MÍDIA E VIOLÊNCIA
José Carlos Antonio (*)
"É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro
Evita o aperto de mão dum possível aliado
Convence as paredes do quarto e dorme tranqüilo
Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo"
(Raul Seixas, do CD Por quem os sinos dobram, 1979)
Tempos difíceis esses, em que vivemos e morremos sem saber o porquê de um ou outro e já nem nos importamos mais; tempos em que as notícias nos chegam tão rápido quanto as esquecemos depois e que, de qualquer forma, já não nos significam nada mesmo, apenas despertam-nos flashes emocionais pelos quais sorrimos, desdenhamos ou fazemos cara feia.
Ernest Hemingway baseou seu livro Por quem os sinos dobram (1940), numa idéia do amigo e companheiro de luta na Guerra Civil Espanhola de 1939, John Dos Passos, que tinha escrito em 1930 a frase "ninguém é uma ilha, todo ser humano é um continente, pelo que não é preciso perguntar por quem os sinos dobram porque, quando dobram, dobram por ti". Raul Seixas, no CD Por quem os sinos dobram (1979), expõe em suas rimas o sentimento de apartamento da sociedade duas décadas e meia atrás. Agora, 74 anos depois de Passos, a pergunta continua tão viva quanto antes: afinal, por quem os sinos dobram?
Da violência combatida à violência consentida
Não é comum nem agradável rimarmos "humanidade" com "atrocidade", mas na prática não se pode simplesmente separar as duas palavras em categorias antropológicas distintas: a primeira como característica de um homem civilizado, ou humanizado e, a segunda, como característica de um homem primitivo, um homem "inumano". Da mesma forma não se pode separar a sociedade, em qualquer tempo ou lugar, em duas partes distintas: a "boa sociedade", que acorda cedo e trabalha o dia todo pelo progresso da humanidade, que vai à missa e paga seus impostos, de uma outra sociedade marginal, uma "sociedade ruim", que é má por natureza ou por opção e que, por ser "inumana", deve ser apartada da parte "boa" ou, talvez, "eliminada".
Há muito tempo os muros das prisões foram levantados, talvez desde a invenção da riqueza, mas de fato nunca foram suficientes para comportar o número absurdo de criminosos que lá se pretendia apartar da boa sociedade. A "boa sociedade" parece ter sido sempre uma exceção. Então levantaram-se muros ao redor das casas da gente "boa", para apartarem-nas da gente "ruim"; também não deu certo. Modernamente vieram o shopping center, o carro blindado, a internet… E quanto mais a parte "boa" se isola mais ela percebe que não pode viver o tempo todo apartada e apartando-se da parte "ruim". Então ela, a "boa sociedade", se pergunta: será que não há outra maneira?
Hoje começa de novo a aflorar entre alguns formadores de opinião, e na própria mídia tupiniquim, um pensamento perigosamente recorrente: a inevitabilidade das diferenças e a impossibilidade da convivência. Ao que parece, muitos já consideram a violência "quase um mal necessário", uma "conseqüência inevitável", "um problema insolúvel" da sociedade moderna.
Quotidianamente nos indignamos com a barbárie e quanto mais nos enojamos com a "sociedade ruim" piores nos tornamos, mais nos apartamos e cada vez menos nos parecemos com os "humanos" que há muito já não reconhecemos nos "outros".
A feiúra do mundo
Parece que já não nos importamos em matar nossos semelhantes (legalmente, é claro!), em prender nossas crianças (até porque podemos, legalmente, deixar de chamá-las de crianças) ou em deixar que a vida "deles" siga seu rumo "natural" de extinção. Nossos semelhantes estão se tornando cada vez menos semelhantes a nós. Já começamos a crer que não há outro jeito, que não há outra solução que não seja a "purificação da sociedade", já que a "convivência pacífica" com a escória que prolifera nas periferias e nos rincões miseráveis nos parece cada vez mais impossível e indesejável.
Nosso sentimento de impotência nos torna covardes e cruéis, mas é sempre mais fácil atribuirmos esses defeitos apenas aos "outros", e no fundo sabemos disso.
