CENSURA ECONÔMICA
De todos os círculos, de todos os esplendores do espírito humano, o mais largo é a imprensa; seu diâmetro é o próprio diâmetro da civilização. Nada resiste à imprensa. A imprensa é a força? Por quê? Porque é a inteligência. É o charme, toca a alvorada, anuncia em voz alta o reinado do direito, não conta com a noite senão para, ao fim dela, saudar a aurora e iluminar o mundo. Sem a imprensa tudo é noite profunda. [Vitor Hugo]
Sexta-feira, 4 de maio, foi o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa. Como faço todos os dias, fui à banca comprar o matutino de minha preferência há anos: Tribuna da Imprensa. Parece que a Fortuna quis nos pregar uma peça sarcástica e cruel, pois, justamente no dia mundial de liberdade de imprensa, meu jornal preferido não estava à venda. O seu Joaquim, dono da banca, me informou que naquele dia a Tribuna não circularia por decisão judicial. Não acreditei. Fiquei perplexo e indignado. Fui correndo para casa, entrei na internet para acessar o portal da Tribuna e, infelizmente, constatei que o jornaleiro estava certo. Li a seguinte mensagem na tela: "Em cumprimento a uma decisão da Justiça, a Tribuna está temporariamente fora do ar". Fiquei ainda mais indignado, revoltado e comecei a fazer uma reflexão profunda sobre o papel da imprensa em nossa sociedade, que se diz democrática.
A Tribuna velha de guerra, aquela verdadeira Eclésia da pluralidade e da democracia, que enfrentou Vargas, que foi o único periódico que resistiu a nove anos seguidos de censura do arbítrio de 64, que vem sendo um dos poucos jornais que acusam, condenam e resistem à atual situação de sangria do país, estava, finalmente, amordaçada. E o pior é que, ao me informar melhor, soube que era uma censura resultante de ação na Justiça por dívidas não pagas. Censura econômica, imposta a um veículo que não vive às custas da verdadeira prostituição jornalística dos grandes órgãos da imprensa, pois não tem o compromisso com anunciantes poderosos como o governo e as transnacionais.
O processo, que está tentando calar verdadeiros jornalistas como o gigantesco Hélio Fernandes, o patriota Carlos Chagas, Sebastião Nery e todo o panteão de colunistas da Tribuna, não é apenas uma questão contábil, um problema meramente mercadológico pela falta de vendas, mas um processo muito mais profundo e grave que, desde a ditadura militar, vem desnacionalizando a imprensa nacional e entregando-a aos grandes grupos internacionais. Processo este que atinge atualmente o seu ápice e que deve ser debatido com urgência pela comunidade jornalística, pela ABI, pela sociedade, enfim, por todos aqueles que lutam por uma imprensa realmente livre e democrática. Fechar a Tribuna não será um caso isolado, será assassinar a própria liberdade de imprensa no Brasil.
Como já advertia o professor Sebastião Geraldo Breguêz, em genial artigo publicado na revista Civilização Brasileira nos idos de 1978, qualquer pessoa com certo nível de informação seria capaz de prever as conseqüências que traria ao país a "associação" da mídia multinacional com a imprensa nacional na forma como vem sendo feita a partir da ditadura e que, hoje, promove o fechamento de um jornal tão importante. A despeito de uma legislação de exceção, que fora teórica e formalmente abolida e que reprimia a manifestação da própria imprensa liberal e conservadora, existem outras formas de controle dos poderosos sobre a imprensa não-previstas nas leis.
É a pressão econômica. O Correio da Manhã, uma das maiores tradições da imprensa brasileira, não sobreviveu financeiramente porque, sob a direção firme de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, condenou corajosamente a política dos governos Castelo Branco e Costa e Silva. As corporações internacionais reunidas no Council of América decidiram cortar-lhe a publicidade, alegando que sua posição contrariava os interesses da livre empresa. Como dizer que há completa liberdade de imprensa, quando todos os veículos de comunicação de massa dependem da publicidade das corporações internacionais, que lhes impõem sua orientação? No regime militar, o Estado só passou a intervir e a controlar o fluxo de informação na medida em que as pressões econômicas não mais bastavam para sufocar as críticas.
