TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
Alguém disse e vários alguéns repetiram que, numa guerra, a primeira vítima é a liberdade. Na guerra urbana do Brasil, onde o inimigo são seqüestradores que agem à revelia da Convenção de Genebra, a primeira vítima também tem sido a liberdade. Mas, antes dela, o alvo da vez parece que é o bom senso. Não sei se alguém aí percebeu, mas cresceu muito nos últimos dias a produção brasileira de sofás, sinal evidente da recuperação econômica do país, apesar das dificuldades enfrentadas pela Argentina e os vários entraves criados pela globalização (lá deles).
Ninguém percebeu a elevação da produção brasileira de sofás? Mas, gente, é só verificar as páginas dos jornais! Está lá, com todas as letras. Por justiça, é importante que se diga que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, é quem mais tem contribuído para o crescimento desta importante fatia do setor moveleiro, com as sugestões bombásticas que vem apresentando para os problemas gerados pela onda de insegurança.
A primeira delas foi a da proibição da venda dos celulares pré-pagos, sem dúvida a mais engenhosa, criativa e inusitada forma de combater a ação de bandidos. Como os traficantes de drogas, os seqüestradores e outros facínoras costumam usar para a prática de seus crimes os celulares pré-pagos ? bingo! ? vamos acabar com os aparelhinhos e está resolvido o problema! Curioso é ninguém ter tido antes a mesma idéia. Mas, vem cá: não seria conveniente também proibir a venda de veículos automotores, de uso corrente pelos marginais na prática de crimes? Pra completar, talvez fosse interessante acabar com a moeda corrente, tanto a brasileira como a estrangeira, sobretudo os dólares, pois é com ela que se costumam pagar os resgates. (Não precisa agradecer, pode até dizer que a idéia é sua, governador. De nada).
Deboche em rede
A segunda sugestão aconteceu agora, depois do resgate dos presos que haviam participado de uma fuga da penitenciária José Parada Neto, usando um helicóptero. O governador, diante das declarações debochadas do preso Aílton Alves Feitosa à imprensa ? "Usei minha inteligência, não foi fantástico?" ?, anunciou que vai proibir expressamente entrevistas de pessoas presas em São Paulo. Particularmente, achei genial. Até porque, como é sabido, preso é preso e tamos conversados. Não tem que estar dando entrevista a ninguém, né não? Principalmente a esses jornalistas que têm a mania, veja a que ponto chegamos, de… divulgar o que gravam!
De volta ao sofá. O governador Geraldo Alckmin, o mesmo que outro dia protagonizou a cena insólita de, pela primeira vez, um chefe de governo visitar um cativeiro para ajudar a libertar um refém, agora dedica-se com afinco à recuperação da combalida indústria moveleira de São Paulo. No primeiro caso, o governador, ao sugerir o fim dos celulares pr&eacueacute;-pagos, trocou um pequeno sofá onde se praticava adultério por outro e tudo voltou às mil maravilhas. No segundo, ao proibir as entrevistas dos presos, o governador trocou um sofazão de quatro lugares, pra botar no lugar outro ainda mais confortável. Sem sofá (ou melhor, sem entrevistas), sem adultérios. (Sem adultérios, sem problemas, é claro). Então, tá.
O que algumas vozes mais atentas mencionaram mas pouca gente prestou atenção é que não cabe a governador algum andar por aí exercendo censura prévia. Cabe, isto sim, aos veículos de comunicação o bom senso de saber o que botar e o que não botar no ar. A imprensa tem, sim, todo o direito de entrevistar quem quer que seja, preso ou solto. Como, igualmente, precisa ter responsabilidade e cuidados extremos ao decidir o que divulgar. A entrevista do preso escarnecendo da autoridade policial foi um dos momentos tristes do jornalismo tupiniquim. Pelo simples fato de que, assim como bandido pode falar o que quiser ? e governador algum tem de se meter nisso ?, jornalista pode e deve botar no ar somente o que considera digno de ir ao ar, segundo suas convicções e o interesse público. O diabo foi que o espetacular parece que superou a responsabilidade social de alguns coleguinhas. E o Brasil inteiro ouviu pela CBN e acompanhou por outros veículos o deboche de um bandido em rede nacional. A quem serviu aquilo? Ao bandido que se promoveu, ora. E a mais ninguém.
É preciso lembrar que a divulgação de qualquer notícia carrega uma responsabilidade social. Isso vale pro Bin Laden e pro ladrão de galinhas. Um ex-colega da TV Globo, o Wilson Ibiapina, gosta de dizer que todo editor nasce com um sininho dentro da cabeça. Quando desconfia de alguma coisa, o sininho bimbalha, ele ouve e fica esperto. Os editores que decidiram levar ao ar o escárnio do preso não ouviram o sininho bimbalhar. Ou ouviram e deixaram rolar, em nome da tal de audiência. Pelo menos serviu pra alguma coisa pois, de quebra, ajudaram o saudável esforço do governador Alckmin em favor do crescimento da indústria brasileira de sofás.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>