UNIVERSIDADES FEDERAIS
Muniz Sodré (*)
O caso, forma textual cada vez mais praticada no jornalismo de hoje, inclusive para fins de argumentação, é de fato muito útil quando se trata de expor uma questão ao mesmo tempo individual e coletiva.
Senão, vejamos:
Nas últimas três décadas, tenho sido docente em universidades federais, agora exclusivamente em uma delas, onde ocupo o cargo de professor-titular e as funções de coordenador de um Programa de Pós-Graduação, além, claro, das atividades regulares de ensino e pesquisa. Em todo este tempo, consegui sobreviver à tensão do regime militar, à incompetência de ministros da educação, à ambigüidade da imprensa frente ao problema educacional, a uma certa indiferença social e à insuficiência salarial. Queixo-me pouco, porém: o magistério é uma opção consciente, que entremeio com jornalismo e outros tipos de escrita.
Há cerca de dois meses, um telegrama do Serviço de Pessoal pedia meu comparecimento urgente. Lá, fui obrigado a tomar ciência de que iriam cortar de um salário que não se aumenta há sete anos, a quase totalidade de uma gratificação de chefia que recebo desde 1987. No jargão jurídico, isto já é "alimento", mas fui informado de que o governo estava contestando uma medida de 14 anos atrás. Eu, que fosse reclamar na Justiça. E fui, juntamente com legiões de professores, aposentados em sua maioria, que também foram alvos da arbitrariedade.
Vale relatar este miúdo episódio pessoal como ilustração de uma situação coletiva, de que a mídia não costuma tomar conhecimento: a compressão salarial e a provocação continuada como táticas do atual governo para induzir ao desmonte do ensino público superior. Isto se passa com professores e funcionários ? são constantes as ameaças e as tentativas de cortar pequenas recuperações dos expurgos monetários perpetrados nos diversos planos, de Collor para cá.
Expurgos, como se sabe ? ou melhor, como geralmente não se sabe ? são práticas governamentais referentes a índices de inflação, que deixam de ser aplicados a débitos do governo. Na reavaliação de ativos, em que se corrigem créditos e débitos, o governo praticou vários expurgos, ou seja, várias expropriações coletivas de renda. A Justiça, a quem os prejudicados terminam recorrendo, reconheceu-os como devidos. Mandou, por exemplo, o Banco Central pagar 84% à caderneta de poupança.
Nada disso, entretanto, é devido para salários. Porque pagar à poupança e não pagar, digamos, a salários acumulados no Fundo de Garantia? A resposta imediata é que há grandes investidores na caderneta. O Banco Central pode recompensar os grandes poupadores, exatamente porque não se trata de gente "pequena". A política de indexação tem duas faces, o Serviço Público privilegia os já muito privilegiados.
Zonas de excelência
A violência desses expurgos é generalizada e multiforme. No que diz respeito a professores e funcionários públicos, a recusa continuada de concessão de aumento salarial por parte do governo tem sido uma forma de não reconhecer o aumento progressivo do custo de vida e as expropriações de renda realizadas pelos diversos planos econômicos. Além disso, são correntes o corte e as ameaças de novos cortes de algumas recuperações miúdas, obtidas na Justiça por sindicatos de classe ou ações individuais.
Há, portanto, margem jurídica para a luta pela reconquista de direitos expropriados. Disto bem sabem os tecnoburocratas do estamento dirigente, razão porque exercem pressões junto ao Judiciário ou simplesmente incitam a Advocacia Geral da União a buscar filigranas que possam servir de pretexto para raspar mais carne do osso daqueles que ficaram de fora do que se vem chamando de "carreiras de Estado". Em nenhum outro governo do pós-guerra, inclusive os do regime militar, foram médicos, professores, funcionários públicos, ou de modo geral os responsáveis pela coisa pública enquanto ainda ligada a povo, tão coletivamente maltratados como agora. Por isto, estouram as greves desgastantes a que a sociedade brasileira tem assistido.
O problema é que ninguém de fora dessas instituições parece saber ou importar-se com isso. A mídia, quando não é ambígua (geralmente oscila entre a defesa entusiasmada do ensino privado e um noticiário seco sobre o ensino público), mostra-se simplesmente implacável para com o que, nesse setor, vem do Estado.
A revista Veja (edição 1172) dizia em sua Carta ao Leitor: "A greve das federais é abusiva em sua essência. Seus objetivos vão muito além das exigência de reposição salarial e mais verbas para o ensino. O que os donos do movimento querem é alavancar sua ideologia extremista, usando como massa de manobra professores e alunos".
Bem, muitos dirão que este é um comentário singular e que, desta vez, a greve das universidades repercutiu fortemente na imprensa escrita. É verdadeira esta última parte: nunca um movimento de professores e funcionários ganhou tantas páginas quanto agora, o que certamente contribuiu para que deputados e senadores se mobilizassem em busca de uma solução. Sem dúvida, isto tem muito a ver com a proximidade do período eleitoral, com a ameaça aos vestibulares aspirados pelos filhos da classe média, com os desacertos ministeriais, mas também com a indignação crescente nas ruas por parte de professores e alunos.
Mas a imprensa continua devendo uma atenção maior e continuada ao setor onde se dá a maior parte da pesquisa e da produção intelectual acadêmica no país. Por mais que tenha tentado, o governo atual ainda não conseguiu liquidar com as universidades públicas. É que simplesmente não podem ser substituídas por sanduicheiras educacionais.
Agora que começa a esboroar-se a ficção neoliberal do Estado ausente, abre-se caminho para que a imprensa possa também abrir mão de sua ideologia privatista, de sua obsessão pelo entretenimento e passe olhar mais de perto para as zonas de excelência, ou pelo menos de maior qualidade no tocante à formação de capital humano para o país. Talvez assim possam parar as provocações e as expropriações salariais ? essas sim, verdadeiramente "abusivas" ? que entopem a Justiça com ações e redundam em greves prolongadas.
(*) Jornalista e professor-titular da ECO/UFRJ