Somos covardes a ponto de construirmos mais e mais buracos onde nos escondermos (nós: os ratos!) para sequer vermos o que se passa ao nosso redor. E, assim, vivendo como ratos sofisticados de um laboratório hermeticamente fechado e esterilizado, comemos comidas higienizadas, bebemos água mineral, compramos em shoppings, estudamos em escolas particulares, moramos em condomínios com segurança, nossos hospitais são particulares e agora até nossos contatos pessoais se resumem apenas "à gente de bem". Não baixamos o vidro blindado do carro nem para dizer "não" ao moleque que nos oferta aquela balinha vagabunda no semáforo da esquina; não porque sejamos mal-educados ou arrogantes, mas porque temos medo! E temos medo porque "sabemos" que somos "alienígenas bonzinhos" em um "planeta de monstrinhos".
Nosso medo nos agride tão brutalmente quanto a feiúra do mundo que evitamos, estapeia nossa face e mostra toda a violência da nossa impotência. E nós não gostamos de nos sentir impotentes diante de criaturas tão baixas e fracassadas, arcaicas demais para nosso mundo tecnológico, muito brutas para nosso mundo sofisticado. Mas nossos muros não são suficientes para nos isolar, nada mais pode nos proteger… É só uma questão de tempo e de oportunidade. Nosso destino parece estar sendo decidido no chão sujo das vielas caóticas dos morros, nas tábuas soltas dos barracos, nas sombras vivas dos viadutos, nos sorrisos enigmáticos das crianças feias que nos ameaçam nos semáforos.
Vaso quebrado
Então, quando percebemos nossa impotência e nos envergonhamos dela, nos tornamos cruéis. A criança feia e suja é agora apenas um projeto de bandido moleque, bandido moço, bandido adulto. Não resta mais nenhuma dúvida: as estatísticas anunciam o futuro. Não se pode negar a ciência e a matemática! Não precisamos abrir a janela, não precisamos "tocar" naqueles meninos para sabermos o que será deles amanhã. Higienizamos nossa consciência social, moralizamos as estatísticas e cavamos outra toca para nos enfiarmos. Afinal, somos refinados.
Todos os crimes são hediondos, todos os criminosos são inumanos, todos os "outros" são criminosos. Ou são criminosos "de fato", ou "em potencial", mas sabemos, matematicamente, estatisticamente, que são. Não entendemos a barbárie, não compreendemos a violência, não queremos participar disso. Afinal, por que não comem brioches? Por que não ganham dinheiro na bolsa de valores em vez de vagarem pelas ruas? Por que não abrem um negócio próprio em Miami? Se ganhamos nosso dinheiro honestamente, por que insistem em nos roubar? Por que invejam nosso tênis, nosso relógio, nossas bolsas, nossos carros, nossas casas, nossas vidas? Por que simplesmente não aceitam que merecemos nossas regalias, nosso "status"? A lei nos garante o direito aos nossos privilégios e, acima de tudo, não devemos absolutamente nada a esses brutos miseráveis. Então, por que eles simplesmente não nos deixam em paz?
Ora, só pode haver uma explicação: eles são maus! São incompetentes e invejosos, gananciosos e desonestos, incapazes e irracionais, por isso não são como nós. E se não são como nós então não podem ser tratados da mesma forma como nós nos tratamos. São feras inumanas, brutos que matam por dinheiro com crueldade e sem piedade. Têm que ser tratados da mesma forma como nos tratam e tratam uns aos outros: com a mesma brutalidade e crueldade, mas tudo dentro da lei, é claro. É só isso que eles compreendem… Não são como nós, que vamos ao teatro e lemos poesia. E, já que eles mesmos não sabem o que é piedade ou compaixão, por que deveríamos ter alguma com eles? Para que tentar consertar o vaso que quebrou, que já foi moldado em cacos ainda no útero da mãe, se sabemos que tudo é descartável, tudo está disponível e todos aceitam nossos cartões de crédito? Ora, descartemos a escória! Argumentos não nos faltarão.