O controle econômico é possível porque o jornal depende principalmente de duas fontes de receita: a venda em bancas e a publicidade. Na maioria das grandes publicações nacionais, a primeira é tão pequena que não raramente o custo gráfico da publicação é superior ao que o leitor paga ao jornaleiro. Em publicações como O Globo, O Estado de S.Paulo, Veja, Jornal do Brasil, por exemplo, a publicidade é responsável normalmente por mais de 80% da receita. A essa dependência acresce outra: estudo feito em 1974 (publicado pela Revista da Associação Brasileira de Imprensa, número 1) demonstrava que, do total de publicidade das grandes revistas de informação e análise brasileiras, de circulação nacional, aproximadamente 70% eram provenientes de empresas estrangeiras ou nacionais associadas a elas. Imaginem isso hoje, com o processo de globalização. Deve chegar facilmente a 100%. O fato de ser o anunciante estrangeiro que basicamente sustenta as publicações faz com que a política editorial de grandes órgãos de comunicação do país acabe sendo o foro de defesa de um modelo de desenvolvimento baseado na presença desses anunciantes. É aí que está a grande questão.
A desnacionalização da imprensa brasileira, entretanto, como afirmava Breguêz, já vem de longe, estreando passos indecisos até chegar ao estado a que chegou hoje. A alienação da opinião pública brasileira começou em 1948, com a instalação de Seleções do Reader?s Digest, reforçada com a vinda do grupo Vision Inc. (revista Visão, em 1950; Dirigente Industrial, em 1959; Dirigente Rural, em 1960; Dirigente Construtor, em 1963; Direção, adquirida da MacGraw-Hill, em 1964, e o Anuário Brasil 66, em fins de 1965). Isso sem falar no grupo Time-Life, que financiou a TV Globo, conforme relatório da CPI criada, na época, para apurar a infiltração do capital estrangeiro na imprensa brasileira. Tudo se deu, como dizia Genival Rabelo, em 1966, em artigo publicado nesta mesma Tribuna da Imprensa, com o título "O Exemplo Americano de ?Liberdade? de Imprensa", onde se lê:
"As investigações sobre a invasão ianque na imprensa brasileira, ou melhor, sobre o complexo processo de alienação da consciência brasileira, no sentido de nos levar a admitir que a ?solução está nos Estados Unidos?, chegarão, forçosamente, às seguintes conclusões:
** a Constituição foi brutalmente burlada desde que Seleções obteve permissão para ser impressa em português no Brasil, acelerando, desde então, o processo de manipulação da opinião pública com objetivos político-ideológicos;
** depois de dominar praticamente o setor de revistas, os americanos voltam suas vistas para os jornais, estações de rádio e televisão;
** a TV Globo, inequivocamente, foi financiada pelo grupo Time-Life;
** a discriminação publicitária, exercida por agências americanas (J. W. Thompson, McCann-Erickson, Grant Adversiting, International Adversiting Srevece, MultiPropaganda etc.), compromete a grande imprensa brasileira, quase toda ela constituída de jornais que baseiam suas receitas em mais de 80% de publicidade".
É dessa época que surge um Manifesto à Nação denunciando a entrada do capital estrangeiro na imprensa brasileira, assinado, então, por representantes de O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Diário de São Paulo, A Gazeta, A Gazeta Esportiva, Diário da Noite, Diário Popular, Jornal da Tarde, Última Hora, Notícias Populares, A Tribuna, O Diário de Notícias Alemãs, Sindicato dos Proprietários de Jornais e Revistas do Estado de São Paulo, Associação das Emissoras de São Paulo e Sindicato das Empresas de Rádio Difusão de SP. Também se manifestaram o Sindicato das Empresas de Radiodifusão do Estado da Guanabara, em moção especial de solidariedade, a Assembléia Geral da Associação Interamericana de Radiodifusão, entre outros. Todas estas entidades já sentiam, naquela época, o que poderia acontecer se abrissem mão de suas independências para as empresas multinacionais. Já temiam ? e estavam certas ? que lhes acontecesse o que hoje está acontecendo com a Tribuna. Quase todas citadas já estão há muito em mãos estranhas à realidade brasileira.
