MÍDIA & SAÚDE
Sonia Fleury (*)
Nas últimas semanas assistimos a uma enxurrada de notícias sobre a "crise" do setor saúde, conseqüência do "loteamento" político do ministério da Saúde, que desembocaram no ultimato, dado por um jornalista, para que o ministro da Saúde se demita. Diante desse quadro, decidimos refletir sobre o diagnóstico e o prognóstico que circulam na imprensa sobre a política de saúde.
Tudo começou com a demissão coletiva dos diretores do Inca (Instituto Nacional do Câncer) diante da ineficiência da diretoria administrativa, o que estaria causando danos aos pacientes devido à falta de medicamentos essenciais ao tratamento. É absolutamente louvável a atitude dos diretores do Inca, em defesa da instituição e dos pacientes, demonstrando o compromisso público da equipe médica com a população. Também é louvável a rapidez com que o Ministério da Saúde respondeu a esta situação crítica, corrigindo o erro na indicação do responsável, provendo o hospital com todos os medicamentos necessários em poucos dias e buscando uma equipe profissional capacitada para exercer sua direção.
No entanto, é preciso ir além e procurar medidas que impeçam fatos como este. Para tanto, é necessário que o ministério da Saúde transforme o que já foi acordado em audiências públicas em norma para ocupação de cargos, vinculando, mediante portaria, a ocupação do cargo a uma qualificação específica. Só desta maneira evitaremos situações equivocadas como a que ocorreu agora, pois quem termina perdendo é a população.
Ameaças constantes
Imediatamente, e, aproveitando a onda da demissão coletiva do Inca, especialistas que integravam a Câmara de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) demitiram-se também, denunciando falta de transparência do governo, alteração nas rotinas de divulgação de seus pareceres imediatamente pela internet e redução de seu poder de decisão. Finalmente, proclamam que o governo atual quer, com tudo isso, substituir alguns deles. Os professores e clínicos que pediram demissão desta Câmara foram convidados pelo governo a participar como consultores, e seus pareceres deveriam embasar decisões da agência responsável pela liberação dos medicamentos. Este convite é pessoal e discricionário, temporário e revogável, ainda que diga respeito a cientistas de notório prestígio na área acadêmica. Não se trata de uma representação das associações de profissionais e cientistas que trabalham neste campo. O que fica de lição deste episódio é a necessidade de se alterar a composição da Câmara de Medicamentos, de tal forma que ela comporte tanto profissionais de notório saber quanto representantes de associações científicas e profissionais da área, garantindo assim maior estabilidade na sua condução e regras claras para substituição dos participantes.
O papel da imprensa diante destes dois fatos tem sido de magnificar os problemas e dar início a uma caça às bruxas, inesperada numa democracia. Identificando como causa dos problemas o "loteamento" dos cargos de direção da Saúde, tomou como prova o fato de que dos 10 cargos de direção do Ministério da Saúde, seis foram preenchidos por profissionais vinculados ao PT, ainda que tenham sido secretários municipais de saúde, deputados, prefeitos, gestores, reconhecidos nacional e internacionalmente por suas experiências inovadoras. Não importa que tenham sido considerados casos de best practices pelo BID ou pelo Unicef: foram taxados como gestores provincianos por terem vindo do interior do Brasil, sem entender que esta talvez seja a grande mudança que se está processando no momento atual.
Ainda pior, os jornalistas passaram a utilizar termos como "capa preta" ou "comissariado da saúde", certamente com intenção de identificar os dirigentes do ministério da Saúde com as práticas do partido comunista, numa modalidade simbólica de perseguição política.
Diante deste quadro, resta lembrar que o movimento sanitário só conseguiu imprimir na Constituição Federal de 1988 a saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado porque a sociedade brasileira havia lutado e se organizado para isto. Desde lá, o SUS tem sofrido ameaças constantes, com os governos liberais que tentaram impedir a promulgação da legislação ordinária da saúde, com o impedimento da concretização das disposições transitórias que destinavam 30% dos recursos da Seguridade Social à Saúde, com a apropriação dos recursos da CPMF para outros fins e, ainda agora, com as tentativas de descontingenciar os recursos municipais e estaduais destinados à saúde.
Incólume ao longo dos anos
Mesmo depois de promulgada a Emenda Constitucional 29, em 2000, que vincula recursos para a área de saúde, 17 das 27 unidades da Federação deixaram de aplicar, juntas, mais de 1 bilhão de reais em ações e serviços de saúde em 2001. A proposta orçamentária da União também ameaça descumprir a lei ao buscar utilizar 5 bilhões de reais do orçamento do ministério da Saúde para custear ações de saneamento e do programa Fome Zero.
Apesar de a Saúde ter hoje o maior orçamento entre os ministérios, o que está aguçando a cobiça dos políticos, o Brasil gastou, em 2001, apenas 0,63 centavos de real por dia em saúde por habitante ? o que nos deveria envergonhar a todos. Mesmo assim, programas como o da Aids, de Imunização, de Médicos de Família, de desospitalização em saúde mental, de Medicamentos Genéricos, são hoje referências, nacional e internacionalmente.
Ainda há muito para fazer, na melhoria das condições de acesso, na gestão das unidades de saúde, na luta contra a corrupção. O que é certo é que a política de saúde tem atravessado governos de diferentes partidos e ideologias e se mantido incólume na busca da construção de um sistema universal e democrático de saúde. Ela já não é mais uma política de governo, é uma política de Estado.
(*) Professora da Fundação Getulio Vargas e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social