Injustos exterminados
Nós fazemos a nossa parte, não fazemos? Somos compreensíveis, bondosos, educados. Jamais apontaremos uma arma para roubarmos o tênis de um garoto no semáforo, jamais invadiremos um barraco na favela para furtamos a televisão de 29 polegadas ou o carro popular que nem garagem tem para ser estacionado ou seguro para repor as perdas. Nunca seqüestraremos nem assassinaremos outro ser humano para lhe furtar uns míseros dinheiros que mal pagam um bom jantar, sequer um bom vestido ou um terno de bom corte.
Nós pagamos os impostos para ajudar esses miseráveis, não todos os impostos, porque sabemos que são excessivos, mas pagamos o que julgamos ser mais que suficiente pelos serviços que o estado nos oferece em troca e que, de qualquer forma, não usamos mesmo, já que podemos comprar serviços melhores. Doamos algum dinheiro em campanhas televisivas e para instituições que lidam diretamente com esses marginais. Até rezamos, vez ou outra, para que eles deixem de ser brutos e compreendam que nós somos bonzinhos e que eles têm que reconhecer isso e aceitar que somos vencedores e eles perdedores.
Não somos hipócritas. Somos bem-intencionados. Nossos líderes políticos nos apóiam, embora não confiemos neles porque sabemos que eles precisam dos votos dos "outros" tanto quanto de nosso dinheiro. Alguns de nossos líderes religiosos até já reconhecem que a escória não pode mais ser contida e nem igualada a nós, os "retos", e que até a bíblia considera justo que os injustos sejam exterminados. Todo mundo sabe que o progresso se constrói em nossas empresas e que é graças a elas que os brutos miseráveis conseguem o que comer, mesmo com o pouco de capacidade que possuem. Somos generosos. Damos os restos do jantar para nossas empregadas, doamos os brinquedos quebrados no Natal e as roupas usadas no inverno. Nós não somos hipócritas.
Não somos um continente
Amanhã, quando formos para o escritório fazer mais uma vez a fortuna e o progresso da nação, não queremos mais moleques ranhentos nos semáforos seqüestrando nossa paz de espírito e nos esfaqueando com um sentimento de medo e culpa. Queremos que eles morram, todos, pelo bem de si mesmos, para que não sofram as conseqüências inevitáveis que advirão de suas próprias naturezas inumanas. Nada mais podemos fazer por eles que já não tenhamos feito ao construirmos o progresso. Progresso para o qual não estão preparados. Queremos legalizar o aborto social.
Amanhã, quando abrirmos o jornal para lermos o nosso horóscopo, queremos esbarrar em manchetes que garantam leis mais pragmáticas, em que os maus não possam mais usufruir os mesmos preceitos legais que nós, os bons. Não queremos mais leis que atravanquem a justiça e impeçam a sociedade de eliminar a escória social de forma rápida e eficaz. "A lei deve proteger os honestos, não os criminosos", e os honestos somos nós.
Amanhã, quando formos às igrejas e sinagogas, não queremos mais apenas ouvir sobre a compaixão do Cristo, queremos ouvir sobre a justiça divina, aquela que reconhece que há os escolhidos e os pecadores, aquela que compreende a necessidade de separar o joio do trigo. Estamos cansados de oferecer a outra face, queremos o olho e o dente. Queremos ser um instrumento do Senhor na implantação do Novo Reino.
Mas amanhã, quando os sinos dobrarem de novo, não queremos estar lá para ouvir. Não somos parte disso, não somos um continente, não queremos nos misturar e muito menos ser confundidos. Somos apenas ilhas de prosperidade que flutuam no céu azul, pairando por sobre essa região sublunar onde reina o caos, a morte e a desordem. Por Deus, somos os mocinhos! Será que ninguém percebe?
E, ao som do último carrilhão…
"Coragem, coragem!
Se o que você quer
É aquilo que pensa e faz
Coragem, coragem!
Que eu sei que você pode mais."
(Raul Seixas, do CD Por quem os sinos dobram, 1979)
(*) Físico, professor, escritor