Os apologistas do sistema de poder externo já controlavam a quase totalidade da imprensa, quando a televisão engatinhava. Atualmente têm o virtual monopólio da televisão, viabilizando os meios para que as Organizações Globo continuem na dianteira sobre os demais veículos. E os que atualmente tentam concorrer com aquele grupo têm que se moldar ao sistema, transmitem a mesma desinformação vinculada aos interesses do sistema financeiro internacional em geral e americano em especial. Para garantir e reforçar o controle sobre a opinião pública, o sistema externo parasitário estimulou o crescimento de outros grupos tendenciosos como o Grupo Abril. Conglomerado que realiza uma verdadeira lobotomia em nossa população através de sua revistinha semanal de assuntos políticos e futilidades em geral, além de publicações de pornografia, negócios, esportes, histórias em quadrinhos americanas (obviamente…) etc..
Mas Estadão, JB, Gazeta não são exceções, são de há muito integrados, apologistas da penetração transnacional. Mesmo outros, supostos mais à esquerda, fazem um jogo dúbio não muito comprometedor, porque sabem que, do contrário, se radicalizarem, podem falir. O espaço tem sido fechado aos que resistem a esse modelo, como é o caso da Tribuna da Imprensa que, nos últimos anos, vem travando uma heróica batalha contra o governo e seus patrões ianques.
A direção de empresas jornalísticas, graças a uma lei do tempo de João Goulart, ratificada pela atual Constituição (1988), cabe exclusivamente a brasileiros, mas os grandes conglomerados estrangeiros julgam desnecessário reformá-la nesse ponto, pois é fácil recrutar apátridas locais para as causas antinacionais.
Assim, há muito as empresas alienígenas burlam tais exigências legais. Duas CPIs, uma em 1963, outra em 1966, investigaram a penetração do capital estrangeiro nos meios de comunicação. Nas conclusões da primeira, o então deputado João Dória, presidente da CPI, afirmou: "Em 1960 os dispêndios em publicidade somavam US$ 110,8 milhões (o equivalente a mais de US$ 1 bilhão em valores atuais), 37% à televisão, 28% ao rádio e o restante a outros meios. A veiculação dessa publicidade está em agências, dominadas por oito companhias estrangeiras. Reunidas na Associação Brasileira de Agências de Propaganda ? Abrap. Controlam, ainda, a Agência Brasileira de Publicitários. Em 1959, os 11 principais anunciantes do país formaram a Associação Brasileira de Anunciantes ? ABA, que incorporou mais 19. Dos 30, quase todos eram grupos estrangeiros. Grande número de revistas e jornais de posição nacionalista viu-se obrigado a suspender as edições por falta de publicidade, apesar de ter índices de vendagem mais altos do que órgãos brindados por frondosa publicidade. Além disso, organizaram-se no Brasil várias empresas jornalísticas subsidiárias de empresas americanas".
Estas palavras de João Dória são sobre dados de 1960. Imagine qual não é a realidade de hoje, com todo esse processo de abertura provocado pela globalização?
O fechamento deste excelente jornal por questões econômicas, portanto, infelizmente, é a coroação de um processo perverso de controle e neutralização da nacionalidade brasileira pela mercantilização de tudo sob a égide do capital estrangeiro. Isso está inteiramente associado às tentativas constantes de se jogar o Brasil de joelhos perante um modelo econômico assassino e submisso. Modelo alimentado pelo marketing, pelo falso entretenimento, pela desinformação, pela concorrência desagregadora, pela subserviência de nossas elites tacanhas, pela macaquice do show-bussines americano, coisas trazidas pela mídia estadunidense desde JK, ampliadas pelos militares e, atualmente, transformadas em paradigma de progresso por FHC.
Essa verdadeira lavagem cerebral coletiva perpetrada pela mídia alienígena está transformando nosso país numa verdadeira Sodoma capitalista, numa latrina cultural para as potências ocidentais. Coisas que têm minado os valores éticos, a família, o sentimento nacional, as instituições, elementos essenciais à vida em sociedade, à coesão e à solidariedade de uma verdadeira nação. Isso tudo é um crime de lesa-pátria que não pode continuar.
Todo este contexto globalizado desesperador, com a desnacionalização de nossos veículos de comunicação, nos faz refletir sobre o próprio papel da imprensa na sociedade e as condições jurídicas e políticas desse papel. Pois, parece-me, a manipulação privada (principalmente estrangeira) de informações públicas, principalmente num contexto de mercantilização de tudo, é a grande questão a ser enfrentada, traz à tona a discussão acerca da própria longevidade e eficácia da nossa democracia. Assim como a saúde, as notícias não deveriam jamais ser vistas como uma simples mercadoria. Todos os jornais, dos mais sóbrios aos mais ousados ou sensacionalistas, preocupam-se quase que totalmente com a apresentação. Afinal, tudo, como reza o modelo globalizado, é visto como uma mercadoria. E a informação não seria diferente. Para aumentar a venda do produto informação, não apenas o conteúdo mas também a embalagem tem que ser atraente.
É preciso considerar, contudo, que a empresa jornalística coloca no mercado um produto muito específico: a mercadoria política. Nesse tipo de negócio há dois aspectos a se levar em conta ? o público e o privado. A esfera pública relaciona-se ao aspecto político; o privado, ao empresarial. E é aí que temos uma contradição insolúvel. Pois a informação e o acesso a ela são direitos públicos garantido pela Constituição, mas o jornalismo é, geralmente, uma atividade privada. Como conciliar estas esferas excludentes num mesmo elemento?
Os empresários-jornalistas atuam na esfera privada, orientados pela lógica do lucro. Enfrentam os concorrentes com todas as armas de que dispõem: notícias, opiniões e atrativos diversos para atender a todos os gostos. No entanto, a imprensa é também, ou deveria ser, veiculadora de informações de utilidade pública, portanto, é de direito público, e nesse papel norteia-se pelo princípio de publicidade, colocando-se como intermediária entre os cidadãos e o governo.
Segundo a tradição liberal, no entanto, os governantes devem tornar públicos seus atos e tomar conhecimento dos anseios dos governados. A imprensa é o canal entre ambos.
Nos Estados liberais, as constituições garantem a todos a liberdade de expressar sua opinião e de obter informações. A imprensa é o veículo apropriado para esses fins. Formalmente, todos são livres e iguais perante a lei, mas na prática uns são mais livres e iguais. Ocorre então que, neste mundo desigual a informação, direito de todos, transforma-se numa arma de poder manipulada pelos poderosos, num instrumento de defesa de interesses privados, difundindo mentiras e desvirtuando a função primeira da imprensa: a cidadania.
Nessa verdadeira salada caliginosa, nessa confusão jurídica, onde se mesclam o público e o privado, os direitos dos cidadãos e suas opiniões se confundem com as dos donos de jornais, fazendo predominar as visões de mundo das elites abastadas. E, tragicamente, estas elites são ou estrangeiras ou submissas a elas. Como podem os empresários-jornalistas exercerem, de forma independente, o dever da crítica se estão ligados estruturalmente às pessoas e aos grupos que deveriam denunciar? Os compromissos que eles estabelecem na esfera privada não desaparecem quando atuam na esfera pública. A confusão entre o público e o privado define os limites do chamado quarto poder.
Hélio Fernandes é um dos raros exemplos de jornalista-empresário que conseguiram superar tal celeuma, por uma postura sempre radicalmente ética, não se locupletando com nenhum grupo econômico e mantendo sua independência jornalística inabalada e sua língua sempre afiada contra a venda do país. E é simplesmente por isso que passa por dificuldades. Não vendeu sua alma ao diabo. É o último dos moicanos! Nós brasileiros deveríamos seguir seu exemplo, deveríamos resistir, deveríamos, todos, políticos, ABI, cidadãos, intelectuais, sociedade, enfrentar uma luta para o controle, não estatal, mas público, cidadão, sobre os veículos de comunicação.
A ABI e os sindicatos de jornalistas deveriam, junto com outras entidades de classe, assumir uma luta para que os poderes constituídos criem mecanismos de controle da sociedade civil que garantam o exercício realmente público das informações públicas. Só assim poderá haver uma esperança para nossa pátria. Só assim poderemos nos livrar das forças estrangeiras que emperram nosso desenvolvimento. Convoco toda a sociedade brasileira para lutarmos por uma CPI que continue o trabalho interrompido no anos 60. Só assim poderemos sonhar com uma imprensa realmente livre e democrática.
(*) Professor de História, Brasília
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